O RAPTO
Eu tinha um amigo de escola, que era o “capetinha” da turma. Hiper ativo, hiper mal educado, hiper espaçoso, hiper rebelde, enfim, um daqueles moleques que tem o norte sempre à esquerda dos princípios do bem viver.
Mas era óbvio que também tinha seus sonhos, vontades e fantasias, como toda criança. Natal chegando e ele queria ganhar uma bicicleta de presente. Faltava-lhe, contudo, coragem para escrever uma cartinha para o Papai Noel. Apesar de toda peripécia que lhe era peculiar, todo destemor de que lhe acusavam, faltava coragem sim.
Primeiro porque escutava todo o tempo que toda criança tinha que se comportar direitinho para poder ser atendido em seus pedidos. E bom comportamento não era seu forte. Segundo porque tinha extrema dificuldade de escrever, ainda. Fazia tanta bagunça na escola, gazeava tanto, que praticamente não tinha aprendido a escrever direito.
Mesmo assim, decidido que era, resolveu tentar. Pegou um bloco de carta. Lápis novo. Meia dúzia de borracha e foi se esconder no sótão da casa, seu lugar preferido, onde sempre se refugiava nos raros momentos de reflexão, para tentar fazer a cartinha ao Papai Noel. Iria tentar ludibriar o velhinho.
Deitado no chão do sótão empoeirado e cheio das suas bagunças, começou a escrever ao Papai Noel, na sua ousada tentativa de convencer o “velhinho barrigudo e barbudo”, como costumava se referir ao bom velhinho, a lhe dar a desejada bicicleta de presente de Natal.
E começou a cartinha, na sua gramática sofrível, além de uma caligrafia quase ilegível:
- Papai Moeu, o semho sabe qui me conprotei bem pra caraio esse todo o anu, intão...
Nada feito. Não iria conseguir convencer o Papai Noel. Amassou a folha e jogou no canto.
- Papoi Noeul, mel bon velinho, meus comprortamendo nestes mez foi ezempla, bem que o simhor pouderia...
Também não iria pegar. Mais uma bola no canto do sótão.
- Popai Nhoeu, nexta simana, eu tomei çuidadu e me conportei...
Pensou, pensou e concluiu que também não daria. Mais uma bola no canto. Caramba! Queria tanto uma bicicleta... E por mais criativo que fosse, não estava conseguindo argumentos para convencer o Papai Noel. Não tinha jeito. Teria que recorrer a alguma outra forma.
Pensou, pensou, lembrou dos filmes que já assistira nas madrugadas, fora de horário. Pensou nas pessoas que conseguiam seus intentos a qualquer custo. E para ter sua bicicleta, faria qualquer coisa. Se não estava conseguindo pelo caminho do bem e como já era todo errado mesmo, porque não pensar em alguma coisa de gente grande?
Pensou mais, roeu meio lápis, Comeu três borrachas, fez mais um monte de bolas de papel e finalmente chegou a conclusão de uma estratégia para ganhar a bicicleta. Era um tanto arriscada, mas não tinha outra. Se aquela senhora gostava tanto do seu filho, com certeza iria dar certo.
Desceu a escada com todo cuidado, para que a mãe não o percebesse. Ouvidos atentos. Percebeu que a mãe estava na cozinha, na lida com o almoço. Tirou o tênis, para não fazer nenhum barulho e pé ante pé, na ponta dos dedos, coração batendo forte, encaminhou-se para a sala. Lá todo o Natal estava representado. No meio da sala, um pinheiro bonito, repleto de bolas brilhantes, multicores. Realmente bonito.
No canto, estava o orgulho religioso da sua mãe. Ali, como de hábito, ela havia montado um completo presépio, com a estrebaria onde Jesus nasceu. O berço, os bezerros e até os três Reis Magos. Lá estava a Maria, Mãe e também o José. Tudo certinho. Aproximou-se do presépio, pegou José, deitou-o no chão, impondo-o uma soneca preguiçosa. Os três Reis Magos ele colocou delicadamente atrás da estrebaria, imaginando que teriam ido fazer xixi. Nossa senhora pôs de costas para o menino, arrumando as coisas, igual a sua mãe.
Tudo certo, nenhum risco à vista. O coração batendo mais forte. Deu mais uma revisada e então se arriscou a pegar o Menino Jesus que dormia na manjedoura. Pegou com todo cuidado e o pôs no bolso. Mais uma olhada na sala em geral. Ouvido atento para escutar a mãe na lida com suas coisas na cozinha, atravessou toda a sala, pegou o corredor e subiu a escada para o sótão.
Chegou lá, tirou o Menino Jesus do Bolso, escondeu dentro de um baú de coisas velhas, bem no fundo. Catou as bolas de papel que havia jogado nos cantos, cobriu melhor o Menino Jesus dentro do baú e voltou a deitar no chão.
Pegou novamente o bloco de papel de carta, deu mais uma olhada na escada para ver se a mãe não estava subindo e começou a escrever...
- Noça simhora. Tó com seu fiio. Ou me discola uma magrela no Natal, ben bonita, de marxa, ou não vai maz vê u sel minino. Si mi dedurrar pra o bariqudo de balba, phiô. Vay fede. Expera novo cuntatu.
Sei que ele ganhou a bicicleta, que seu pai comprou em 24 prestações. Soube também que ficou trancado no sótão até a mãe o achar e ele tremia de febre que ninguém conseguia descobrir a origem. Passou alguns dias evitando ir na sala e quando forçado a passar por ali, fazia com os olhos fechados para não olhar o presépio. Passou a temer mais o crucifixo que os vampiros dos gibis que folheava.
Ficou o mistério do sumiço do Menino Jesus, achado anos depois pela sua mãe, quando resolveu dar um sumiço nas bagunças do filho que havia sido enviado para estudar num seminário, interno, única forma que os pais encontraram para tentar amenizar a rebeldia do danado.
Eu tinha um amigo de escola, que era o “capetinha” da turma. Hiper ativo, hiper mal educado, hiper espaçoso, hiper rebelde, enfim, um daqueles moleques que tem o norte sempre à esquerda dos princípios do bem viver.
Mas era óbvio que também tinha seus sonhos, vontades e fantasias, como toda criança. Natal chegando e ele queria ganhar uma bicicleta de presente. Faltava-lhe, contudo, coragem para escrever uma cartinha para o Papai Noel. Apesar de toda peripécia que lhe era peculiar, todo destemor de que lhe acusavam, faltava coragem sim.
Primeiro porque escutava todo o tempo que toda criança tinha que se comportar direitinho para poder ser atendido em seus pedidos. E bom comportamento não era seu forte. Segundo porque tinha extrema dificuldade de escrever, ainda. Fazia tanta bagunça na escola, gazeava tanto, que praticamente não tinha aprendido a escrever direito.
Mesmo assim, decidido que era, resolveu tentar. Pegou um bloco de carta. Lápis novo. Meia dúzia de borracha e foi se esconder no sótão da casa, seu lugar preferido, onde sempre se refugiava nos raros momentos de reflexão, para tentar fazer a cartinha ao Papai Noel. Iria tentar ludibriar o velhinho.
Deitado no chão do sótão empoeirado e cheio das suas bagunças, começou a escrever ao Papai Noel, na sua ousada tentativa de convencer o “velhinho barrigudo e barbudo”, como costumava se referir ao bom velhinho, a lhe dar a desejada bicicleta de presente de Natal.
E começou a cartinha, na sua gramática sofrível, além de uma caligrafia quase ilegível:
- Papai Moeu, o semho sabe qui me conprotei bem pra caraio esse todo o anu, intão...
Nada feito. Não iria conseguir convencer o Papai Noel. Amassou a folha e jogou no canto.
- Papoi Noeul, mel bon velinho, meus comprortamendo nestes mez foi ezempla, bem que o simhor pouderia...
Também não iria pegar. Mais uma bola no canto do sótão.
- Popai Nhoeu, nexta simana, eu tomei çuidadu e me conportei...
Pensou, pensou e concluiu que também não daria. Mais uma bola no canto. Caramba! Queria tanto uma bicicleta... E por mais criativo que fosse, não estava conseguindo argumentos para convencer o Papai Noel. Não tinha jeito. Teria que recorrer a alguma outra forma.
Pensou, pensou, lembrou dos filmes que já assistira nas madrugadas, fora de horário. Pensou nas pessoas que conseguiam seus intentos a qualquer custo. E para ter sua bicicleta, faria qualquer coisa. Se não estava conseguindo pelo caminho do bem e como já era todo errado mesmo, porque não pensar em alguma coisa de gente grande?
Pensou mais, roeu meio lápis, Comeu três borrachas, fez mais um monte de bolas de papel e finalmente chegou a conclusão de uma estratégia para ganhar a bicicleta. Era um tanto arriscada, mas não tinha outra. Se aquela senhora gostava tanto do seu filho, com certeza iria dar certo.
Desceu a escada com todo cuidado, para que a mãe não o percebesse. Ouvidos atentos. Percebeu que a mãe estava na cozinha, na lida com o almoço. Tirou o tênis, para não fazer nenhum barulho e pé ante pé, na ponta dos dedos, coração batendo forte, encaminhou-se para a sala. Lá todo o Natal estava representado. No meio da sala, um pinheiro bonito, repleto de bolas brilhantes, multicores. Realmente bonito.
No canto, estava o orgulho religioso da sua mãe. Ali, como de hábito, ela havia montado um completo presépio, com a estrebaria onde Jesus nasceu. O berço, os bezerros e até os três Reis Magos. Lá estava a Maria, Mãe e também o José. Tudo certinho. Aproximou-se do presépio, pegou José, deitou-o no chão, impondo-o uma soneca preguiçosa. Os três Reis Magos ele colocou delicadamente atrás da estrebaria, imaginando que teriam ido fazer xixi. Nossa senhora pôs de costas para o menino, arrumando as coisas, igual a sua mãe.
Tudo certo, nenhum risco à vista. O coração batendo mais forte. Deu mais uma revisada e então se arriscou a pegar o Menino Jesus que dormia na manjedoura. Pegou com todo cuidado e o pôs no bolso. Mais uma olhada na sala em geral. Ouvido atento para escutar a mãe na lida com suas coisas na cozinha, atravessou toda a sala, pegou o corredor e subiu a escada para o sótão.
Chegou lá, tirou o Menino Jesus do Bolso, escondeu dentro de um baú de coisas velhas, bem no fundo. Catou as bolas de papel que havia jogado nos cantos, cobriu melhor o Menino Jesus dentro do baú e voltou a deitar no chão.
Pegou novamente o bloco de papel de carta, deu mais uma olhada na escada para ver se a mãe não estava subindo e começou a escrever...
- Noça simhora. Tó com seu fiio. Ou me discola uma magrela no Natal, ben bonita, de marxa, ou não vai maz vê u sel minino. Si mi dedurrar pra o bariqudo de balba, phiô. Vay fede. Expera novo cuntatu.
Sei que ele ganhou a bicicleta, que seu pai comprou em 24 prestações. Soube também que ficou trancado no sótão até a mãe o achar e ele tremia de febre que ninguém conseguia descobrir a origem. Passou alguns dias evitando ir na sala e quando forçado a passar por ali, fazia com os olhos fechados para não olhar o presépio. Passou a temer mais o crucifixo que os vampiros dos gibis que folheava.
Ficou o mistério do sumiço do Menino Jesus, achado anos depois pela sua mãe, quando resolveu dar um sumiço nas bagunças do filho que havia sido enviado para estudar num seminário, interno, única forma que os pais encontraram para tentar amenizar a rebeldia do danado.