Olhares terra

Aquele terrível objeto de cabeceira tirintou mais uma manhã. Afugentou rapidamente outro daqueles sonhos desfigurados, quase pesadelo, que eventualmente eu tinha. Às vezes ficava intrigado com o fato de não sonhar com figuras humanas. Desde que me conhecia por gente, havia tido exatos três sonhos em que apareciam pessoas. Sonhos curtos, mas intensamente marcantes, com figuras pálidas, desconhecidas, que me observavam com imensos olhos brilhantes e boca rasgada.

Estiquei o braço para abaixar o pino do relógio e percebi que sentia calor e abafamento. Num gesto impaciente e incomum pela manhã, enxotei lençol e cobertas. Ainda deitado fechei os olhos na tentativa de reaver algum fragmento do sonho, algum rabicho de imagem onírica para pensar durante o dia. Não capturei nada, não insisti e saltei da cama.

Chinelo, espelho, olheiras, água, creme dental, vaso sanitário, pente, cabide, sapato, fogão, café, fechadura, escada, corredor, porta, avenida.

Calçada molhada, rua molhada, céu cinzento. Senti uma pequena estranheza ao perceber que havia notado o tom cinzento do céu, refletido na calçada. Fosse lá à cor e o clima que fizesse, não fazia diferença alguma pra mim. Na verdade não havia o dia bom ou ruim, bonito ou feio. Todos eram um bom dia, tão insípido quanto o cumprimento dos colegas, pela manhã.

Suspirei pausadamente bons goles daquele ar cosmopolitano, apontei o olhar e me enfiei na correnteza de transeuntes que descia pela calçada movimentada. O escritório ficava perto. Dez minutos a pé. Num prédio alto com muitas janelas simetricamente distribuídas, com sua enorme fachada e uma grande porta de entrada. O batente, em arco ogival, com estrias arredondadas margeando arranjos florais em relevo, havia chamado minha atenção desde a primeira vez que passara por aqueles lados. Não exatamente porque fosse bonito ou bem trabalhado, mas porque brotava do chão, como uma planta qualquer, aquele adorno em mármore branco.

Tudo o que estava por terra me despertava, mais atenção, mais interesse. Não me lembro muito bem como, ou porque, eu havia começado a me comportar daquela maneira. É realmente muito incômodo para eu pensar em explicações e diagnósticos para esse desvio. E pra ser sincero, nunca tive interesse em entender esse fenômeno. O fato é que ao longo e alguns anos havia desenvolvido um jeito muito particular e exótico de observar o mundo.

No princípio me preocupei um pouco com aquilo a que me chamava deturpação da vista. Me sentia terrivelmente inquieto, amedrontado. Uma impaciência febril inflava minhas veias. Nada fazia sentido, e, no entanto, tudo era tão familiar. Como se fosse uma vertigem. Talvez fosse. Eu gastava o que parecia ser um tempo demasiadamente longo para entender e assimilar poucas e simples imagens.

Carros, pessoas, mesa, caneta, garrafa, me apareciam como imagens confusas e desarticuladas. A visão que eu tinha sobre objetos comuns e triviais guardava alguma semelhança das representações cubistas.

Tudo se diluía, se pulverizava em névoa, se desarticulava numa explosão em câmera lenta diante dos meus olhos loucos e perdidos. Nada que eu pudesse fazer. Nada que meus olhos pudessem fazer. Não lutei, não rezei pra santa Luzia nem pra qualquer outro santo, nem mesmo procurei um oftalmologista. Meu olhar vencido, conquistado, caiu por terra. Fixou-se no chão e muito tempo depois, lentamente, foi restituindo sua acuidade, seu foco e uma definição mais precisa das imagens. E ali no chão, permaneceu marginal e obediente. Jamais soube se eu obedecera meus olhos ou se meus olhos obedeceram a mim.

Havia deixado de usar os olhos nas pessoas, nos automóveis, edifícios, vitrines, árvores, janelas e tudo mais que compunha aquele cenário urbano. Como um par de pequenos faroletes na escuridão, meu olhar, agora incidia a dois, três, metros à minha frente. Sempre essa distância.

Era nesse pequeno espaço que repousava o sentido visual das coisas para mim.

Todas as calçadas, com suas texturas, cada irregularidade, cores, desgaste, desenhos, me eram apresentadas com inigualável riqueza de detalhes, belos, interessantes e reveladores. Passei a conhecer todos os habitantes do chão, uma variedade infinita de maços de cigarros e tampinhas de garrafa, mendigos, folhas de jornal, caixas de fósforos, pombas piolhentas, escarros, pontas de cigarro, folhas de árvores e tudo mais que era lixo, jogado fora, ou perdido.

O chão, e tudo que mora nele, se descortinou para os meus olhos com uma nova e rica linguagem. Eu aprendia bem rapidamente a decifrar seus signos e em pouco tempo já era capaz de andar por toda a cidade reconhecendo as características de cada rua, de cada bairro e de seus habitantes, sem tirar os olhos do chão. A cada passo dado, cada detalhe, por insignificante que fosse, era processado e passava a compor como peça de um quebra cabeça, uma imagem rica, viva e dinâmica do local, do bairro. A textura, qualidade e o desgaste das calçadas, pontas de cigarros fumados, farelos de lanches, um botão de camisa, um clips, palito de sorvete, de dente, lenço, um pente perdido. Cada detalhe tinha participação importante na historia e no retrato que eu compunha do lugar.

As pessoas, suas fisionomias e vestimentas, as fachadas dos imóveis, os veículos, árvores, placas de propaganda, etc... etc..., não me interessavam. Tudo isso pra mim, não passava de fantasmas disformes se esfarelando no vácuo. Tudo era vulto, forma desfocada, insípida, sem profundidade. Uma grande ilusão que eu me negava a acreditar.

Só a mãe terra, o pai chão, tinha identidade pra mim. Esse espaço fértil em cores, estética e odores, esquecido e desprezado por todos, era o foco do meu interesse.

Naquela manhã, pouco tempo depois de iniciado o expediente no escritório, acabei confirmando a suspeita de que me afeiçoara mais à minha mesa de trabalho do que qualquer pessoa lá de dentro. Sentado, distraído do restante do ambiente, examinava minuciosamente o móvel. Era escrivaninha de madeira boa, bonita e envernizada. Nem grande nem pequena, suportava bem meus cotovelos burocráticos. Despretensiosa amparava meu olhar laborioso e minhas mãos quase sempre ocupadas com papéis e teclas. Seu tampo escuro guardava mais que riscos e rabiscos. Era um lago, um abismo. Uma superfície, como o chão, em que eu mergulhava profundamente. Num só tempo, túmulo e berço que me acolhia.

Ano após ano aquela peça fora testemunha, e cúmplice, de meu ofício funesto, metódico e honesto Da minha pontualidade medrosa, da minha economia, da obediência cristã e da minha limpeza estéril.

Eu era um sujeito correto que nunca desejara nem fizera mal a qualquer pessoa, nunca atrasara qualquer pagamento de aluguel, água, luz, nem dera incômodo a quem quer que fosse. Era extremamente cuidadoso nesses pormenores. Fazia questão quase obsessiva de ter um comportamento irrepreensível cristão e silencioso. E minha escrivaninha era solidária a toda essa pureza, que beirava a perfeição.

Pouco antes de sair para o almoço, me despertou uma idéia, a de que poderia dar-lhe um nome. Assim como as pessoas dão nomes a cães, gatos e papagaios eu também poderia fazer o mesmo com minha mesa. Ela era minha companhia, nomea-la, portanto, era uma forma de torná-la mais familiar, mais íntima, mais minha.

Durante o horário de almoço, andando pelas calçadas lavadas pela chuva, ainda úmidas, povoada de calçados em trânsito pisando folhas de árvores, que margeavam a avenida, eu pensava em nomes. Nomes femininos que combinassem com a madeira, com a cor e a personalidade da minha colega de ofício e vida.

Meus olhos percorriam uma calçada de lajota em preto e branco, que formavam desenhos simétricos. A falta de algumas placas que compunha essa calçada antiga e gasta, quebrava a seqüência e ritmo das linhas, e acumulava água suja em pequenos quadriláteros dispersos aqui e acolá. Muitas folhas coladas no chão, gravetos escuros de fuligem, pontilhavam junto a dezenas de sapatos o passeio até o fim da quadra. Na esquina um poste, e as luzes do semáforo refletindo no chão molhado.

. No asfalto, largas faixas brancas paralelas, que eu num átimo, percebi estar cruzando sozinho. Não via chinelos, sapatos, ou sandálias vindas em sentido contrário, nem indo ao meu lado. Estava sozinho naquele cruzamento molhado de preto e branco. Súbito, qual peça mal jogada em tabuleiro de xadrez... Xeque!

De repente um grito afogado de pneu e asfalto. Um violento impacto e meu corpo girando no ar, desarticulado, sem chão, sem saber de nada. Minha cabeça é a parte primeira que bate no asfalto. Um som surdo, oco, irreversível. Mate!

Fiquei suspenso de mim mesmo durante algum tempo. Não via, não ouvia, nem sentia nada. Embora houvesse uma estranha sensação de consciência.

Vagarosamente a visão foi voltando aos meus olhos que permaneceram abertos o tempo todo. Começaram a surgir vultos murmurando frases inaudíveis. Movimentavam-se nervosamente diante de mim. Agachavam, levantavam, circulavam meu corpo caído. Por um instante senti minhas costas espetadas pelas pedrinhas e umidade do asfalto. Mas esse incômodo logo desapareceu. Não sentia pedrinhas, nem costas, nem nada.

Minhas narinas começaram lentamente a sentir cheiro de sangue fresco. Também a capacidade olfativa logo se extinguiu. Meus olhos, imóveis, começaram a distinguir com um pouco mais de nitidez aquelas figuras que me cercava. Contra a claridade da luz vinda do céu, aqueles vultos escuros se tornavam irreconhecíveis. Muitas pessoas se curvaram sobre mim. Algumas ficavam pouco tempo, e quando saiam o lugar era imediatamente ocupado por outras. Do chão, eu olhava uma espécie de abóbada de gente cercando meu corpo. Uma ao lado da outra, as cabeças emolduravam um pedaço do céu em que nuvens passavam lentas e indiferentes. Às vezes conseguia distinguir algumas sílabas, lampejos de palavras. Ouvia também buzinas abafadas e reticentes barulhos de ônibus e automóveis.

A julgar pela imagem que a imobilidade dos meus olhos via, ninguém me tocou, não mexeram na minha cabeça, não me removeram.

O céu foi escurecendo. O ritmo das visitas ao meu corpo se tornou mais rápido e intenso. Devia ser a hora do rush. As lâmpadas da avenida se ascenderam. De uma vitrine próxima uma luz de neon vermelha e verde, se alterava iluminando palidamente as pessoas à minha volta.

Meu raciocínio era lúcido. Embora não sentisse frio, dor ou tristeza, minha consciência captava de maneira perspicaz as entrelinhas de toda aquela situação.. Eu percebia no ar o clima de constrangimento e medo. Alguns ficavam consternados, colocavam a mão sobre o peito e quase não respiravam, outros olhavam indiferentes, como se eu fosse, não o corpo, mas a imagem pronta em manchete de jornal. Outros ainda, eu percebia, me olhavam como objeto de assunto a ser comentado mais tarde no bar ou em casa. Iriam descrever a quantidade de sangue derramado no asfalto, meus olhos estalados e imóveis. Minhas roupas de boa qualidade, minha idade aparente, etc..etc..Com certeza falariam do perigo, da violência urbana, da efemeridade da vida, e da morte como descanso.

Minha consciência vagava, por entre aquele aglomerado de pessoas, respirando as emoções, os pavores, os olhares, as luzes, a temperatura do ar, os gestos. Eu era tudo. Era eu e os outros.

Eu alinhava as razões e emoções, a terra e o céu, as intenções. Nada me era estranho ou desconhecido.

Desde o princípio daquela situação eu havia percebido uma surpreendente ironia. Poderia ter caído e ficando de bruço, com a cara no chão. Com os olhos literalmente cor de terra. Uma síntese íntima e conclusiva do meu olhar. Mas não, cai e dei de cara com a infinitude do céu. Deitado na terra como se fizesse parte dela, como se fosse uma pequena planta ou maço amassado de cigarro, eu agora olhava a cara das pessoas, as nuvens, pombos em vôo, a profundidade interminável do infinito. Nesse momento senti que era o éter, a escada, a ponte.

As horas passavam. Diminuía o numero de transeuntes que paravam pra olhar. O barulho do tráfego era menor. Surgiam algumas estrelas. Durante a madrugada garoou.

Ao amanhecer o movimento recomeçou. Mais rápido, mais impaciente, mais constrangedor. Não havia sol. Um senhor de bigode e paletó listrado se agachou, fez o sinal da cruz e me cobriu com folhas de jornal. Fiz um esforço para ler aquelas palavrinhas quase coladas ao olho, mas não consegui. Creio que se passaram horas até que o papel, movido por uma brisa, se deslocou um pouco sobre meus olhos. Embora a distância entre o globo ocular e as palavras do jornal fosse pequena, já se tornava possível, com grande empenho, ler alguns trechos de notícias. Uma delas fazia referência à greve, iniciada no dia anterior, dos funcionários públicos ligados à área da saúde e segurança. Não consegui maiores detalhes, mas fazia sentido. Já estava ali por mais de 24 horas. Numa situação de normalidade já teria sido recolhido pelo IML.

Anoiteceu. Um vento forte levou embora o jornal que cobria meu rosto. Começou a garoar. Alguns transeuntes com guarda chuva paravam, não tão próximos, e rapidamente iam embora. O céu era denso e negro.

Amanheceu. A garota que havia se interrompido Duran a madru da, vol tou devota. Sentia os primeiros sinais de fósforo, fadiga, flocos de espuma. Anoiteceu. Meu raciocínio começou, começou, meu racio símio, comessou afalhar , afalar, afagar, apagar. Minhas idéias, pétalas, e minhas conciência começaram porão, pedras a se perder na escu ridão dão dão.

Ano i teamanheseu céu sem chuva guarda sol, entardeceu úmida no espelho, Não coor cde na va quase navio navalha nada. Me per dia noite vários dis ali, vários dias fui fluindo indo em bo Ra feito san g u e em san gri a 100 vol ta e Ra PI d o t u d o

A

C A

A BA

leo colosso
Enviado por leo colosso em 21/12/2011
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