Salva Livros

Todas as noites, a doce menina de cabelos longos se debruçava no parapeito da janela para espiar o movimento, mesmo que a distração preferida fosse assistir aos eventos que aconteciam no terreno baldio.

O imenso campo que ficava na direção exata da sacada, onde Clara conseguia uma visão privilegiada, vivia todo final de semana cheio de agitação. Todos se misturavam e eram sempre transbordados de energia e falantes; unidos pelo mesmo propósito: o festival de balão. Pendurada no parapeito da janela rodeado de flores, como um jardim no céu, Clara, morava em um prédio de 08 andares. A sensação de nuvens tocando seus fios macios a petrificava horas no mesmo local. Ali, encostava o rosado rosto, delicadamente, na folhagem da janela e respirava o perfume que exalava no ar. Ficava horas, quase como um ritual. Regojizava em meio as risadas dos baloeiros, que manuseavam com empenho o material do tão esperado evento.

Sentada e com o olhar atento na rua, agitadamente, a menina buscava por novidades. Reparava em cada caminhar e mover inusitado. Observava e imaginava como cada pessoa vivia ou como eles seriam distante dos seus olhos inquietantes, que logo avistaram um jovem aprazível empurrando, desesperadamente, um carrinho de feira lotado de coisas, que, pareciam inutilidades. Com mais atenção, notou um amontoado colorido e volumoso jogado de qualquer modo naquele carrinho. Eram livros.

Sem pestanejar, Clara, correu pelas escadas, lance após lance, parando apenas para retomar e ainda sem fôlego aproximou-se do jovem e questionou:

- Por que tantos livros ?

E ele, prontamente, com um ar de desdém, falou:

- Estão velhos e não quero mais nada velho comigo.

Com olhos ávidos de curiosidade e mesclando irritação, perguntou insistentemente:

- Aonde vai levá-los ? O que fará com eles ?

Ele secamente disse:

- Aproveitarei o fogo dos balões e vou queimá-los.

Horrorizada, ruborizada e nervosa gritou:

- Eu os quero!

Com um sorriso amarelo, ele retrucou:

- São amontoados de pó. Leve quantos conseguir carregar.

Delicadamente, na ânsia de salvá-los, tentou carregar todos. Sonho em vão! não havia mãos. Em meio a tanta cor, poeira e letras, tudo se perdeu literalmente. Com os lábios cerrados e com o coração na mão, mal conseguia enxergar, pois seus olhos estavam marejados. Pela última vez, decidiu tentar dissuadi-lo. Ele não a ouviu, afinal era só uma criança.

Um livro, em especial, chamou sua atenção desde o minuto que perdeu os olhos dentro daquele transporte enferrujado. A capa era amarela e nela havia, em seu centro, uma rosa vermelha de uma delicadeza encantadora. Clara o pegou e caminhando lentamente com o braço entupido de livros, seguiu para a pequena saleta nos fundos do apartamento.

Com dificuldade despejou todos os livros sob o sofá de dois lugares, espalhando todos por cima do pano de linha que protegia o móvel antigo. Os desenhos se cruzavam, se misturavam entre o cetim que cobria aquela pequena poltrona, que foi do seu avô. Um homem culto e que criou nela o hábito pela leitura. Um encontro emocionado, como se estivesse retribuindo a ele todos os livros que ganhou.

Deitou-se lentamente e ficou em silêncio por alguns segundos, apenas quebrado com um suspiro seguido de um choro abafado. Pegou o primeiro livro e repetidamente assim o fez com os demais, até analisar todos. Alguns foram folheados, outros nem abertos, porém, admirados e alguns devorados de tão intensos. Estava ali com seu avô construindo mais um momento.

A sacada foi deixada de lado, contudo, não esquecida. Após deixar os livros em boa companhia e vice-versa, voltou para a janela. A noite estava formada, céu lindo, estrelado, sem uma branca nuvem para conduzir sua criatividade. O barulho da rua era como música. Ouvia crianças gargalhando, cães latindo, estilos musicais misturados, um final de semana do jeito que gostava. A hora voou e às 19:30 h sua mãe logo a chamou.

Seu pai trabalha com vendas e sua mãe era uma artista com as mãos. Dona Rosa fazia tudo para Clara. Costurava roupinhas de todos os tipos e eram verdadeiras obras de arte. Nas festas do colégio sempre levava alguma fantasia criada pela mãe, que fazia todas com muito afinco e cuidado. Dona Rosa gostava de pisar fundo na máquina e sempre ficava perto da filha enquanto ela desenhava, lia ou simplesmente falava. A parede do quarto era repleta de colagens, desenhos, pinturas e recortes. Imagens tiradas de livros infantis, gibis, revistas e da sua mente.

- Quase uma exposição! Brincava sua mãe a despeito da "coleção".

A hora da janta chegou e todos à mesa conversavam. Clara comentou sobre os livros que pegou no carrinho:

- Fui à feira de livros e encontrei meu vizinho. Ele estava tão perdido.

Seus pais não entenderam e questionaram sobre o assunto. E ela mesclava sentimentos em sua narrativa. Contava euforicamente sobre cada momento, até que pausou um pouco e descreveu sua aventura. Todos sorriram e ela continuou, causando nos pais vários sentimentos.

Seria imaginação ? de qual vizinho falava ? as perguntas embolavam nas cabeças fervilhantes daquela família, entretanto, eles não a interrompiam. E detalhadamente e com certa magia ela contava tudo. Igual a seu avô.

A ceia acabou e Clara correu para a saleta. Ela ligou o rádio em um volume quase hipnotizante e chamou seus pais para conhecerem sua nova coleção. Dona Rosa e Sr. Albert entram e se emocionaram. Clara montou uma estante com fotos do avô e colocou os livros antigos todos enfileirados. Com os recortes fez um lindo mural. O sofá estava repleto de livros, os quais ela "salvou". Uns com capas duras, outras escuras, apagadas, rabiscadas, poucas sem capa, algumas rasgadas, ou sujos, velhos, de história, arte, poesia e etc. A leitura rodeava aquela pequena saleta, que de repente ficou gigante. Os pais entraram, sentaram um em cada canto e olhavam fixamente para tudo e trocavam olhares em silêncio, até que a voz rouca de seu pai a questiona:

- De quem você falava ? quem levava os livros para queimar ? Que vizinho ?

Ela emburrou e falou:

- Ele mora do outro lado da rua, eu sabia que não me era estranho. Parece um anjo de tão branco e bem vestido. Voz mansa e calmo. Fantasiado de boa gente.

Dona Rosa achou graça da revolta da filha, pois tão nova, só 09 anos, e já tão indignada. Abraçou a filha e disse:

- Você gosta de ficar na janela olhando balões e acha tão bonito. Sabe que soltar balões não é legal, não é ? Por que não reclama disso também ?

Com a voz embargada, resmunga:

- Não fico me distraindo com os balões. Eu fico torcendo para não subirem, pois sei que o que sobe, também desce. Fico ali porque lembro do meu avô dizendo que eles um dia cairão. Eu fico tomando conta.

Apesar de gostar de olhar a rua, o movimento, as crianças pulando, brincando e da alegria das festas dos baloeiros, ela tinha medo e a janela era sua companheira. Naquele cantinho ela tomava conta de tudo, relaxava, e sentia-se protegendo e protegida, como se seu avô estivesse ainda lhe respondendo. Diante disso, os pais a beijaram e disseram que estavam felizes com tudo e que iriam olhar todos os livros junto com ela outro dia com calma, e que não ficasse preocupada, porque as festas do balão acabariam. Se despediram e ela foi dar uma última olhada.

Sem perceber ela carregava em suas mãos um livro, e dirigiu-se para a janela. Puxou o banco azul de madeira e acomodou-se carregando um sentimento diferente: alivio. Olhou para as mãos e reparou no livro que segurava. A capa era brilhosa e amarela, no meio um linda rosa. Abriu, folheou e começou a ler alguns pequenos versos: pura poesia.

Encantada, não conseguia parar de ler e no fim descobriu: não foi ela quem salvou os livros, foram eles quem sempre a salvaram. Fechou a janela, carregou sua poesia e pediu ao seu avô proteção. E sua única tristeza foi descobrir que o tal vizinho era, senão, professor. Que Decepção.

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