UM CONTO DE FÉRIAS

Pois eu digo, poucas foram as vezes em que senti medo na vida. E uma delas foi quando eu vi, pela primeira vez aquela figura tão estranha. O nome dele era Goubert; um nome, talvez comum em outras terras, porém estranho por aqui. As ruas do bairro não eram pavimentadas. De vez em quando, o prefeito mandava jogar cascalho e nivelar; ia enrolando a população, que sempre reivindicava o asfaltamento das ruas do bairro. Eu morava em uma casa próximo da esquina, a segunda casa, sem contar com o lote vago da esquina, todo murado. Dobrando-se a esquina, a rua se prolongava por um longo trecho, cruzando por mais uma rua paralela com a da minha casa, a partir da qual continuava subindo um morro em forte aclive, e diga-se aqui, num trecho mito mal conservado, coberto por mato rasteiro, deixando apenas os trilhos formados pelas rodas de carro, e findando a cerda de cem metros acima, justamente à porá do casarão dos Borges. Neste último quarteirão existia apenas essa construção, isolada das demais. O casarão dos Borges era assim chamado devido à família que o construiu. Eles eram donos de toda a área que formava o bairro. Lotearam tudo. Ficaram apenas com esta última quadra, onde empregaram grande parte do dinheiro na construção do casarão, do qual se podia ver toda a cidade. Depois, não sei dizer ao certo, faliram e tiveram que vendê-lo, porém conservando o nome dos antigos donos. Estava fechado há mitos anos; não me lembro de outros moradores daquele “castelo”. Fora agora alugado, a cerca de um mês, por essa família que nesse período todo, eu não conhecia qualquer de seus integrantes. Apesar da curiosidade, não dei muita importância ao fato de não tê-los visto ainda, porque era final de ano i iniciara o período das provas e precisava estudar muito para não repetir o ano escolar. Agora que estávamos no período das férias, começara a aguçar a minha curiosidade sobre os misteriosos moradores do casarão dos Borges. O que nos leva de volta ao início do texto. Eu estava sentado em uma pedra, riscando o chão com um graveto, procurando uma desculpa para perambular pelas redondezas do casarão; surge então, na esquina, aquela figura tão singular, esquelética, olhos negros e fundos, queixo fino e saliente, braços alongados desproporcionais ao tamanho do corpo, que não era muito alto e que ele procurava compensar a altura com um penteado para cima. Virou a esquina e parou olhando fixamente em mim. Fiquei estático. Tive vontade de correr, mas nenhum músculo respondia à minha vontade. Ele parou apenas por um instante, que para mim foi uma eternidade. Veio em minha direção, desviou o olhar para frente e continuou como se eu não existisse. Ao contrário, eu não consegui tirar os olhos daquela figura. Não sei como explicar exatamente a sensação, mas era uma mistura de medo e curiosidade. Ele passou na minha frente e nem me deu muita atenção, o que pra mim queria dizer que, aquele medo inicial não se justificava. “Que tipo mais esquisito!”, pensei. Seriam todos os outros da família assim tão estranhos? Minha curiosidade ficara ainda maior. Eu precisava saber disso. Mas o bom senso, chamemos assim, não permitiu que seguisse em frente com a idéia de ir perambular próximo daquela casa.

Por três dias, fiquei vigiando o movimento da casa. Aquele homem saia de casa duas vezes ao dia, sempre no mesmo horário, pela manhã e à tarde. Na tarde do terceiro dia, o vi passando de volta ao casarão acompanhado de uma criança de cerca de oito anos. Fiquei o resto da tarde esperando. “Seria aquele menino um dos moradores daquela casa?” Se não fosse, quando saísse, eu o obrigaria a em fazer um relatório completo sobre o que se passa no ‘castelo’. É isso. Ele não deve ser daquela casa. Não saiu junto com o homem, portanto não pertence àquela família. Eu tenho mais força que ele, tenho onze anos e ele não deve ter mais que sete, oito... Vai ser fácil” – pensei eu. Esperei um bom tempo por ali, andando às vezes até a esquina e voltando. Nada. O menino não saiu mais. Não o vi nem nos dias seguintes, nem mesmo quando aquele homem se ausentava. Supus então que me enganara. Ele devia morar na casa e saíra naquele dia em horário que eu não me encontrava por ali e que o homem o havia ido buscar.

Cerca de uma semana depois, o “bom senso” já não era assim tão forte. Já me aventurava pela rua acima até próximo do casarão. Passava por ali fingindo procurar algo, apanhava alguma fruta no terreno em frente. Fiz isso por dois dias, quando no final do segundo, pude vislumbrar por uma janela a figura de uma menina, linda, mais ou menos da minha idade, cabelos longos e negros, pela alva como leite. Não me viu, ou se viu, fingiu não me ter percebido. Fiquei observando longamente, admirado por sua beleza, quando Goubert se aproximou dela, fazendo com que se afastasse para o interior da casa. Em seguida ele olhou pela janela em minha direção. Eu me abaixei, procurando me esconder entre os arbustos da rua. Soergui-me em seguida e ele já não estava mais lá.

No dia seguinte estava eu em frente de casa, no horário de sempre, ele foi passando, virou o rosto em minha direção, procurou por um sorriso no rosto e acenou de leve com a cabeça. Devolvi-lhe o sorriso sem graça. Ele já se achava a uns cinqüenta metros à frente, quando num impulso, resolvi alcançá-lo. Havia perdido o medo e senti que poderia me aproximar. O alcancei e seguimos alguns passos lado a lado.

- Oi – disse eu, finalmente.

- Ola, meu jovem – respondeu sem me olhar.

Percebi que não era brasileiro pelo forte sotaque.

- O senhor mora no casarão, não é?

- Sim.

- O senhor mora sozinho?

Ele virou o rosto em minha direção, me olhando nos olhos.

- Você sabe que não. Eu o vi rondando a casa nos últimos dias, meu rapaz, Encontrou o que procurava?

- Desculpe. Não queria me intrometer. Na verdade queria conhecer os novos vizinhos. Estava apenas curioso.

Ele não respondeu. Continuamos andando em silêncio. Pouco depois:

- Meu nome é Fabrício...

Não perguntei, mas esperei que me dissesse o seu nome. Parece que ele entendeu minha pausa. Novamente me olhou com seus olhos fundos e disse:

- O meu é Goubert.

- Gubé?

- Goubert – repetiu.

- Não é brasileiro, né!? De onde é?

Ele não se importou com a minha insistência. Sorriu e respondeu:

- Meu pai era irlandês. Minha mãe francesa. Mas nasci na Polônia.

Sinto que tenho as três nacionalidades.

- O senhor conhece então os três países...

Ele riu.

- Conheço toda a Europa e Ásia. Meus pais nunca se fixaram em um país por mais de dois anos. Depois de adulto, passei a trabalhar com meus atuais patrões.

- É empregado deles?

- Sim. Um espécie de... como se diz... gerente... não, não é essa a palavra...

- Um mordomo que faz tudo – opinei.

- Isso. Um mordomo que faz tudo por eles. Desde os assuntos domésticos aos de negócios fora daquele casarão.

- Não conheço aquele casarão por dentro. Gostaria de conhecer como é por dentro – disse pensando na garota que havia visto pela janela.

Paramos numa esquina. Ele olha nas quatro direções do cruzamento. Fica em silêncio por um instante e diz:

- Qualquer dia o levo pra conhecer. Mas num horário que meus patrões estejam dormindo. Os Raminski não gostam de visitas.

Sorriu mais uma vez, enfiou a mão no bolso, tirou duas balas de hortelã e me deu.

- Agora volte pra casa. Sua mãe pode ficar preocupada. Devo ir longe.

Aceitei de bom grado o presente. Agradeci e me pus de volta à minha casa.

Durante a semana inteira segui com ele o mesmo trajeto. Ele sempre me dava duas balas de hortelã. Havia simpatizado por ele; principalmente pelos presentes que me dava. Sempre o via passar de volta e acenava pra ele. Ele retribuía com um aceno de cabeça.

Finalmente, numa das tardes, na esquina, ele me disse:

- Acho que vou levá-lo pra conhecer o casarão hoje. Meus patrões não estarão em casa. Mas tem que ser rápido. E não pode contar pra ninguém, senão pode me trazer problemas.

- Claro, claro... Não contarei pra ninguém.

- Me espere que passarei daqui a pouco. Hoje não me demorarei. Daqui a quinze minutos estarei de volta.

Deu-me apenas uma bala. Aceitei e me pus de volta pra casa.

Assim que pus a bala na boca senti um sabor estranho. Na verdade era uma mistura de sabores. Não podia identificá-los, mas era agradável. Era algo como uma mistura de menta-cassis-pistache, ou menta e qualquer outra fruta que não sei dizer qual. O fato é que adorei aquele sabor. Senti-me solto, mais relaxado, uma sensação inexplicável de contentamento.

Como dissera, quinze minutos depois lá estava ele de volta. Chegou já com uma bala na mão. Aceitei de imediato e pude constatar que o sabor desta era mais forte e daquela.

- Gostosa essa bala. Mas não sei dizer de que é feita.

- Oh... É uma receita de família. Não irá encontrar em nenhuma loja de doces. Depois eu lho mostro como faço.

Caminhamos até o casarão. Antes de entrar ele me recomendou:

- Não devemos demorar. Há setores da casa que não poderá ir. Não saia de perto de mim, porque há cães nas dependências dos fundos.

Concordei e entramos.

Como disse, nunca havia entrado no casarão. Fiquei vislumbrado com tanta beleza. Móveis antigos compunham a enorme sala em L. Do teto, desciam dois listres de cristal. No chão, tapetes lindíssimos. Sobre ele, cadeiras almofadadas com o apoio para os braços e pernas bem trabalhadas; não me disse de onde eram, mas pareciam antigos. Na mesma sala, mais ao fundo, mais poltronas dispostas em círculo com uma mesinha no centro. Havia uma porta lateral que dava num pequeno jardim sem coberto. A porta estava semi-aberta. Goubert seguiu por uma porta à direita. Eu me detive por um instante na porta lateral e sem perceber passei por ela. Num espaço de uns trinta metros quadrados, pude ver, apesar da pouca luminosidade, um pequeno jardim com plantas que nunca havia visto na região. Plantas com um verde muito escuro e felpudas. Não possuíam galhos, cresciam numa única haste de onde saíam as folhas, e, na ponta de algumas, brotava uma flor, que antes me parecera negra, mas quando me aproximei, percebi ser roxa bem escura. O ar ali era úmido e carregado. No ar, sentia o perfume parecido com o do doce em minha boca. Sentia-me leve e ao mesmo tempo aturdido. Sabor do drops em minha boca ficava cada vez mais forte, mas não conseguia tirá-lo da boca. Sentia-me meio zonzo. Olhei em volta procurando fixar os detalhes das plantas e vi algo se mexendo. Parei e tentei firmar a vista. Era algo cilíndrico. Mexeu-se novamente. Fui acompanhando até a ponta e esta se levantou com a cabeça triangular, colocando seguidamente a língua bifurcada pra fora e seus olhos fixos em mim.

Dei um grito. A enorme píton ameaçou se aproximar. Goubert surgiu por outra porta, que eu ainda não havia percebido.

- Calma – disse ele. Não se mexa.

Como se eu pudesse. Ele se aproximou e me puxou pelo braço e saímos pela porta que ele tinha entrado.

- Disse pra não se afastar de mim. Não pode entrar ali.

Aturdido, não sei se pelo susto ou pela sensação daquele sabor que a essa altura já não estava achando nada agradável, não respondi, fiquei olhando pra ele e para o pequeno jardim coberto.

Ouvimos um ruído atrás de nós. Nos viramos e lá estava ele: um cão enorme, negro, parecia possuir presas maiores do que o normal. Estava ali, deixando escorrer a baba entre os dentes à mostra, rosnando. Pude notar que não possuía cauda, mas possuía juba com os leões, só que negra, o que não me impediu de notar que usava um colar dourado no qual estava pendurado um amuleto em formato de estrela, que em cada ponta possuía uma pedra brilhante, talvez diamante, e no centro um enorme rubi. Estranha raça aquela; estranho amuleto também. Afastamo-nos em direção ao jardim. Lembrei-me do réptil. Goubert disse:

- Calma. Ele não entra aqui dentro. A cobra não nos fará mal.

Respiramos um pouco. Olhei em volta, procurando pela cobra. Não a vi. Devia estar escondida mais ao fundo e eu na queria ir lá pra confirmar. Goubert me disse:

- Melhor sairmos daqui.

Seguimos em direção à outra porta. Entramos na sala da frente. No meio dela estava, de costas, a jovem que eu havia visto dia atrás na janela. Seus cabelos eram compridos, à altura dos quadris. Usava um vestido longo, branco. Fui em sua direção. Quando ia me aproximando, ela se virou, me olhando fixamente com seus olhos em tonalidade cinza, com íris na vertical como nas cobras. Novamente soltei outro grito de espanto e pulei pra trás em direção a Goubert.

- Seu inútil – disse a menina voltando seu olhar para Goubert – Quase estraga tudo.

- Desculpe, senhora.

Minha visão começava a misturar os objetos, mas senti que era melhor me afastar também de Goubert. Comecei a andar pra trás olhando pra um e para outro. A menina continuou:

- Mas podemos corrigir tudo, não é maninha?

“Maninha”?

Olhei pra trás e lá estava sua irmã gêmea, só que esta estava nua. Só então pude notar que usavam colares idênticos ao do cão. A irmã nua, que trazia a mão direita escondida nas costas, descobriu-a mostrando uma seringa cheia de um líquido em tom violeta. Pulou em cima de mim tentando me injetar o líquido. Consegui segurar sua mão, procurando me defender.

- Segure-o, Goubert.

Ele se aproximou e tentou me segurar por trás. Caímos os três. A agulha feriu-me pouco acima da sobrancelha, e um pouco do líquido escorreu sobre a ferida. Não senti dor. Senti adormecer parte do rosto. Não sei dizer como, mas segurando a mão da menina, consegui empurrar a seringa em direção da perna de Goubert e injetar todo o líquido. Ele caiu em seguida, inerte.

- Seu desgraçado – esbravejou ela.

Consegui me desvencilhar e corri em direção à saída da frente. Passei pela primeira menina que estava parada, apenas olhando e sorrindo. Não esboçou nenhuma reação ou tentativa de me deter.

Dobrei a sala em L e corri em direção da porta. O vento a bateu e não achei o trinco. Escondi-me atrás de uma poltrona. Ouvi a primeira menina falar à outra:

- Idiota. Injetou no Goubert. Agora temos que consumi-lo

- É uma pena. Gostava dele.

- Não deveria gostar de ninguém.

- E você não deveria ter deixado o garoto fugir.

- Ele não irá longe. Você conseguiu injetar um pouco nele.

- Apenas o aranhei com a agulha.

Fez uma pausa e continuou:

- Vamos, temos que terminar logo com isso.

Fez-se um silêncio demorado. Olhei em volta. Estava tudo girando, meu rosto amortecido. Tudo girava à minha volta. Os móveis pareciam cair em cima de mim. Estava difícil coordenar as idéias, porém sabia de uma coisa: Deveria sair dali o mais rápido possível. Aproximei-me da porta, mas não consegui achar o trinco que abria por dentro. Olhei em direção onde estavam as garotas e vi algo se contorcendo no chão. Uma delas estava se alongando, espichando o pescoço, eu não conseguia ver seus braços; a outra se contorcia logo depois do corpo de Goubert. A primeira virou-se em minha direção, já com um rosto triangular e língua bifurcada, abriu a boca mostrando os dentes pontiagudos e produzindo um som sibilante. Com voz dissonante e quase incompreensível, disse:

- Você não irá longe. Sua hora vai chegar.

Não pendei duas vezes: Fui em direção da janela e a pulei, correndo pra onde apontava meu nariz, contanto que fosse pra bem longe dali. Não tive forças pra correr muito. Caí, ainda dentro da quadra na qual estava a casa, nomeio do mato. A vista escureceu e não vi nem senti mais nada.

Acordei, já estava escurecendo. Ainda meio tonto olhei em volta. Passei a mão pela testa. Estava com arranhado, mas não sentia o ferimento. Estava quase cicatrizado. Apressei-me em chegar em casa. Como era férias e costumava ficar fora a tarde toda, não notaram minha falta. Tomei banho, jantei e não demorou muito estava na cama. Dormi como uma pedra. Estranho dizer isso, quando o normal seria ter pesadelos a noite inteira. Não foi o que aconteceu.

Pela manhã, enquanto tomava o café, ouvi um carro com sirene passando em frente de casa. Era a polícia. Pus sentido no som. Percebi que seguia na direção ao Casarão do Borges. A curiosidade natural de moleque, não iria permitir que perdesse nenhum detalhe. Corri pra lá.

Lá chegando, encontrei já por ali muitos curiosos. Não nos deixaram entrar. Ficamos ali atentos a tudo. Todos que ali estavam faziam comentários dos mais diversos. Mas o que pude constatar de mais interesse sobre o motivo daquilo tudo era o sumiço de um garoto que haviam visto acompanhando um homem esquisito, e que ele morava naquela casa. Eu cá com meus pensamentos achei melhor ficar calado. Ainda não havia digerido tudo aquilo que havia visto.

Pouco depois os policiais saem lá de dentro. Uma das pessoas que aguardava próximo da viatura, e que mais parecia ser parente do desaparecido, pergunta ao primeiro policial que aparece:

- E então? Encontrou?

- Nada. A casa está vazia. Mas parece que saíram às pressas. Levaram tudo e uma mudança não passa despercebida por todos. Nós os encontraremos, tenha certeza.

- Mas, como vazia? Não encontraram nenhuma pista?

- Nada. O que não puderam levar eles destruíram. Destruíram até mesmo um jardim de inverno que tinha ali dentro. E o que é mais estranho é esse cheiro forte que está por toda casa e ninguém sabe dizer do que é.

Por mim, achei que já havia ouvido o suficiente. Ouvido e visto. Não queria mais saber daquela história. Em pouco tempo reiniciariam as aulas. Esperava esquecer tudo aquilo.

Não esqueci logo toda aquela história, mas nunca a contei a ninguém. Mesmo tendo me formado, me casado, me mudado de cidade e ainda terem se passados vinte anos. Hoje me veio à tona tudo aquilo, quando passava por uma casa aqui perto, a brisa me trouxe aquele aroma. Era quase imperceptível, é verdade, mas pra quem o sentiu como eu, inesquecível.

Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 03/12/2011
Código do texto: T3370441
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