Enfim, o fim.
A dama em seu vestido florido não andava como qualquer pessoa comum. Ela desfilava toda sua beleza em pouco mais de um metro e setenta, não se julgava bela, como a maioria das damas, mas se considerava feliz, e isso bastava. Bastava pois conhecia a arte. Na verdade, a arte a conhecia e nela vivia.
Nem mesmo seu problema de saúde a desanimava. Nada seria capaz de derrubá-la, a julgar por sua força de vontade.
Assim ela era.
Nas vezes que necessitava executar uma tarefa que sua mãe lhe incumbia, a jovem dama dançarolava para lá e para cá. Seus longos cabelos castanhos sacudiam de um lado para o outro, igualmente bailarinos.
Sua felicidade era contagiante. Sempre deixava o próximo em êxtase. Não havia explicação. Não havia o que explicar. Ela era assim.
A natureza conspirava à seu favor, na maior parte das vezes. Quando não às nuvens ranzinzas se abriam perante à sua beleza e a grande estrela amarela irradiava seu calor e seus olhos para iluminar o caminho para qualquer lugar que fosse. Só que naquele dia, as mãos não estavam dadas e seus olhos amendoados não prestavam atenção ao que vinha.
O motorista, como qualquer outro infame e mau educado, vasculhava, embaixo do assento, a seu lado, outra de suas loiras geladas que havia trazido do churrasco com os amigos da faculdade, mas que naquele momento não mais conservavam a mesma temperatura.
A festa tinha sido bem animada, mas não como o motorista imaginava. Esperava que pudesse voltar acompanhado ou que, no mínimo, estivesse nesse momento em algum quarto, nu, aproveitando a bebedeira alheia.
No entanto, nem sempre se tem o que se deseja. O motorista não se cansava de ouvir isso. Quando voltou seus olhos á estrada, de onde nunca deveria ter se deslocado, não pôde evitar. O choque foi inevitável.
Poucos segundos. Pareceriam séculos. Não se saberia dizer ao certo.Os olhos do motorista, agora atentos à sua frente, estava saltados, como se alguém os estivesse arrancado de suas órbitas à força. Ela, a jovem e bela dama com seu vestido florido, enfeitava o asfalto, punha cores onde nada havia. Verde, azul, amarelo no cinza.
Como cinzas de vulcão que caem sobre um jardim em plena primavera.
A porta se abriu. Uma perna, após outra, e o jovem, bêbado, motorista estava fora do carro, próximo à jovem. Não havia sangue. Por sorte, ou destino, o motorista estava em baixa velocidade, era tão deslocado e atrapalhado, que até para procurar sua cerveja, não conseguia executar mais de uma tarefa ao mesmo tempo, e com isso, desacelerou, o que viria a evitar o pior.
O céu estava desanuviado, como sempre estava para ela. O impacto, não foi forte, mas, existiu e a fez cair, estatelar-se ao chão, afinal, sua desatenção ao seu redor somava-se a sua facilidade em cair ao esbarrar-se. Sentiu o carro, não o ouviu, pensou que o motorista não devia tê-la visto. Acreditava na bondade das pessoas. Culpava-se sempre.
Quando a sombra lhe caiu, achou que estava longe. O hálito de quem ingeriu alcóol além da conta lhe fez voltar de onde quer que estivesse. A barba por fazer lhe chamou a atenção, os óculos tortos nem lhe faziam sentido. Parecia que estavam ali pra completar o nariz torto e o cabelo bagunçado. Riu.
Soava tão encantadoramente que assustou-se ao notar que a moça que acabara de atingir, no chão, gargalhava do céu acima de sua cabeça, forte, que o queimava. Detestava calor. Mas amava as flores que carregavam a moça. Ou a dama carregava.
Seus lábios se contorceram e arrastaram, e finalmente conseguiu perguntar sobre seu estado.
- Desculpe. Te machuquei. Onde dói? Vou chamar a ambulância.- Os lábios, percebeu a dama-moça, moviam-se desajeitosamente, devido ao excesso do rapaz, ou pelo temor que deixava transpassar por trás dos aros remendados por sobre o nariz.
- Você não tem dinheiro pra trocar de óculos? – A frase, soou tão estranho quanto sentir que ainda estava deitada sobre o asfalto, que agora começa a lhe incomodar.
Atrapalhou-se, não esperava. Afinal, como esperar o inesperado? O Rapaz, não sabia como agir, o ontem mal motorista, agora era o seu socorrista. Estava errado, sabia, mas, não iria continuar errando. Errou muito no passado, erraria muito no futuro, porém, não o faria ali, naquele instante, naquele momento, não com aquela jovem dama.
Sentiu as mãos tocarem-lhe a nuca e o bafo, já não mais forte como d’antes se aproximar, mas não se incomodou. Na verdade, não estava machucada, mas queria saber o que se passava naquele rapaz todo estranho que lhe havia atropelado e tentava ajustar as contas resgatando-a.
Não sabia como agir. Levantou-a cautelosamente, mesmo sabendo que não deveria, uma vez que sempre via na televisão que não se deveria mexer em vitimas de acidentes. O fez mesmo assim.
Os olhos se encontraram, mais uma dentre muitas outras vezes, e se desencontraram, como em muitas outras vezes depois. Não era tão forte. Ela percebeu. Se deixou carregar, como uma flor ao ser arrancada, sorriu-lhe antes de dizer o que não era óbvio e que fez soar mais estranho ao rapaz:
-Não pensei que fosse ser assim, mas me fez ser alguém, por poucos minutos e me tornou além do que imaginava poder ser. – As palavras soaram como uma música daqueles lábios finos, os cabelos esvoaçavam com a leve brisa que a natureza insistia em mandar.
O rapaz, nada entendeu, e quando a depositou na calçada, livrando-a do pior, ao menos o que imaginou de antemão, viu-se derramando gotas lacrimais nas bochechas claras da dama, e mesmo não sabendo o porque, não poderia deixá-la sem a devida resposta:
Me perdoe pelo que fiz, cheguei e não cheguei a tempo, mas senti que deveria fazer, mesmo não podendo, mas era o que tinha que ser feito – Gaguejava vergonhosamente o agora não mais afetado pela bebida, motorista mau educado.
Se as nuvens se cansaram e o sol não desejava estar presente, ficaram claro anos mais tarde. Certo é que as cinzas cobriram o céus, pequenas gotas escorreram por entres os cabelos encaracolados e rebeldes do rapaz e dos ondulados, da garota, e carregaram para longe as lágrimas do rapaz, junto com o espírito da garota, que mesmo estando adoecido, se sentiu vivo e saudável como nunca antes e naqueles instantes finais, provocados por um estranho acidente, que unira por pouco tempo e pra sempre, almas que se perderam um dia, e que se encontraram, enfim.