Encontro com o passado
Último dia de julho, uma manhã fatídica, sem cheiro, sem gosto.
George rapidamente terminou de escovar os dentes, guardando a pasta dentro da gaveta de coloração branco-perolizada e saiu do banheiro fechando atrás de si a porta.
Essa era a segunda vez na semana que ele sairia de casa. A primeira foi porque o bendito do novo carteiro ficou com medo de atravessar o quintal por culpa do cachorro (um chiuaua de dois meses de idade) que não parava de latir. Com isso, George teve de caminhar até o portão vestindo apenas um roupão cor de vinho e chinelos gastos. Se não fosse por esse patético motivo, ele teria ficado a semana inteira assistindo aos filmes da locadora, aproveitando os vinte e um dias de folga, mas para a sua infelicidade o convite entregue juntamente com as cartas levava ao compromisso da segunda vez, esta que se mostrou ser um motivo mais perturbador do que a primeira para sair: ele teria um encontro com alguém que nunca havia visto. Ao menos essa seria a primeira e última vez.
George suspirou, a ansiedade crescia dos pés à cabeça. Não era algo que ele desejava. Sabia que aconteceria algum dia, mas para esse tipo de coisa não há como se preparar. Então abotoou o paletó, passou as chaves no trinco da porta e virou-se para a rua.
O céu parecia um quadro de aquarela borrado. Uma bela tarde para beber chá e comer biscoitos de maizena, mas quando chegasse em casa não teria vontade de comer nada. O gosto amargo do encontro contaminaria sua boca por anos, talvez décadas. Mas era preciso ir, era sua única chance, pensou George.
Ao descer o pequeno degrau de dois centímetros, seu sapato fez um barulho, fazendo-o sentir-se constrangido. Não gostava de chamar atenção para si.
Olhou para os lados, não queria que ninguém o visse logo pela manhã, mas já era tarde demais, sua vizinha, uma idosa de avental, cuidava de seu jardim quando olhou e sorriu para George.
O homem, tímido desde o tempo das fraldas limitou-se apenas em abrir a boca num “bom dia” mudo. De cabeça baixa atravessou o portão às pressas e meteu-se num jogo rápido de pisadas, quase correndo.
Ele tinha a sensação de estar fugindo. Sempre o fez em toda a vida, mas agora era diferente, não poderia viajar em cima da hora, nem arranjar um compromisso como desculpa, dessa vez ele realmente tinha de ir. Não havia outra opção na lista.
George passou a palma da mão pelo rosto quando avistou a pequena casa. E quando se deu conta já estava tocando a campainha.
Uma mulher de pernas macilentas camufladas por uma calça cor de creme e de tecido leve abriu a porta e olhou seca para ele. A roupa dela era estranha para um dia de frio e tão cinzento. Os braços nús e pálidos tremiam.
- Você deve ser George – ela disse, e sua voz era demasiada rouca.
- Recebi o convite recentemente – ele respondeu depois de uma pausa – espero não ser tarde demais para vê-lo.
Ela continuava olhando para ele, George nunca soube se expressar do modo correto, mas a mulher não sabia disso, de modo que se ofendeu.
Os dois caminharam até a sala em silêncio, haviam parentes distantes no recinto, todos com rostos cabisbaixos.
George foi conduzido até um canto bem arrumado e enfeitado com lençóis brancos de seda. Ele se perguntava se conseguiria olhar para o corpo dentro do caixão. Respirou fundo e aumentou os passos, até que avistou o rosto velho e enrugado de seu pai. Era a primeira e última vez que via aquelas bochechas murchas e dedos magros. Ele sentiu um calafrio, parecia estar olhando o seu reflexo num espelho. Não seria o próprio George ali deitado morto? Loucura.
Ele se afastou e foi para casa o mais rápido possível, não aceitou nem um suco de uva. A lembrança de um passado frustrado assusta os humanos.