UM SEGUNDO DE VIDA.
Descobri-me vivo numa dessas manhãs em que o sono acaba de súbito. O tempo, preciso do tempo guardado no relógio, que horas são? Como viver sem saber as horas? Entretanto, dentro em pouco o espelho prevalecerá sobre o relógio, verei o meu rosto que ganha os vincos do tempo, rirei de Narciso, lembrarei de Dorian Gray, mas lamentarei o escoar da juventude que abandona-me sem pedir licença. Dia de outono. Véu frio e fluídico cobre o relevo do rosto. Reflexões dos pensamentos maturados substituem a inquietude quase infantil dos sentimentos antes turbulentos. A memória desafia com velhas fotografias, mergulho do presente num indefinido passado perdido em constelações de retalhos do que foi realidade, e que agora se resignificou em incerteza de si; existo, e o pensar e o
sentir vêm lembrar-me disto. Um andar meio que de zumbi leva-me à janela, e ao abri-la vejo as gotas de orvalho que a tudo cobrem. Fuga de minha interioridade, mas não basta despertar os sentidos, o corpo sente-se aprisionado. Se tivesse asas talvez voasse, e o condicional vem de uma preguiça exausta que parece ficar; não encontra a felicidade e então fica divagando, tendo mais prazer na busca do que no suposto gozo do encontro. A manhã parece feliz por existir e tristonha por nascer. Vivo por contradições, mas algo de senil parece querer fugir ao movimento. Na dinâmica do cotidiano, a filosofia tombou com argumentos que ironizaram as necessidades básicas de minha humilde constituição biológica, mas entrou por outra porta a poesia e tudo recriou em fuga, redefiniu,
fez uma pequena utopia no minúsculo instante que não vi, mas quando percebi já era tarde demais para guardá-lo. A manhã tem alma humana que atrai, com seu mistério, minha curiosidade quase infantil. E então imagino serem as gotas da manhã as lágrimas do sono noturno. Reprimo as lágrimas de tristeza, mas não terei tal audácia ante àquelas de sentir-me feliz. Talvez um dia o peito transborde, este dique de dores reprimidas, de desconfortos digeridos. Mas eis que a prática é bem mais complexa do que os delírios poéticos e os
devaneios da razão. O ar que respiro entra pelas fossas nasais, pela boca entreaberta e não pelo cérebro e pelo coração. Forma-se, assim, um quadro onde o ser está incrustado em tintas de cotidiano e ares esotéricos. O homem quer ser alma, mas o homem teme ser alma, mergulha em dúvidas entre o existir e viver, cético demais para crer, amigo da dúvida, e então como não duvidar não ser? Toda afirmação tem a graça de poder ser negada, toda negação pede a paz de uma boa afirmação, um único ser dividido por entre suas dualidades. Os olhos brilham em meio à manhã embaçada pelas cortinas de neblina. O silêncio diz tanto e eu, calado, o escuto. É linguagem dos anjos que não creio, é música que quer ser letra, é letra que quer vir às mãos, feliz é o meu delírio egocêntrico, triste é
a solidão que invade quando sinto-me parte de um todo. Vale a pena estar só, não vale a pena ser sozinho. Visto trajes de minha solidão inquisitiva. Não me cubro, mas oculto-me em minhas vestes, visto não apenas meu corpo, mas também meu rosto que encho de expressões. Estou pronto para o mundo, mas no fundo sei que minto, nunca estarei pronto, viverei não estando pronto, serei amigo de meu estado provisório, sofrerei com isto, mas garantirei minha capacidade de não ser alienado, terei comigo minha eterna rebeldia adolescente mesmo que encoberta por muitos panos. Sinto sobre a epiderme o calor do sol surgindo por detrás da cobertura enevoada do dia. Mergulho em dúvidas ao atingirem-me as mazelas do cotidiano, em meio a momento tão sublime para o espírito. Corpo e
alma divergem, mas estão atrelados a um único ser. Invejo um pássaro que se atira sobre o infinito do espaço, sem ter fronteira alguma. Mais do que o ser plumado, invejo sua capacidade de voar. É como se o voo tivesse a sublime possibilidade de nos livrar dos entulhos de nosso cotidiano. O voo que almejo é divagar na distância, mas não ficar perdido em sua amplitude sem fim, ser seu amigo, fingir-me de seu dono, talvez fazê-la de minha amante pois, distante, sempre verei a mim como se fosse outro, não me escravizarei. De repente paro e descubro-me fraterno da tristeza feliz da manhã. Descubro que o dicionário chama isso de melancolia. E tomo, então, a atitude de criar um sorriso. Tinjo minhas lágrimas ocultas na nascente do orvalho que pouco a pouco se dissipa. O relógio delatou as horas, e estas meio que nervosas se fazem presentes, trazem na mão uma agenda de compromissos. Comprometer-se, eis a questão. Ser livre mas abrir mão da própria liberdade. O ego deve ajustar-se, não almejo apenas a mim, mas viver entre os outros. O sol está senhor do céu, é belo e forte. No entanto, ainda sonho com a delicada e frágil lua. Impossível ser um só. Como um prisma e suas cores, um único ser é um universo de tantas faces. As horas perdidas. A hora marcada. Estou vivo e finjo não querer existir. Existo, e por isso, num jogo arriscado, brinco de viver. O dia só existe e é belo porque existe a noite. A noite só é plena porque existe o dia. A felicidade só é flor vistosa porque um dia, no mesmo jardim, houve uma flor murcha chamada tristeza. Mas o que importa é que exista o jardim. E ali haverá sempre a possibilidade de se verem as tais flores numa manhã qualquer, perdida no infinito espaço de um segundo de vida.
http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/9mostra/6/49.pdf
Descobri-me vivo numa dessas manhãs em que o sono acaba de súbito. O tempo, preciso do tempo guardado no relógio, que horas são? Como viver sem saber as horas? Entretanto, dentro em pouco o espelho prevalecerá sobre o relógio, verei o meu rosto que ganha os vincos do tempo, rirei de Narciso, lembrarei de Dorian Gray, mas lamentarei o escoar da juventude que abandona-me sem pedir licença. Dia de outono. Véu frio e fluídico cobre o relevo do rosto. Reflexões dos pensamentos maturados substituem a inquietude quase infantil dos sentimentos antes turbulentos. A memória desafia com velhas fotografias, mergulho do presente num indefinido passado perdido em constelações de retalhos do que foi realidade, e que agora se resignificou em incerteza de si; existo, e o pensar e o
sentir vêm lembrar-me disto. Um andar meio que de zumbi leva-me à janela, e ao abri-la vejo as gotas de orvalho que a tudo cobrem. Fuga de minha interioridade, mas não basta despertar os sentidos, o corpo sente-se aprisionado. Se tivesse asas talvez voasse, e o condicional vem de uma preguiça exausta que parece ficar; não encontra a felicidade e então fica divagando, tendo mais prazer na busca do que no suposto gozo do encontro. A manhã parece feliz por existir e tristonha por nascer. Vivo por contradições, mas algo de senil parece querer fugir ao movimento. Na dinâmica do cotidiano, a filosofia tombou com argumentos que ironizaram as necessidades básicas de minha humilde constituição biológica, mas entrou por outra porta a poesia e tudo recriou em fuga, redefiniu,
fez uma pequena utopia no minúsculo instante que não vi, mas quando percebi já era tarde demais para guardá-lo. A manhã tem alma humana que atrai, com seu mistério, minha curiosidade quase infantil. E então imagino serem as gotas da manhã as lágrimas do sono noturno. Reprimo as lágrimas de tristeza, mas não terei tal audácia ante àquelas de sentir-me feliz. Talvez um dia o peito transborde, este dique de dores reprimidas, de desconfortos digeridos. Mas eis que a prática é bem mais complexa do que os delírios poéticos e os
devaneios da razão. O ar que respiro entra pelas fossas nasais, pela boca entreaberta e não pelo cérebro e pelo coração. Forma-se, assim, um quadro onde o ser está incrustado em tintas de cotidiano e ares esotéricos. O homem quer ser alma, mas o homem teme ser alma, mergulha em dúvidas entre o existir e viver, cético demais para crer, amigo da dúvida, e então como não duvidar não ser? Toda afirmação tem a graça de poder ser negada, toda negação pede a paz de uma boa afirmação, um único ser dividido por entre suas dualidades. Os olhos brilham em meio à manhã embaçada pelas cortinas de neblina. O silêncio diz tanto e eu, calado, o escuto. É linguagem dos anjos que não creio, é música que quer ser letra, é letra que quer vir às mãos, feliz é o meu delírio egocêntrico, triste é
a solidão que invade quando sinto-me parte de um todo. Vale a pena estar só, não vale a pena ser sozinho. Visto trajes de minha solidão inquisitiva. Não me cubro, mas oculto-me em minhas vestes, visto não apenas meu corpo, mas também meu rosto que encho de expressões. Estou pronto para o mundo, mas no fundo sei que minto, nunca estarei pronto, viverei não estando pronto, serei amigo de meu estado provisório, sofrerei com isto, mas garantirei minha capacidade de não ser alienado, terei comigo minha eterna rebeldia adolescente mesmo que encoberta por muitos panos. Sinto sobre a epiderme o calor do sol surgindo por detrás da cobertura enevoada do dia. Mergulho em dúvidas ao atingirem-me as mazelas do cotidiano, em meio a momento tão sublime para o espírito. Corpo e
alma divergem, mas estão atrelados a um único ser. Invejo um pássaro que se atira sobre o infinito do espaço, sem ter fronteira alguma. Mais do que o ser plumado, invejo sua capacidade de voar. É como se o voo tivesse a sublime possibilidade de nos livrar dos entulhos de nosso cotidiano. O voo que almejo é divagar na distância, mas não ficar perdido em sua amplitude sem fim, ser seu amigo, fingir-me de seu dono, talvez fazê-la de minha amante pois, distante, sempre verei a mim como se fosse outro, não me escravizarei. De repente paro e descubro-me fraterno da tristeza feliz da manhã. Descubro que o dicionário chama isso de melancolia. E tomo, então, a atitude de criar um sorriso. Tinjo minhas lágrimas ocultas na nascente do orvalho que pouco a pouco se dissipa. O relógio delatou as horas, e estas meio que nervosas se fazem presentes, trazem na mão uma agenda de compromissos. Comprometer-se, eis a questão. Ser livre mas abrir mão da própria liberdade. O ego deve ajustar-se, não almejo apenas a mim, mas viver entre os outros. O sol está senhor do céu, é belo e forte. No entanto, ainda sonho com a delicada e frágil lua. Impossível ser um só. Como um prisma e suas cores, um único ser é um universo de tantas faces. As horas perdidas. A hora marcada. Estou vivo e finjo não querer existir. Existo, e por isso, num jogo arriscado, brinco de viver. O dia só existe e é belo porque existe a noite. A noite só é plena porque existe o dia. A felicidade só é flor vistosa porque um dia, no mesmo jardim, houve uma flor murcha chamada tristeza. Mas o que importa é que exista o jardim. E ali haverá sempre a possibilidade de se verem as tais flores numa manhã qualquer, perdida no infinito espaço de um segundo de vida.
http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/9mostra/6/49.pdf