Schadenfreude

Sorria, sádico. A areia no chão da arena, molhada pelo sangue e pelo suor dos combatentes. Gladius levantados, os guerreiros lutavam entre si, num espetáculo rotineiro. Junção de dois teatros, o Coliseu não parava. O combate não parava. Oponentes se degladiavam até a morte, condenados. Riu quando a barriga de um dos gladiadores foi atravessada, e apenas restou ao homem a expressão de supresa e dor na face. O sofrimento alheio lhe fazia bem. Schadenfreude.

Saiu do seu camarote na arena, reservado aos altos magistrados romanos. Foi levado até sua morada, em um bairro mais reservado da capital imperial. O exuberante jardim em sua entrada, particular pelas plantas carnívoras que aumentavam em número conforme se aproximam da entrada da mansão. O caminho de mármore claro era reto. A beleza estava na simetria, mas não apenas. As pessoas viam beleza em muitas coisas – mas só ele a via na dor alheia.

A rica mansão era recheada de servos. Tinha três andares em sua composição, cada um com cômodos como salas de estar, bibliotecas, saunas, e até seu grande escritório no segundo andar, no qual exercia a sua magistratura. Mas a mansão tinha um segredo. Ninguém sabia do seu porão, mesmo sendo ele um ícone de Roma. A sala de tortura.

Em meio às pedras que sustentavam a construção, o salão subterrâneo ficava no mesmo nível dos esgotos. Era conectado a eles, mas com grades que homem nenhum atravessa. Ao longo da plataforma cercada por água, ferramentas das mais diversas se dispunham. Os mais cruéis meios de tortura, para as pessoas com quem ninguém se importava.

Naquela manhã seus servos tinham “resgatado” mais um homem das ruas. Um mendigo, louco e miserável. Não sabia o que era ser resgatado. Se soubesse, teria corrido, mordido e esperneado. Em última instância tiraria a própria vida. Não iria querer acabar como um experimento, à merce do sadismo de um homem tomado pelo Schadenfreude.

Ele chegou à mansão, na espera de se tornar um dos servos de Tiberius Rufius Quintillus, o honorável magistrado romano. Serviria a ele sim, mas como fonte de alegria. De olhos vendados, foi levado ao subterrâneo. Não era um palhaço, mas uma cobaia. Amarrado a uma cadeira de madeira e amordaçado, como um saco de pancadas.

Por muito gritou, e por muito esperneou. Mas não se escutavam mais do que murmúrios, e seus músculos não faziam mais do que tensionar. Estava preso à parede, de cabeça para baixo. Correntes o seguravam pelos calcanhares e o prendiam pelos pulsos. A rocha fria constrastava com a fervente garra metálica que puxava sua pele, lentamente ao arrancar pedaços de carne. No que sobrou de seu corpo se dispunham espinhos, sem atingir os pontos vitais, de maneira a prolongar seu sofrimento. De maneira a prolongar a diversão e a felicidade. De maneira a prolongar o Schadenfreude.

O que restou do homem – peças de carne irreconhecíveis, fatiadas, queimadas e dilaceradas – foi atirado nos arredores da capital pelos executores de Rufius. Enquanto isso, o próprio passeava pela cidade, levado pelos seus escravos encima de uma plataforma almofadada. As ruas da cidade eram lotadas, mas alas se abriam para qualquer homem que tivesse dinheiro e poder suficiente para se elevar frente as massas. Desceu ao chão para entrar em uma casa amiga, não muito distante de seus servos, quando aconteceu.

Estava escuro, e ele não via nada. Acordou com uma dor na cabeça, causada pela forte pancada a não muito tempo atrás. Escutava murmúrios, homens falando à distância. Abriu a boca para gritar, mas a mordaça o impediu. Estava com a cabeça dentro de um saco, amarrado a uma cadeira. Passos se aproximavam. O sequestrador se aproximava.

O capuz foi retirado, e a visão retomada revelou uma sala mal iluminada, com pilares de pedra que subiam ao teto, contornados por uma água suja e fedorenta. Ele estava em cima de uma plataforma de pedra, rodeada pelo líquido putrefato. O salão em si era muito familiar a ele. As ferramentas de tortura, o cenário, a iluminação fraca. Igual ao porão.

Não conhecia o homem que retirou seu capuz, mas o vulto que se aproximava revelou-se um conhecido seu. Um inimigo seu, político. Outro magistrado, com ideias e interesses opostos. Ele fez um longo discurso sobre as suas idéias e o que acontecia com os homens que iam contra ele. Se quisesse te-lo eliminado, no entanto, teria chamado um assassino. O propósito daquilo era outro, e Tiberius temia saber do que se tratava.

Ele tinha sido sequestrado, amordaçado e amarrado a uma cadeira. Se quisessem te-lo feito refém para se apossar do seu dinheiro, não precisaria estar em tais condições. Se a intenção fosse retira-lo do caminho, bastava chamar um capanga para intimida-lo. Se precisassem elimina-lo, um assassino era de se escolher. Mas ele estava preso numa sala subterrânea, num salão de tortura que era igual ao seu – senão o próprio – porão.

O outro magistrado se aproximou dele, com um olhar que ele conhecia. Nas mãos, ele carregava um açoite. Vinte tiras de ferro, cruel instrumento de punição e tortura. O sorriso do magistrado crescia, e logo a dentadura inteira estava exposta. Quintillus arregalou os olhos com o infeliz epílogo. O homem era um sadista, tanto quanto ele próprio. Era um torturador, e Tiberius era sua vítima. Tinha sido traído, vítima do que antes lhe trazia felicidade. Vítima do Schadenfreude.

Kodlak
Enviado por Kodlak em 20/12/2011
Código do texto: T3398496
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