Cadeira de praia

Era uma rua plana, revestida com lajotas pentagonais de concreto. Nas calçadas, árvores de médio porte, protegidas por armações de ripas e tela, davam um clima de zelo e tranqüilidade. As casas eram de arquitetura simples, em cores discretas. Uma ou outra se distinguia pela garagem maior, pelo jardim mais elaborado ou por suas grades altas e porteiro eletrônico. Exceto pelos gravetos, folhas caídas ou algum maço de cigarro amassado, a rua era limpa.

Crianças e adolescentes, em constante ir e vir, nunca fechavam portas e portões. Essa alegre despreocupação juvenil criava um entrosamento entre via pública e ambiente doméstico. Era como se a rua fosse o quintal das conversas cotidianas, do cheiro de cafezinho, da preguiça, dos programas de rádio, do barulho da panela de pressão e da máquina de lavar.

Na rua, um cachorro deitado aqui rente ao muro, outro lá adiante, cheio de preguiça zanzava pela calçada. Do outro lado, perto da esquina, duas meninas brincando, sentadas ao lado de suas bonecas, conversando e rindo. Uma bicicleta, em seguida outra, entram na rua por uma esquina onde há um orelhão amarelo com letras e sinais pichados em vermelho.

Poucos automóveis transitavam por ali. Uma Kombi, um intervalo, dois, três carros, outro longo intervalo e um Voyage estacionava lá na frente. Assim era ritmo.

Mas não era uma rua como as outras. Havia algo, ou melhor, alguém. A presença permanente de um homem sentado na cadeira de praia, amarela, frente à casa de grade branca e caquinhos coloridos na calçada. A vizinhança toda conhecia de vista, de longa data, aquele homem gordo sentado na cadeira de alumínio. Ninguém viu o caminhão descarregar sua mudança, nem soube de onde veio, nem o nome, a família, nada. Comentavam apenas que era aposentado. Uns diziam que exercera advocacia, outros achavam que fora bancário. Não havia certeza alguma de que fosse aposentado. Essas hipóteses haviam sido deduzidas das aparências.

Durante alguns meses, depois de sua mudança para aquela rua, foi o centro das atenções e curiosidade da vizinhança. O homem estátua. Imóvel, nunca fora visto ouvindo rádio, lendo jornal, ou folheando qualquer revista. Jamais foi surpreendido se espreguiçando, roendo as unhas, coçando as orelhas, o tornozelo ou o saco.

Alguns o achavam doente, doido de pedra, catatônico, autista ou qualquer coisa do gênero. Outros diziam que aquilo era um tipo, uma esnobação desmedida que logo passaria. Nessa mesma época foram feitas algumas tentativas de contato, convites para cafezinhos, cerveja, algumas pequenas provocações sobre futebol, política, cumprimentos pela manhã ou no final da tarde. A tudo e a todos ele respondia com o mesmo silêncio imperturbável, dando a entender que havia escutado, e era tudo. Nunca dizia palavra alguma.

Os moradores ficavam intrigados, curiosos.

-Meu Deus, quem é esse homem? Por que ele faz isso? Onde de fato ele está?

-Essa figura não é humana. É uma letra, apenas uma letra, perdida, em forma de gente, caída de alguma palavra que saiu de alguma frase que fugiu de algum escrito apócrifo. Havia preocupações, teorias.

Certa ocasião, ainda nesses primeiros meses, um pequeno fato aconteceu para afirmar a singularidade do homem da cadeira de praia. A tarde estava tranquila, céu azul, brisa agradável soprando as folhas das árvores. As mulheres nos afazeres domésticos, música num rádio. Nessa tarde tranqüila, um átimo transformou a brisa em vento forte, e o céu azul num cinzento escuro e pesado. Um corre corre danado. E fecha a janela, recolhe roupas no varal, chama as crianças, guarda os brinquedos, e corre todo mundo prá dentro que os pingos grossos já começam a pipocar, e o toró já está caindo.

Dentro das casas, por detrás das vidraças escorrendo águas podia se ver o céu carrancudo e a briga molhada do vento chacoalhando nervoso as árvores e palmeiras. Uma briga, uma dança sinistra de amor e medo. Chovia forte. A mocinha do sobrado rosa, sem desgrudar o nariz da vidraça embaçada pela respiração, chama alto a mãe, os irmãos e a cachorrinha, para verem do outro lado, imóvel, indiferente ao temporal, o homem da cadeira de praia com a enxurrada cobrindo-lhe os pés.

Disque, disque. Trim trim. Com rapidez de relâmpago a noticia se espalhou pela rua. Dois moradores da outra quadra, munidos de capa e guarda chuva chegaram até o portão para confirmar a notícia. A chuva foi diminuindo, diminuindo. O vento parou. O céu cinzento começou a parir uma luz suave e frágil. A enxurrada na sarjeta ficou rasa, bem rasa. Ainda assim conseguia levar o barquinho de folha de caderno, do primeiro menino que saiu à rua. Outras crianças saíram, em seguida seus pais, nos portões, pra ver a rua lavada e comentar...qualquer coisa.

Debruçada sobre o muro de balaustre, uma moradora vigiando seu garoto pra não se molhar nas poças, vez e outra olhava curiosa pelo rabo do olho aquele personagem encharcado, imóvel, cabelos escorridos, óculos embaçados.

Meu broche de esmeraldas e meu colar de pérolas. Daria essas duas peças, talvez ainda aquele par de abotoaduras de ouro, em troca de saber porque esse homem faz isso, porque é assim. Pensou a mulher consigo mesma. Em seguida, temerosa de se enroscar nas fantasias que começava a construir, assustada com os delírios que se avolumavam, gritou forte o nome do filho. Quando o menino chegou, ela abriu o portão, olhou o céu displicentemente e entrou esfregando os braços friorentos.

Na época de calor ele sempre usava bermuda larga, chinelos e camisa desabotoada, deixando à mostra sua branca e volumosa barriga. Jamais cruzava suas grossas pernas. Sempre com os pés juntos deixando os joelhos penderem largadamente para cada lado. Os cotovelos, escorados nos braços de alumínio impediam que a enorme figura escorregasse assento abaixo. As vezes entrelaçava suas mãos sobre a barriga e fazia girar os polegares, um ao redor do outro. Nas raras vezes que fazia isso, tornava ainda mais patética sua figura. O rosto era largo, pálido avermelhado, bochechas salientes. Um bigode grisalho escondia o delineamento da boca, a parte mais expressiva do seu rosto. Um óculos de armação escura destoava sustentado naquele nariz largo. Os olhos, talvez castanhos, quem sabe verdes ou negros, pequenos e semicerrados, se escondiam atrás das lentes.

Horas e horas sentado quase imóvel acompanhando o movimento das bicicletas, automóveis, cachorro, nuvens, passarinhos. Dia após dia, numa freqüência perturbadora, a mesma imagem, incômoda, irritante, silenciosa, e de intrigante prostração. Ano após ano, o mesmo homem, a mesma cadeira, os mesmos óculos, o mesmo silêncio, o mesmo movimento vagaroso da cabeça transportando pela mesma rua o mesmo olhar semicerrado. Em estações menos quentes usava calça em tonalidade escura, sapatos também escuros e camisa abotoada também nos punhos.

Oito anos e nenhuma novidade. A cada dia, nenhuma leitura, nenhum cigarro. Nada de se espreguiçar, nenhum bocejo, nenhuma tosse, nenhum espirro. A árvore sob a qual ficava, tantas vezes já havia perdido as folhas e outras tantas se completara exuberante de folhas verdes, novas. As crianças cresciam. Apesar da curiosidade não satisfeita e da presença permanente, o homem acabou sendo esquecido, não inquietava a curiosidade alheia, não causava mais estranhamento. Fazia parte do cenário, como árvore, muro ou poste. Estava ali, todos sabiam, mas não contava, não importava.

Oito anos e alguns meses. Tarde sem sol, sem sombras, temperatura amena, um silêncio turvo ocupava a longitude da rua. Apenas o homem na cadeira amarela e dois pardais pousados no fio, banais, olhando o sábado. Nuvens mansas, imensas, flutuavam suas abstrações.

Súbito, um grupo de adolescentes virou a esquina e entrou pelo meio da rua num andar firme e corrosivo. Decididos, trajados para a luta, paus e pedras nas mãos, queriam revanche no braço com a turma da rua.

Provavelmente acertos de contas por alguma desavença no futebol, no baile ou nas pichações. Sem conversa, mascando raiva, apertando na mão ódio e sarrafos, se aproximaram a passos pesados e cercaram a cadeira de praia.

Uma desforra legal seria quebrar de porrada essa figura, esse espantalho mal feito, na rua do próprio inimigo. Seria como destruir-lhes o totem. Eles jamais iriam se recuperar dessa humilhação, pensava o grupo, numa sintonia catártica.

Acontecia com o grupo uma excitação confusa. Idéias, imagens, referências se embaralhavam num caleidoscópio cubista. Mistura indistinta entre realidade e sonho, delírio e concretude. Perdidos no curso de uma alucinação irrefreável, o grupo era uno, um só ser, uma só vertigem, uma só voracidade. Despudoradas gotículas de suor frio minavam no rosto do grupo. E nos olhos, as pupilas dançavam estrepitosamente a festa dionisíaca que estava começando.

Uma figura tão bem feita, quase humana, tão perfeita. Cabelos, pele, óculos, dedos. Ou seria um homem com defeito, inacabado, sem alma? Convulções d´alma, espasmos na razão. A loucura foi se ampliando naquele turbilhão.

O mais magro cutucou o peito da figura com o sarrafo que carregava. Outro cutucão mais forte. Nenhum murmúrio, nenhum movimento. Emudecido, o grupo olhando agudamente aquele corpo, respirou lenta e profundamente. Parecia um sinal combinado. De repente começou. Porradas de todo lado. Violentas sarrafadas cobriram corpo e cadeira. Bateram, bateram...chutaram, bateram...

As tantas e tão violentas pauladas desenhavam no espaço enevoado daquele pequeno inferno uma tragédia viva, pulsante e sedenta. Como uma fúria primitiva, escapando da jaula quase arrombada.

Arrancaram um braço, o outro, a cabeça, uma perna e outra. Retalharam tronco e membros. Espatifaram a cabeça contra o cimento. Pulavam em cima dos fragmentos maiores. Andavam pra lá e pra cá, olhando no chão aquela carne moída espalhada, ou seria serragem vermelha, empapada em tinta? Aqueles trapos, ou seriam tripas, vísceras? Aqueles chumaços de algodão, ou pedaços de cérebro, de pulmão?

Extenuados, agora só conseguiam reconhecer no chão, as barras de alumínio retorcidas da cadeira, um pé de sapato, uma perna dos óculos.

Respiraram fundo, extenuados, aliviados. Calmamente deixaram o local e viraram na próxima esquina. Os dois pardais voaram pra longe daquele sábado de aleluia.

leo colosso
Enviado por leo colosso em 21/12/2011
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