Um Exercício de Natal
- Vamos sentar em algum lugar, tá muito calor.
O interlocutor passou a mão ossuda pela testa suada e aquiesceu. Saíam da mais movimentada avenida do centro, o usual fluxo torrencial de gente estava inflado em razão das festividades de fim de ano. As lojas, abarrotadas, esforçavam-se em criar ventilação para o ar denso, saturado da evaporação daqueles corpos castigados pelo sol intenso do horário de verão.
Quatro da tarde, os carros ainda transitavam impedindo a travessia dos pedestres perdidos em seus próprios fins que, vez por outra, corriam desatentos costurando os vãos entre os veículos, numa competição mortal pelo espaço.
Os dois homens adentraram a praça, tramitando entre suas vielas espaçosas, a respirar com certo alívio, ante a região arborescente. Barraquinhas de cores berrantes vendiam todo o tipo de pequenezas: chaveiros, adornos pendentes, bijuterias, incenso, pedras místicas, chás medicinais. O dono do balcão de ervas anunciava com importância os efeitos benéficos de seus produtos, bradando nomes complexos para em seguida, ditar uma alcunha popular adjunta de múltiplas funções intangíveis.
Caminharam, esgueirando-se das pessoas que se amontoavam, até tanger uma abertura maior circundante à fonte ornamentada por mosaicos desbotados de peixes inidentificáveis. A cauda de um havia se desprendido, exibindo a parede crua, acinzentada de um cimento caduco. A água já não mais estava, seca até o pó gorduroso que atraia a atenção dos pombos que recorriam ao abrigo natural das árvores.
Alguns bancos posicionavam-se ao redor, povoados por pessoas diversas de preocupações distantes, quase sempre empunhando suas sacolas barulhentas, suas caixas pesadas e seus pequenos pacotes de tranqueiras industrializadas. Um homem, talvez deveras bem vestido para o parâmetro da mendicância, achava-se deitado na grama, com o boné inclinado sobre os olhos.
Sentaram-se num dos bancos desocupados, em silêncio inicial. Os olhos encontraram o assento a frente, invertido – pela ação de jovens sorridentes com cerveja e virilidade – transformando o encosto num retorcido apoio para as pernas. No meio de seis ou oito daqueles, surgia inabalado, concreto aquele ao contrário.
A outra viela da praça conduzia a mais uma bifurcação abobadada, cercada de assentos em semi-círculo. Poucos ali se concentravam, um sujeito calvo, de rosto marcado por sulcos profundos que acentuavam sua expressão de cansaço, pregava, erguendo as mãos desajeitadas, imensas, deformadas pela calosidade e por pequenos cortes cicatrizados em tons esbranquiçados, enquanto ostentava uma bíblia de capa preta a combinar com a calça social que transbordava das gotas de labor de seus músculos faciais.
- Que calor.
As mãos tremulavam ossudas, parecia o interlocutor atentar ao redor, às espiraladas, que tomavam forma, ações.
- E todo mundo querendo comprar presente.
O outro, mais novo, encarava os pés oprimidos por um calçado desconfortável, sem esmero, quando com letargia, foi comprado.
- Essa época é uma merda andar na rua. Que você pensa de tudo isso? – Ergueu os olhos atento as periferias inferiores, fazendo alvorecer um brilho verde entre o castanho bem aparado cabelo.
- Do que? – O outro respondeu preguiçoso, como quando apenas se depreende o que foi dito com alguns instantes de atraso.
- Das pessoas comprando. Do natal, do capitalismo, Garotos Podres!
- Schinus Terebinthifolius. É rapaziada, aroeira, serve pra tratar infecção de urina, nessa época do ano dá muito.
O homem mais velho guinchou, erguendo a mão de modo a entornar o pescoço. Os olhos semi-cerrados contemplaram o vendedor para além da fonte.
- É essencial. No natal as pessoas consomem, mesmo com crise, mesmo com desemprego, mesmo com guerra. É um alívio pra economia.
- Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo.
- Não quero discutir a aplicação prática. – Os fios trepidavam pelo impulso proveniente da perna impacientada – O conceito por trás, é a favor de tudo isso?
- A Cavalinha limpa o sangue e o pulmão, também é boa pra vários tipos de infecção.
- Não vejo alternativas – percorria o pescoço com desinteresse.
- Isso é conformismo. Como pode aceitar esse tipo de estrutura?
- Não é que aceito. Sou contra também, mas não pelos mesmos motivos que você é. É inconsistente, isso é provado historicamente. Utilizar os mesmos conceitos é repetir o erro, é fadar tudo ao fracasso. Crises e mais crises virão, mas não surgiu uma teoria econômica que possa garantir a saúde social à longo prazo.
- Isso também, mas e as injustiças? E o modo como todos são cegos pelo consumo, um exército sem liberdade, sem vontade própria.
- Você fala de justiça – engoliu com dificuldade – O que é “justiça”? Pra mim, é o que é natural, inerente, prestar-se ao que se presta fazer e se pode fazer. Um grande homem disse que devemos abrir mão das liberdades individuais para o benefício da sociedade.
- Não é da sociedade! – O rosto ruboresceu, as veias do pescoço intumesceram – É pela manutenção de um sistema econômico que mal serve a sociedade!
- Mas ele lhes disse: Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago. Eis aí vos dei autoridade para pisardes serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo, e nada, absolutamente, vos causará dano.
-Você tem um ponto – desviou o olhar para o alto o que causou maior desconforto.
Analisou com desprezo o chão que pisava, agitando os pés sem muito empenho.
- Que salada você fez, não discutimos nada, nem prestou atenção no que disse e nem acredita no que disse.
- Pode ser. Estou com dor de garganta.
Abaixou os vítreos olhos para chegar às próprias compras. Esticou os braços sobre o encosto.
- Gripe?
- Não, só garganta.
- Ninguém gosta de falar, mas pra quem tem prisão de ventre, bom é Jurubeba, Sene-da-Índia.
- Passa na farmácia.
- Vou fazer isso. Garotos Podres... Gostava mais daquele outro, não lembro o nome.
A esquerda vislumbrou um pequeno garoto, cinco anos aproximados, agachado na grama, a segurar uma bola muito conservada, ou realmente nova, como aparentava.
- Olha o menino ali. Será que tá sozinho?
O mais velho desviou o pescoço na direção apontada. Estava o garoto, a roupa levemente suja de barro, o qual também podia ser visto na bola, óculos de lentes grossas, tênis colorido de alguma franquia que desconhecia.
- Não parece ser abandonado. Tá perdido?
Levantaram os dois. Um homem ,de óculos escuros e os mesmos trajes sociais, também contemplava o pequeno encolhido.
- Tá sozinho, rapaz?
- Vos nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor.
- Não – a voz rouca, raquítica perdia-se entre as reverberações do ambiente –, não, minha mãe tá aqui.
- Tá esperando ela?
- Tô.
Acariciou a testa. Os homens se entreolharam e continuaram a caminhar. O outro de óculos escuros continuou mirando a criatura.
O mesmo caminho foi traçado e retornaram à barraca das ervas. O mais velho dirigiu-se a atendente que sorria ao lado do companheiro anunciante.
- Moça, tem alguma coisa boa pra garganta?
- Tem bastante. Gengibre, guaco,casca e folha de romã e malva também é muito bom.
As vozes ressoavam, mas o mais novo mantinha a atenção voltada ao garoto. Agitava-se rodopiava o pescoço, alongando-o para além das árvores. Passou a mão pelo bolso da calça, sentiu o celular e segurou-o por instantes.
- Vamos?
- Vamos.
Saíram da praça e sentiram o choque abrupto com o asfalto aspirante a incandescência.
- Tou me sentido culpado – contemplou a via a sua frente.
- O menino tá bem – engolia vagarosamente.
- Espero. Vou pra lá – o mais novo apontou.
- Vou pro outro lado, passar na farmácia.
Cumprimentaram-se e com um aceno despediram-se. Não demorou a encontrar a farmácia. Uma pontada, a garganta, golpeou, forte. Devia estar inflamada. Muito sol.