AMIGAS PARA SEMPRE

Faziam muitas coisas juntas aquelas duas senhoras. Visitavam-se, regularmente. Moravam no mesmo prédio, há mais de trinta anos. Em realidade, eram parentes, tia e sobrinha, mas, tendo quase a mesma idade, eram amigas íntimas. Falavam dos filhos, dos netos, dos bisnetos. Faziam caminhadas juntas, iam às compras.

Viam a novela, eram companheiras de televisão. Eventualmente, assistiam a um balé, na televisão mesmo, porque uma delas tinha sido bailarina na juventude. Sim, tinha sido bailarina, e o que mais impressionava a todos era o fato de, mesmo depois de idosa, ainda ser capaz de levantar a perna esticada bem alto, fazendo os mais delicados e vigorosos movimentos. Essa era uma imagem para ser mantida na memória, para sempre.

A outra senhora, a sobrinha, que era mais jovem, tinha sido professora, casara-se com um homem que por ela apaixonou-se à primeira vista. Sim, existe amor à primeira vista, suas netas sabiam bem, porque ouviam, milhões de vezes, maravilhadas, a história sensível e tocante do dia que o avô conheceu a avó. Ela descia uma escada, na casa da irmã do avô, que era sua amiga de colégio (deveria ter uns dezessseis anos, não mais), quando o avô, no pé da escada, pensou, ao vê-la: “Com esta morena eu casava hoje”. As netas achavam que aquela era a história de amor mais linda do mundo, ainda mais contada assim, por aquela avó tão sorridente, e as netas ficavam imaginando a moça morena, de olhos grandes e escuros, encantando, à primeira vista, o avô de descendência italiana, extasiado pelas graças da avó de origem portuguesa... E ficavam olhando sua foto de mocinha, com aqueles cabelos encaracolados, a boca vermelha e os traços firmes, de uma mulher decidida, que só poderia mesmo fazer com que um homem por ela se apaixonasse à primeira vista!

Mas, então, o destino fez com que a bailarina e a professora ficassem viúvas, em épocas diferentes, mas em uma época em que, ainda, os homens morriam antes das mulheres, porque, dizem, tinham mais incomodações que elas. Mas, de fato, suas viuvezes as aproximaram. Sozinhas, queriam estar juntas. Precisavam estar juntas, necessitavam uma da outra, para dividir a solidão, para compartilhar os segredos, para lutar contra a morte. Para acostumar-se com o fato de que seus dias seriam preenchidos por suas essências e por suas vivências.

Seus homens permaneceriam para sempre nos seus retratos e em suas memórias, e as lembranças que teriam deles seriam para sempre só suas, mesmo porque ninguém da família (nem mesmo as netas) atreveram-se, um dia, a perguntar se elas sentiam falta deles. É claro que sentiam. Sentiam porque eram mulheres como qualquer outra à moda antiga, e, como qualquer outra mulher à moda antiga, iriam amá-los para sempre, incondicionalmente, especialmente quando um deles havia caído de amores pela linda professora à primeira vista.

Um dia, uma delas morreu. Depois de muita, mas muita luta, a velhice venceu a batalha. A bailarina deixou de bailar. No dia seguinte à sua morte, a professora, sua mais fiel companheira, não saiu de casa, como de costume. Preferiu ficar reclusa, guardando talheres, talheres de um jantar de aniversário que tinha oferecido a um dos netos, alguns dias antes do falecimento da companheira de jornada. Limpou os talheres, guardou-os bem, e pensou na amiga. A cada faca limpa, um pensamento. A cada garfo polido, uma lembrança de um tempo que jamais retornaria. E o silêncio da sala conversava com a professora, a cada momento. Não sabia ao certo o que viria depois dali. Mas, também, já não importava mais. Poderia seguir limpando os talheres, até que um dia batessem à sua porta.

Clarice Casado
Enviado por Clarice Casado em 03/02/2005
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