Aparição

Era uma velha lenda, criada e contada por quem vivia naquela terra. Depois da chegada do estrangeiro, foi passada pelas gerações sem ser mais do que uma história para fazer com que as crianças se deitassem. O conto falava sobre um homem que se rendeu às tentações da magia negra. Ele havia se unido à noite, mas foi enganado pela própria. Amaldiçoado a permanecer no escuro, sem poder ver a luz do dia. Tinha o dever de levar a alma daqueles que morriam à terra do pós-vida. Um infeliz arauto. Uma aparição.

Tinha se mudado recentemente para a casa. O bairro ficava longe da cidade, mas não tão longe. Era seguro, o modelo ideal para uma família. Logo poderia trazer os outros para lá. Foi o primeiro a se mudar do apartamento, para dar uma checada final no novo lar. Os seus vizinhos eram amigáveis, todos tinham casas bonitas e tinham vindo lhe dar as boas vindas. Se incomodava apenas de morar ao lado de uma casa abandonada.

Os seus vizinhos lhe disseram que o dono era um velho senhor, que tinha morrido na metade do século XX. Não tinha herdeiros, e acabou por ter a casa leiloada. O novo proprietário nunca deu as caras, no entanto. Sua identidade, sua ocupação, sua moradia, eram um mistério. Não havia fiscais por lá, então a casa continuou no estado em que se encontrava desde a morte do proprietário original. Abandonada.

Era um sábado ensolarado quando começou, o primeiro dia depois que chegou à casa. Ainda estava por arrumar a casa, deseicaixotando os seus pertences e dispondo pelo seu quarto. Por um detalhe na janela, percebeu algo diferente. Ao lado da rachadura, uma visão inusitada. Na casa abandonada, de tábuas nas janelas e portas, uma luz oscilava, disforme. Olhou atentamente, por muitos minutos. Havia alguém na casa.

Desceu as escadas, quase que tropeçando. O telefone, não se lembrava onde tinha posto o telefone. Encontrou e fez a primeira ligação – polícia. A casa declarada abandonada estava sendo invadida, e provavelmente roubada. Sirenes marcaram o cenário da rua, policiais batendo à porta da casa. Rodearam a construção, procurando por sinais de entrada. Não podiam entrar sem um mandato, mas não seria necessário. Não haviam sinais de arrombamento. Estava limpa.

Na noite de domingo, ele já havia terminado o que tinha para fazer. Deitado no sofá da mobiliada sala de estar, lia tranquilo um livro. “Não se pode construir uma casa sem pregos e madeira. Se você não quiser que se construa uma casa, esconda os pregos e a madeira. Se não quiser um homem poli...” - Uma sombra passou rápido pelo livro - “...ticamente infeliz, não lhe dê...” - Outra sombra - “...os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas...” - E novamente. Aquilo o estava incomodando. Se levantou, ver do que se tratava. A sala estava parada. Ligou e desligou as luzes. Checou as lâmpadas, para ver se não havia nenhum problema. Uma sombra do outro lado da sala. Se virou rápido. Correu e desapareceu pela parede. Um vulto.

Fechou todas as portas, todas as janelas, todas as entradas. Trancou-se em seu quarto, com uma cadeira encostada na porta e um bastão metálico no outro lado da cama, como sua esposa. Talvez estivesse alucinando. Tinha dormido pouco nos últimos dias, estressado pela mudança. Estava cansado, e começou a ver coisas. Mas não custava previnir. Dormiu com a mão apertada no bastão de baseball, como uma criança debaixo das cobertas.

No dia que se seguiu, achou melhor não chamar à sua família à casa ainda. Pensava até em vende-la, mesmo depois de recém te-la comprada. Não diria o que realmente aconteceu, precisava de alguma desculpa. A casa ainda precisa de alguns ajustes técnicos, inventou. Voltando do trabalho, pensou ter visto algo tapando a lua, estático. Pensou.

As outras noites foram marcadas pelo medo e ansiedade. Não sabia quando o vulto apareceria de novo, não sabia o que era. Não estava preparado. Vindo de carro para casa, olhava para os lados, atento. Os postes de luz não eram muito fortes, o farol do veículo estava alto. Algo passou na frente do carro, ele só sentiu o calombo. Parou e deu ré, a olhar o que era. Não havia nada, nem um buraco sequer na rua. Tomou o rumo de volta para casa. A sombra na lua estava lá.

Não queria olhar, mas a curiosidade era mais forte. Comprou um binóculo para observar a lua. Não resistia à tentação de descobrir o que era aquilo que pairava na frente da lua. Com o taco na mão e o binóculo no pescoço, saiu da rua, atento a qualquer coisa. Era noite, e como sempre não havia muita luz. Mirou o binóculo na lua. Um susto.

Com um vestido negro, extensão de seu próprio corpo espalhada como tentáculos, a criatura permanecia estática. Bloqueava metade da lua, uma mancha negra no branco. Na cabeça, olhos de vermelho bordô, como o sangue. Uma boca negra por dentro e dentes afiados, brancos e brilhantes, num sorriso sinistro. O seu olhar estava fixo, encarando algo abaixo. Estava de olho nele. A aparição.

Não voltou para a casa. As chaves do carro, as chaves do carro. Pisou fundo no acelerador, disparando a 100km/h nos primeiros quinze segundos. Não era um carro muito rápido, mas era rápido o suficiente. Esperava, vez que estava depositando sua sobrevivência naquela máquina. Ultrapassou sinais vermelhos, ignorou placas de pare e contra-mão. Estava desesperado, tinha visto a aparição.

No último instante percebeu. Rota de colisão, veículo em transversal oposta. Estava rápido, ambos estavam. Virou rápido, mais do que poderia controlar. O veículo foi de frente ao poste, sendo perfurado logo no meio. O metal retorcido tinha perfurado sua perna, que sangrava em incontrolável hemorragia. Precisava de ajuda. Fugia da aparição.

Fazendo força, se arrastou para fora do banco. Caiu ao chão, sua perna a pinta-lo de vermelho. Logo do lado do carro, começava a crescer uma poça. Tentáculos negros se aproximaram por cima do carro, apenas a observar. Eles vinham devagar, sutis e sorrateiros. Leves como tecido e frios como metal, se postaram encima do corpo do homem. Ele aproximou sua face sombria do seu passageiro. O manto negro que era seu corpo em constrição do corpo do homem. Sentia seus órgãos quererem fugir pela sua boca. Havia visto o arauto da morte, e agora ele tinha vindo busca-lo. Tinha visto a aparição.

Kodlak
Enviado por Kodlak em 20/12/2011
Código do texto: T3399155
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