Realidade gritante

Sozinho em casa o mês inteiro lendo, escrevendo e vendo filmes de terror. A família de férias no litoral. Nenhum telefonema. Ninguém chamando no interfone. Solidão perfeita. Era o que ele queria. Saía só para comprar comida e alugar filmes. À tarde, por volta de cinco horas, fazia um café bem forte. E assava pão de queijo. Que ele recheava com queijo Gorgonzola e presunto de Parma. A televisão ficava ligada o tempo todo. O som também. Só música clássica e jazz. À noite ele preparava um talharim ‘al dente’. Cada dia com um molho diferente, mas sempre com muito azeite. E bebia vinho tinto. Vinho bom. Comprava garrafas pequenas, porque não suportava vinho na geladeira. Só na sexta-feira ele abria uma grande. E tinha que ser uma obra de arte. Categoria três dígitos. Ou seja: jamais custar menos de cem reais. Comia sobremesa todos os dias. Torta holandesa. Manjar. Pavê de chocolate.

Tinha trinta e cinco anos. Saúde perfeita. Bonito. Muito dinheiro. Era empresário, mas quem tocava o negócio era seu irmão mais velho, liberando-o para fazer o que ele realmente gostava: escrever.

Ele escrevia muito bem. Seus contos eram primorosos. A crítica e o público gostavam.

Um mês inteiro... Que maravilha! Sem filhos. Sem esposa. Podendo ouvir o seu jazz e comer o que quisesse. Sua mulher detestava jazz e enchia o seu saco por causa da comida: “Sua barriga está crescendo. Não está na hora de maneirar um pouco, querido?”. Mas ele nem ligava. Comia escondido. Fazia o que queria.

Um mês sozinho... Puro prazer. Ninguém para amolá-lo. Andava pela casa de cueca, pelado, do jeito que lhe desse na telha. Revia seus filmes preferidos: “A Morte do Demônio”, “A Hora do Espanto”, “Cemitério Maldito”, “O Massacre da Serra Elétrica”. Lia muito também: Tolstoi, Poe, Agatha Christie, Stephen King. Ia dormir às cinco da manhã. E quando acordava, por volta de duas da tarde, a empregada já tinha arrumado tudo e deixado o almoço prontinho para ele no forno. O cardápio variava. Salmão grelhado ao molho branco. Lulas. Camarão. Lagosta. Filé ao molho madeira. Moqueca de peixe.

Foi aí que ele acordou.

O despertador buzinava e piscava insistentemente. Seis da manhã. Acordou assustado. Olhou para o lado e viu a esposa dormindo. Uma mulher enorme. Feia. Na verdade ela não era feia. Era descuidada. Desleixada. Por isso ficava feia.

O homem esfregou os olhos remelentos e viu de novo. Colocou as mãos pesadas na frente do rosto. “Este sou eu”, disse para crer. A realidade pulsante. Pum, pum, pum... Paredes descascando. Goteira na sala. Privada entupida. Mulher feia. Dor nas juntas. Ele não tinha trinta e cinco anos, mas cinquenta. Tinha que trabalhar para sustentar a família. Era assistente de não sei o quê numa empresa onde quase ninguém sabia o seu nome. Se fosse demitido, ninguém nem ia notar. Mas tinha que estar lá em menos de uma hora. Por isso o despertador. Seis da manhã. Buzinando, buzinando...

E ele foi se lembrando de tudo. Era diabético. Não podia beber vinho francês nem comer queijo Gorgonzola. Tinha que estar sempre fazendo dieta. Mesmo assim era gordo. E feio. Não era só desleixo. Era feio mesmo. Tinha três filhos adolescentes que só sabiam cobrar e reclamar. Sobretudo reclamar: “Aqui em casa não tem nada”, “Que pobreza”. E ele não estava de férias. Nem de folga. Era segunda-feira. Mês de março. Chovia muito lá fora. Os motoristas de ônibus estavam em greve. Ele não tinha carro.

O despertador continuava buzinando. E o homem sentado na cama, a barriga enorme, o reumatismo latejando nos joelhos. A mulher roncava. De repente ela se virou na cama e peidou. Um peido alto e fedido.

A mulher do sonho era mais nova. Mais bonita. Ele também era mais bonito. Tinha saúde. Dinheiro. Podia comer e beber o que quisesse.

Mas a realidade gritava “Acorda, desgraçado”. O despertador pi, pi, pi, pi, pi...

Ele gostava de ler e escrever. Mas não podia. Tinha que trabalhar, trabalhar. Um trabalho detestável. Humilhante. Para pagar as contas. O aluguel. As roupas de marca dos filhos. As baladas. As festas de aparência.

“E a aposentadoria que não chega, meu Deus!”, suspirou aflito.

A mulher peidou de novo e gritou “Desliga essa merda!”.

Ele se levantou “ai, ai, ai”. Foi ao banheiro, lavou o rosto, olhou-se no espelho...

E chorou.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 01/12/2011
Código do texto: T3366913
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