4 Segundos
1 Segundo.
Um pingo de vermelho que toca a visão e dá estilo a tudo que se olha.
O que se olha? É outra história.
Uma casa numa colina. Uma bela casa. Pintura exterior vermelha com dois, não, três andares. Grande e glamorosa. Grandes campos próximos à colina, alguns com plantações, outros com criações de animais, outros com uma das mais belas vegetações já vistas.
Mas olhando de outro ângulo, a casa parece mais um prédio. O protagonista desce os elevadores do prédio, acompanhado pela mais bela e amada das mulheres. Dançam pelas ruas de Nova Iorque, elegantes e glamorosos. Um casal incrivelmente alternativo, belo na originalidade, afinidade e olhares. Sorriam, passavam em cafeterias nas quais tocavam bandas de rock alternativo ao vivo, tomavam algo, conversavam com os músicos, riam e/ou gargalhavam pelas ruas, de noite. Subiam novamente ao quarto, a lâmpada era vermelha, havia um clima confortante e alucinante. Haviam outras lâmpadas, sim, mas preferiam a vermelha para aquela noite. Ele tomava refrigerante numa taça, apoiado na cerca de metal da varanda. Ela o abraçava. Eles se beijavam. O vento batia forte nos dois, no vestido dela. Ele a vê nitidamente. O protagonista.
Ou talvez aquele vento, que era cheio de água, tão úmido quanto a maresia, significasse que aquela cidade, pequena aos olhos do protagonista naquele prédio, fosse o mar. E era o mar. O Sol era sorridente e se preparava para dormir. Ele assistia as ondas do mar, ainda da enorme varanda, que antes não parecia tão grande, mas agora as cercas são de madeira assim como o chão, e ele não está apoiado, mas sim sentado num enorme sofá branco com a mulher que tanto admira e ama. Uma grande porta dupla de vidro temperado, que lidera a varanda até a grande sala, recebe as vibrações de uma linda música, ecoadas de um grande reprodutor de música com aparência antiga. Agora era uma casa, uma grande casa de novo, porém com um design totalmente diferente. Moderno e antigo ao mesmo tempo, pinturas brancas e azuis (escuras) nas paredes, vidros e mármore, carpetes e madeira. Maneira totalmente alternativa de decorar um lar. Um verdadeiro lar. Um Husky Siberiano se aproxima e senta aos pés do casal que, admirando não só à música como também um ao outro, jogam qualquer jogo de tabuleiro alheio. Não há lógica nem técnica para jogar, um jogo que eles jogavam de sua própria maneira, um jogo chamado Vida. Mexiam em seus computadores, em suas revistas, em seus cadernos, em seus cabelos, nos lábios. Tocavam guitarra, piano, violão-selo, o corpo um do outro; escreviam cartas, poemas, crônicas; desbravavam mundos infinitos de possibilidades criativas. Mas por hora, atiravam tudo pelo chão, pela casa, próximo das janelas, das paredes, dos vasos onde possuíam rosas azuis (cada uma recebida num pedido de namoro), apenas para que pudessem se amar.
Ou talvez ele estivesse vendo a mão dele, no chão, tremendo.
2 Segundos.
A mão dele não estava mais no chão conforme o pingo em vermelho se tornava um borrão.
Ele segurava um controle de vídeo-game, entrelaçava os fios nos dedos do pé, olhava atentamente a tela da TV, tentava desvendar o inglês que formulava os puzzles dos jogos. Se esforçava sem nenhuma linha de partida para entender os comandos, o atraso de entrega de informação entre o aperto de um botão e a ação da personagem dos jogos. Tentava entender a história, mas se admirava mais era com a desenvoltura das personagens. Ele podia matar dragões e soldados, poderia ser os dragões e soldados, desbravar o mundo ou acabar com ele. Tinha o mundo totalmente limitado num ambiente ilimitado.
Mas de jogo ele mudava rápido, visto que o analógico parecia com uma peça de xadrez. Movia com esforço as peças para que os movimentos atendessem às regras do jogo. Atravessa campos de guerra com aquelas peças de um jogo de guerra. Um jogo de raciocínio. Equilibrava as forças fracas com as fortes, fazia valer a falta de movimentação de alguns soldados. Aprendia a lógica. Logo depois brincava com ela. Desenvolveu seus próprios puzzles, brincava com as possibilidades de criar seu próprio mundo limitado de maneiras ilimitadas. Escrevia as regras e desenhava os labirintos e personagens. Resolvia os próprios labirintos e percebia que às vezes eles se moldavam de jeito que nem mesmo ele podia recorrer a uma fácil vitória.
Jogava com palavras assim que atirou as peças e canetas para caixas e cadernos. Segurava um microfone, ajustava-o numa posição ideal, para que não houvesse microfonia. Cantava e brincava com a voz. Se decepcionava com os resultados, jogos reais eram de resultados irreversíveis. Erguia a voz e aprendia agora como usá-la. Ensaiava os dedos nas cordas da guitarra. Mas não tinha paciência ou estímulo para continuar fazendo aquilo. Deixou apodrecer as chances de... Não. Havia estímulo. Ele queria fazer a melodia mais bela para as pessoas mais belas, pareceu compreender que a melodia não era feita para o próprio ouvido, e sim para os externos. Logo depois, não eram os ouvidos que entravam em jogo, e sim os corações. Corações que deveriam sentir-se conectados com o coração do músico a partir de vibrações que, uma vez soadas, jamais poderiam soar novamente. Visto por esse lado, era estranho. Estranhamente belo. Fazer do momento o eterno. Mas talvez era esse estranhamento que fizesse todos pularem junto com o som, dançarem ao som, dormirem ao som. O som fez do jogo uma brincadeira agradável, com maior adrenalina. Algo que não poderia, porém, ser produzido sem a ajuda de alguém. A banda não é solitária.
Mas o som se esvaecia aos poucos. Ecoava junto aos estrondos aleatórios no ar.
A mão não segurava mais nenhum microfone ou instrumentos, mas tentava agarrar qualquer coisa que não fosse o ar. Mão jogada ao chão de madeira velha. Mão admirada por telespectadores de suas contorções. Mão sem movimento voluntário. Mão morta e derrotada. Sem a esperança de jamais tocar ou jogar da maneira de uma vez fez.
Terceiro Segundo.
E a visão dele é quase tomada pelo vermelho. Uma pequena parte inferior não é manchada. Como é ver quase tudo assim?
Mas o que é ver?
Ele poderia ser cego, mas ainda assim ia sentir a visão se tornando vermelha.
Não era cego, porém, e enxergava muito bem, o término de um beijo extremamente doce com a mulher de sua vida. Um lugar que deveria ser branco e azul, mas não era uma casa próxima ao mar. Um quarto sem localização exata no tempo-espaço. Era só um quarto. Era O quarto da sua vida. Selecionou a Vida como opção verdadeira. E tentou fazer Vida, com ela. Um quarto totalmente decorado, com banheira, cama grande, várias estatuetas, mas o mais importante: decorado com Amor. Tentativa que não chegou a saber se seria falha ou não. Mas era Amor, e a tentativa estava concretizada, irrelevante o resultado concreto, o resultado para ele seria sempre positivo.
Era cego, também, pois não enxergava com os olhos, e sim com o coração, quando toda aquela multidão pulava com o som que ele fazia. Ele dedicava a música, era fiel aos seus próprios idéias. Ensinava como bom professor as teorias da vida que ele havia criado a partir de teorias musicais que ele havia modificado. Fazia errado aquilo que era certo, e fazia o errado virar certo. Era músico, cantor, filósofo, ator, filho e marido. Colocava fogo no ar com a música que queimava nos corpos de quem pulava junto. Quebrava barreiras de som enquanto formulava barreiras infinitas.
Tão cego que não enxergava o corpo da amada, mas sentia os contornos e sentia também o vento que carregava a voz doce da mesma. O que enxergava eram cores atiradas no espaço como um mosaico de sentimentos nas janelas dos prédios. Sua casa, seu futuro, sua vida, não era importante a maneira que tudo se desenrolava, e sim o que desenrolava. E tudo era belo na medida do possível.
Mas se tudo pudesse ser mosaico de cores durante os quatro segundos...
Foi no quarto segundo, no entanto, que tudo tomou uma outra direção.
Uma cor só.
Tudo vermelho.
E era tudo ódio. Pois o mundo era injusto. Suas vontades e forças sucumbiam no espectro daquele vermelho. Ele vestiu o uniforme de um soldado para sair de casa, pois as ruas eram o novo campo de batalha. Violência e redenção sucumbiam no vermelho espectral. E por mais que ele conseguisse mudar, o que mudaria? Nada jamais sucumbiria a um espectro.
Não era nada Ódio. Era tudo Amor. Amor à Vida, ou ao menos às coisas que fazem nos sentir vivos. Amor é a força que o Ódio precisa para fazer honrar o vermelho dos olhos, o vermelho do céu, o vermelho do fogo, o vermelho do sangue. Amor é, porém, a única saída do Ódio. E ele sabia disso. Ele podia ter optado por não usar aquele uniforme aquele dia. Mas, se outros dias haviam funcionado, por qual motivo havia de não funcionar? Nada jamais havia funcionado.
Ele foi protetor do Amor de pessoas que jamais haviam pedido por essa proteção para ele. Elas pedem para seres errados e inexistentes. Elas pedem aos céus, e o que os céus dão é apenas a chuva. A chuva que lava as ações de Amor desse homem. Ele preservou a pureza do Amor utilizando da maneira mais impura em nome da pureza da tirada à força das pessoas que não mereciam.
Ódio e Violência levavam ao chão, em câmera lenta, sua mão.
Não se sabe se ele tentava impedir um assalto ou se ia até a casa dos assaltantes.
Um tiro.
Mas talvez não tivesse morrido por tiro. Talvez estivesse num hospital, sofrendo delírios por causa dos distúrbios mentais causados pelo excesso de informação e “sentimentos”.
Talvez não estivesse nem próximo da morte.
Talvez estivesse mais vivo do que nunca, esperando o tempo passar para reencontrar a felicidade, tendo momento de angústias imaginárias.
Ou Talvez estivesse numa cama, com a Mulher dos seus Sonhos, atingindo o momento de maior prazer da sua vida.
E se fosse um tiro?
Já não foi?
E se fosse Amor... Mas não é?
E se for apenas a Vida, passando diante dos seus olhos, sem nem tem passado em qualquer outro lugar antes?
1 Segundo e o futuro parece ilimitado.
2 Segundos e o Futuro não é nada mais do que seu Passado.
3 Segundos e sua Vida é um plano sem planejamento, na hipótese de metaforizar o seu presente.
4 Segundos.