O Duelo
Fosse eu um narrador tradicional, daqueles conservadores, começaria o conto dizendo que chovia a cântaros. Ou se tivesse um estilo mais revolucionário, provocativo, optaria pelo chovia pra caralho. Como não sou nem um nem outro, inicio com a obviedade ululante.
Chovia muito.
E não é por chover muito que não havia ninguém na chuva. Se limparmos as gotas que caem diretamente em nossos olhos ou protegermos as vistas com uma das mãos, conseguiremos visualizar um vulto se movendo em meio ao dilúvio. Um homem. Um cavaleiro. Seguindo sem pressa, com a capa preta e chapéu encharcados pela rua enlameada. Como estamos na rua principal da currutela, que coincidentemente é a única rua, de cara ficamos sabendo que não se trata de uma cidade grande, e como não há automóveis e motocicletas à vista, eu deixo você supor que nem mesmo nos tempos atuais estamos. A rua é formada por uma dúzia de construções de madeira cada lado, todas hermeticamente fechadas e silenciosas com um tempo destes. Em frente a última delas há cavalos amarrados em um toco. A rua acaba no rio que corre cheio e sujo. O cavaleiro ruma à bodega, e deixamos de ser observadores distantes para acompanhar em sua garupa o galope tranquilo e orientado da montaria. O cavalo nos conduz até o compromisso do meio-dia.
O homem apeia dentro de uma poça d’água. Puxa o alazão pelas rédeas até os outros cavalos e o amarra no pau. Observa as duas éguas e sabe que já chegaram antes dele. Pára um momento e limpa o excesso de lama das botas em um pedaço de tacho de ferro cravado estrategicamente no chão, próximo à porta do estabelecimento. Apalpa o volume que carrega na cintura para que a sensação de segurança e coragem o acompanhem porta adentro. Respira fundo, sobe os degraus de madeira e entra.
Apesar da hora, não fosse uma lamparina acessa no balcão o ambiente seria um breu. O ar estava carregado de fumaça e música. Enquanto o cavaleiro tira o chapéu e a capa os sacudindo para tirar o excesso de água antes de pendurá-los – movimentos calculados para acostumar a vista à iluminação do ambiente enquanto identifica os que ali estão – percebe que no recinto estão oito pessoas. Quatro jogam truco em uma mesa perto da entrada, bebendo e fumando muito e prestam pouca atenção ao visitante. Atrás da lamparina está o balcão e atrás deste o atendente que, acompanhado das garrafas de bebidas e da chiadeira de um rádio velho, apenas observa. No canto esquerdo, há uma puta gorda rindo e servindo aguardente para um homem de chapéu, cuja face fica encoberta pelas sombras. Do outro lado, perto da única janela há uma mesa e nela um soldado de farda cinza apara as unhas do pé com um canivete. Quando percebe o visitante, dá um sorriso de escárnio, guarda o canivete e calça a bota. O visitante caminha até o balcão e pede cachaça. O garçom o serve sem perguntar. Bebe de um gole só, para esquentar, e depois cospe no chão. Então, sem esperar que o desavisado leitor reflita por um momento sequer na cena e tire suas conclusões precipitadas, retira o revólver do coldre e coloca sobre o balcão.
- Estou aqui para o duelo e quero saber quem é o macho que me desafiou.
Todos se calam, menos o rádio, que continua a melodia chiada. O homem de chapéu no canto se levanta mostrando o rosto. Era um índio ou um mestiço qualquer e tinha uma pequena faca na mão, destas de atirar. Dizem que índios são exímios atiradores de facas. Ou seriam os mexicanos? O soldado também se levanta e pega a espingarda escorada ao seu lado. Ele ajeita o quepe e cospe no chão.
- Pelo jeito o duelo vai ser com mais de um, porque eu também fui desafiado.
A garçonete gorda corre para o outro lado da sala. Nesta hora o garçom interfere.
- Senhores, aqui não é local para pendengas e entreveros. Por favor, peço para que se esqueçam disso ou saiam para a rua. Este é um estabelecimento de respeito e pacífico.
Os três homens parecem não escutá-lo. O que está no balcão pega o revólver e caminha lentamente de costas até a porta. Pára na posição onde os três ficam exatamente frente a frente. O garçom, agora mais nervoso, insiste.
- Cavalheiros, cada um dos senhores é famoso por ter um estilo próprio. O confronto de tais estilos não irá provar que ninguém é melhor que ninguém. Seria injusto comparar quem é o melhor na faca, revólver ou carabina tanto como quem seria o melhor na poesia, conto ou crônica. Comparar estilos diferentes em apenas uma única disputa fica mais a critério da sorte que por conta das habilidades pessoais dos senhores. Pensem comigo: e se algum de vocês não acordou em um bom dia ou a sua arma não funcionar no momento específico do confronto? Teriam uma segunda chance para provar que as circunstancias lhes foram desfavoráveis?
Os três continuavam a se encarar sérios. O garçom continua.
- O pior que pode resultar destes tipos de confronto são os observadores externos. Os críticos verão e apontarão as falhas técnicas de cada duelista. Fulano perdeu a disputa porque suava demais ou porque era um barril cheio de clichês. Sicrano porque imitava um estilo já conhecido e ultrapassado. E nisso nem mesmo os vencedores sairão ilesos. Os seus defeitos serão espalhados por onde andarem. Vencer é destacar-se, é pintar um alvo no meio do peito. Os adversários inteligentes serão os primeiros a explorarem as vulnerabilidades dos outros, propondo duelos em locais ou com armas que sabem serem os seus pontos fracos. Nunca notaram que aquele que é esperto nunca desafia os que acredita serem superiores a ele a menos que as circunstâncias lhe sejam favoráveis? É intencional e premeditado, pois ele quer vencer. A sua vida depende disso. Além do que, se alguém ganhar de outro valendo-se das informações que obteve de seus adversários, adquire forçosamente a fama de mau competidor. Será maldito por onde passar. E tem o detalhe que os senhores esquecem e que acaba de lhes custar a vida…
Rapidamente, o barmen saca duas pistolas escondidas no balcão e, ao mesmo tempo, atira no soldado e no homem da porta, que caem instantaneamente mortos sem saberem o que os atingiu. Colocando as armas sobre o balcão, ele prossegue.
- Quem joga sujo usa a plateia a seu favor, transformando os observadores em seus cúmplices. Ele sabe que todos querem fazer parte do espetáculo, mesmo que no papel de coadjuvantes. Por isso, o desafiante estuda bem o terreno antes do duelo, usando a má fama que adquiriu para convencer jagunços armados a parecerem meros jogadores de truco, mas prontos para agir caso algo saia errado. Também posiciona a prostituta inofensiva logo atrás do soldado com uma navalha escondida preparada para cortar-lhe a garganta. E como duelista vil e ardiloso que é, troca de lugar com o verdadeiro barman, o índio, desviando toda a atenção dos adversários para a peça menos perigosa do tabuleiro.
É, jogar sujo é para poucos e estes não merecem ganhar. Mas geralmente são os que ganham.