SURFO, LOGO EXISTO - II
Pressenti o trovão, quando ainda era um vago e indistinto rumor ao longe.
Vislumbrei o relâmpago, enquanto era ainda um tênue clarão no horizonte inalcançável.
Senti o vento sobre mim, quando ninguém percebia nem mesmo a cálida brisa que ameaçava soprar.
Cada poro do meu corpo recebe a carga de eletricidade estática pairando no ar; cada fibra de meu coração indomado reverbera ansiosa em meu peito impaciente. Como um animal, esse irmão, eu os pressinto; como nossos ancestrais, percebo. Intuo. Interpreto. Antes de todos. Antes mesmo que estejam lá, eu os farejo, os sinais. Eles me avisam, me alertam, me fazem saber que ela está se formando, que está próxima. Silenciosa, avassaladora, vital. Maravilhosamente selvagem, lindamente caótica, gigantesca, indomável. A minha ansiada tempestade perfeita, com suas furiosas, incontroláveis montanhas de água. Elas vem até mim. Eu as aguardo ansiosamente; foi para viver este momento que nasci. Toda a minha existência sobre a terra encaminhou-me para isso; esta é a minha sina, a minha vocação, minha missão, meu destino. Este é o sentido e a essência da vida. Desafiei cada um dos picos de ondas grandes do planeta: Na remada, de Tow in. Jaws, Maverick's, Dungeon's, Prowlers, Shipstern Bluff, aquela onda monstruosa em Teahupoo; muitos picos, eu mesmo descobri; em muitos deles, fui o primeiro e único a surfar. Não poucas vezes estive suspenso na borda do abismo; não poucas vezes estive pendurado entre este mundo e o além. Venci cada uma destas poderosas ondas; entretanto, todas as coisas que vivi até aqui foram apenas uma violenta preparação; foram um mero vislumbre deste momento crucial. Quando eu era um menino, via e pensava como um menino... Hoje, saberei se me tornei um homem; hoje, me transformarei naquilo para o que fui talhado.
O barco pesqueiro no qual trabalho há três meses -apenas para chegar a este local, apenas para chegar a este momento- é violentamente fustigado pelo vento e pelas ondas. A temperatura cai. Agora eles também já sabem o que vem pela frente. O capitão vocifera ordens metálicas; os marujos assustados obedecem sem questionamentos. Sabem que suas vidas dependem do conhecimento e da habilidade deste velho lobo do mar. Porém, nem mesmo ele vislumbra a magnitude do que estamos enfrentando. Vou até a cabine. Revelo a ele o segredo que mantive até este momento determinante. Horrorizado, me olha com olhos de espanto e pavor. Hesita por um instante, duvida da minha sanidade; então, num movimento vigoroso, gira o leme na direção oposta à da tormenta. Não há esperança para eles contra a potência da natureza, precisam fugir. Aceno uma despedida com a cabeça. Desço correndo as escadas, vou até a amurada do barco. Amarrada num canto, minha prancha, minha companheira. É uma prancha especial, desenvolvida exclusivamente para esta ocasião. Nove pés, três quilhas enormes e um pedaço de chumbo incrustado em seu interior. Espero que seja suficiente...
Rapidamente, tiro a roupa de pescador. Por baixo, o long john de neoprene e uma pequena mochila com os equipamentos de que posso necessitar após cumprir minha missão: sinalizador, um pequeno tubo de oxigênio, alimentos desidratados, água. Apenas o suficiente para esperar o resgate... se eu vier a sobreviver.
Antes que alguém se dê conta e tente me impedir, lanço-me ao mar. O capitão ignora os gritos desesperados da tripulação, para que volte e me resgate; ela sabe que eu não necessito, não posso, não quero ser resgatado. Ele contemplou em meus olhos meu destino. Sem olhar para trás, sei que o barco se afasta lentamente da tormenta, que se agiganta a cada instante. O mundo escurece, raios ferozes riscam o céu, trovões ensurdecedores reverberam na vastidão do oceano bravio, o vento ruge incessante ao meu redor. A natureza se rebela contra a minha presença? Ou ela simplesmente manifesta sua glória como lhe cumpre fazer desde o princípio dos tempos? Terei desafiado as potências do abismo, ou exerço meu destino de dominar sobre a terra?
Ao meu redor, se erguem terríveis montanhas disformes; ao meu redor, se abrem profundos e obscuros abismos. Meu coração acelera, o medo se manifesta como deveria ser, minha mente tentando convencer meu corpo de que deveria fugir daquele perigo, daquele confronto, daquela morte. Porém meu espírito domina meu intelecto, e daqui para a frente serei músculos, serei força, serei surfe, serei instinto. Remo ainda mais forte na direção do monstro que vai ganhando sempre mais força; é ali que devo estar. Bestas de mais de cem pés de altura, jamais contempladas por olhos humanos, jamais desafiadas por mortais comuns, feras vorazes, ondas gigantes, dantescas, selvagens, irregulares, indomáveis. Indomáveis? É o que veremos...
Enquanto remo sobre minha prancha, minha companheira, prestes a desafiar meu próprio leviatã, cada vez mais perto de meu fim e meu desejo, medito; enquanto remo, penso em Borges:
“Breve saberei quem sou*”