O cavalo das almas

Licinha ajudava como podia. Subia no telhado e, com vara, várias vezes mais longa que suas finas perninhas, socava, socava com força, pra dentro da chaminé.

A mãe talvez nem soubesse, (não, não sabia), o perigo que a filha corria. Em pé, sem apoio, girava no ar os braços, brincando de equilibrista. E ria.

Depois não descia, era por lá que ficava, no seu mundo de silêncio e telhas, e os livros que lia.

Às vezes ouvia o canto feliz da mãe, que cozia. Esquecida das pragas que há pouco rogava:

- Cavalo das almas!

Toda a pobreza, cansaço e fumaça, o fogão resumia.

Velho vermelho fogão, de cimento e lenha, e fogo, e choro. Nuns dias picumã, noutros iguarias. Nunca soube Licinha de onde vinha o nome e o porquê, achava que se tratava de tudo aquilo que entupia.

- Cavalo das almas!

E a vida seguia, como tinha de ser.

Numa noite, talvez véspera de Natal, findo um desses dias de pragas rogadas, ouviu Licinha a mãe que chorava, coberta de raiva, pobreza, cansaço e fumaça, e o pai que dizia: - Calma, velha! Não era pra eu lhe dizer (então, porque é que dizia?) mas amanhã ganharás um novinho, à gás!

Dos dias seguintes não se lembra, mas ainda em si e em meia dúzia de seres, mesmo que a ninguém mais faça sentido, haverá para sempre o amado inimigo:

- Cavalo das almas!

E a vida seguiu, como tinha de ser.

Alice Gomes
Enviado por Alice Gomes em 11/12/2011
Reeditado em 28/02/2012
Código do texto: T3382730
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