Juarez Marreco
Levanta, filho, está na hora. O caixão já chegou. Meu pai dava banho em minha mãe, enquanto o caixão chegava. Será que nao vem ninguem, pai?. Talvez seu Otacilio. Olha, a gente mora num lugar muito longe. As pessoas as assim, não gosta de andar muito, e a maioria não sabe que sua mãe morreu. Seu Darzo colocou o caixão na porta e perguntou se tinha algo pra comer.
Não parou de falar de quanto estava morrendo gente nesse ano. Dona carolina, seu Julio Preto e o filhinho mais novo de Dona cazilda. Disse que caiu do cavalo. A familia está destruida. Só faltou falar que isso era bom para os negócios dele. Enquanto falava comia a cangica e a boca espumava de branco . Era um nojo só ele mastigando. Meu pai nao conseguia dar atenção pra tanta história de seu Darzo. Depois começou falar da madeira que usou. Muito boa, nao esfola nunca, pode confiar. Ainda bem que comprou de mim, porque os de Juarez Marreco só usa pau que nao presta. Pedaço de cerca podre. Perigoso até o difunto cair na rua. Meu pai nao gostava muito das conversas do homem, que nem parecia estar num lugar onde morreu uma pessoa. Foi no quarto e pegou o dinheiro. Quando saiu meu pai disse que deveria ter comprado na mão de Juarez Marreco pelo menos nao era idiota.
Minha mãe gostava muito de cozinhar. O dia todo aquele barulho no fundo da casa. Era um ruído de fundo da nossa vida. Ela fazendo coisas. socando tempero, ou panela caindo, e gostava de cantar. Minha mãe seria uma cantora se morasse em outro lugar e nao tinha musica que dava. Nao sei como ela conseguia memorizar tantas. A casa era limpa duas vezes ao dia. o vento trazia alguma sujeira e ela rapidamente limpava. E tinha um paninho que a toda hora ela estava passando na mesa da sala. e reclava do vento, da poeira. Mas nunfo ela adorava que a natureza sujasse um pouco a vida pra ela ter o que fazer. Era bom ela viva. nao sei muito bem como vai ser. Apenas eu e ele aqui.
Pai, o vestido já secou. Então pega lá. Ele queria enterrar minha mãe com vestido que deu pra ela no natal, um de flores amarelas grandes. Ela gostou tanto e se sentiu amada. E foi tão triste. Nao tinha lugar nenhum pra ir, mesmo assim, ela vestiu e ficou o dia trabalhando com ele. Quando caiam gotas de sãbão ela corria e pegava um paninho e passava como fazia na casa. Nao queria que nada de sujeira atrapalhasse a beleza do vestido. A gente só olhava de longe e ria da besteira dela com a roupa nova. Meu pai estava contente, muito satisfeito por ter acertado no presente.
Nesse dia senti que ela caprichou no almoço. Um cheiro bom de comida gostosa tomou toda a casa. Usava coentro e cebolinha verde toda vez que queria agradar meu pai. Sabia que ele gostava. Fez questão de colocar na mesa como fazia o povo de Seu Gerso Tatu, que era de uma metidez sem tamanho. Trabalhou forte durante o dia todo. A noite estava exausta. Dormiu com o vestido dobrado na cadeira do lado da cama. Minha mãe era assim, se contentava com qualquer gentileza.
E os sapatos você ja limpou? Passei um pano, ficou um pouco frio, deixei perto do fogão pra esquentar...Os pés dela estavam tão gelados e mesmo assim não me senti bem em calçar ela com o sapatos frios. Nao consigo parar de olhar. Olhos fechados, ainda leves. Parecia que nao tinha levado a felicidade embora. Me ajuda a jogar a agua fora. Eu segurando de um lado e meu pai do outro a bacia que minha mãe foi lavada. Enquanto atravessa a sala eu fiquei tonto com agua suja de sabão. Imaginava que na agua havia algo dela. E quando jogasse no quintal ela seria espalhada perto da gente.
Pai, o senhor não vai comer nada. Estou sem fome. Seu darzo comeu quase todos os pãos, Pensei que ele fosse ficar, mas ainda bem que tinha outra entrega. Foi bom ele ter ido embora.
Pai, eu nao gosto de seu Darzo. Eu também não. É gente besta, filho. Que não traz nada pra gente. Porque o senhor comprou dele. cabeça quente, a gente faz o que é mais facil...
Nosso sítio tem um lugar onde enterramos as pessoas da familia. fica perto do rio, logo atrás do curral, lá está meu avô Pedro, minha Vó Carlita e meu irmãozinho que morreu de sarampo quando tinha oito anos. Pai, o senhor vai abrir a cova que horas? logo depois que aprontar ela. Posso ir com senhor? Não queria deixar ela sozinha aqui. É que estou com medo. Ele ficou quieto, mas logo entendeu. E disse que poderia ir . O senhor vai passar perfume nela? Ele riu, gostou do que eu falei. Foi até o baú de couro cru, que era da minha vó e abriu. Faz tanto tempo que ao mecho nessas coisas. Essa mala estava fechada ja fazia muitos anos. Remexeu. Por cima dos papéis pegou uma foto de minha vó e ficou olhando, depois passou pra mim. Você se parece com ela. Respirou fundo cheio de saudades. Achou o frasco de perfume. Abriu e cheirou, queria saber se ainda valia, se ainda tinha cheiro. Foi até a cama e passou no rosto dela, nas mãos sobre o peito. Depois nos cabelos. Ficou um tempão olhando o rosto dela, parecia lembrar de coisas antigas. Bom, agora sua mãe está cheirosa. quer passar um pouco? Ele derramou umas gotas na minha mão, fiquei um tempao cheirando. Dava vontade sumir naquele cheiro bom de estrada que nunca chega .
guardou todas as coisas, mas deixou a foto da minha vó coladinha na penteadeira.
Pela janela já via o boi de canga preso na carroça que levaria minha mãe. Ela sempre teve medo desses bichos e vai ser carregado por um. Meu pai disse que se tivesse vindo gente, levaria com a alça, três de cada lado. Seria mais bonito né, filho? Seria sim, pai....vai lá fora, vê se uma rosa naquele pé do rio, se tiver traz uma pra colocar nas mãos dela. Não tinha nem uma. estava tudo seco, mas eu peguei uma outra flor branquinha esverdeada, que nem sei o nome. Era uma planta rasteira. Acho que ela nao vai ligar né, pai. É bonita também, Zico . Sua mãe nao se importava com essas coisas. Tinha que ter carne e café em casa, pra ela estava bom. o vestido deu certinho nela, Não queria lavar com medo de encolher e ficar feio.
No caminho pra cavar a cova ele me disse: A gente brigou só uma vez. Eu era muito novo. Me engracei com uma dona numa festa e ela ficou sabendo. Essa gente é fofoqueira. Ela queria ir embora. Fiquei louco e pedi perdão, algo mudou, mas passei a vida toda fingindo que estava tudo igual. Eu nem sabia o que responder pra ele. Ele levava o pá e cavador nas costas. Deixa eu levar uma. nao precisa está leve. Eu posso ajudar? Sim enquanto eu cavo você vai tirando a terra. pai, a gente podia ter trazido um pouco de café. A terra lá é fofa, vai ser rapido. Pai, vai ser quanto de fundura. Sete palmos. Perguntei se seria da minha mão ou da mão dele. Ele riu, achou engraçado e me olhou achando inteligente.
Enquanto abria o buraco só pensava em minha mãe sozinha naquela cama. Ela não gostava de ficar sozinha. Eu estava sempre na saia dela. O dia todo me chamava pra saber se estava tudo bem. Depois que acabamos sentamos os dois num monte de terra. A cruz da sepultura de meu avó tinha apodrecido. Meu pai disse que ia trocar. A do meu irmão ficou preta de chuva, mas estava cheia de plantinha em volta, nem dava medo de tão bonita que estava.
Pai, posso te falar uma coisa? o que filho. Eu queria que morresse logo, estava sentindo muita dor. Estava com medo de dizer isso pra ele. Ela pegou na minha cabeça e puxou pro colo dele. Dizendo que pensava a mesma coisa. Bom, a gente precisa ir...
Na volta, deixamos as ferramentas lá, segurou em minha mão. fomos os dois andando. A toda hora sentia ele apertar com força.
dizendo muitas coisas que só sabia falar calado....