NOITE AFLITA
Francisco avista seu destino assim que chega ao alto do morro. Montado em seu cavalo, ele avança a trote rápido; já ia anoitecendo e queria chegar com o dia ainda claro. Ele não vinha àquele pequeno arraial havia um bom tempo. Coisa pra mais de sete meses. A última vez que tinha estado naquele local, havia sido por ocasião da colheita de usa lavoura de arroz; estivera ali para vender sua safra, que aliás, não era muita coisa. Para as poucas compras que fazia, ele utilizava a venda de Seu Amâncio, em outra vila, mais perto de sua propriedade, só que no sentido oposto.
Francisco, que logo depois do almoço se encontrava no sítio de um conhecido, chamado Vitório, um pouco mais ao norte de sua propriedade, soubera que ele precisava pagar uma dívida, justamente a seu compadre, Armando, só que não dispunha de tempo para honrar tal compromisso. Francisco, embora não tivesse essa intenção realmente, se prontificou a fazer tal gentileza, no que foi aceito na hora. Havia muitos afazeres em sua propriedade e ele contava com aquela tarde para colocá-los em dia, mas não se importou muito. Fazia um bom tempo mesmo que não visitava seu compadre. Faria uma pequena volta em seu trajeto, uma visita rápida e no início da noite estaria em casa.
O que Francisco não contava, é que o objeto da dívida ainda estava solto no pasto e que era mais arisco que qualquer outro bicho que ele conhecia. Por ser sistemático e dado palavra de que levaria a encomenda, preferiu não voltar atrás. Passaram mais de duas horas correndo atrás, se rasgando em espinhos e capim navalha, debaixo de sol a pino, tentando encurralar aquela mula. Já meio exaustos, conseguiram laçar e colocar um cabresto na danada. Ele só se deu alguns minutos pra tomar um copo d’água e descansar um pouco; já não tinha mais idade pra tanto esforço apesar de sua pose de valentão. Se pôs a caminho, montado em seu cavalo, puxando atrás de si a encomenda de quatro patas. A mesma que momentos antes desejou ter dado cabo ali mesmo no pasto, tamanha era a sua raiva por esta não haver recebido a “devida educação em respeito a seu dono”; havia atrasado em muito a sua viagem.
Agora, ali, chegando ao vilarejo, Francisco aperta o passo. Pretendia apenas entregar a encomenda, fazer uma rápida visita e voltar logo em seguida. Pelos seus cálculos, chegaria em casa lá pelo início da madrugada. Porém Começa a escurecer um pouco mais cedo do que o previsto. Venta forte. Ele olha para o alto: “Vai cair um toró daqueles... Espero que dê tempo...”
Mal chega em casa de Armando e já começa a cair aqueles pingos grossos, antecipando o temporal.
- Compadre, desarreie o animal e o coloque neste lote aqui ao lado. Está todo cercado e não há perigo nenhum.
Francisco faz o que Armando diz. Sabia que por mais que insistisse não conseguiria deixar aquela casa naquele momento. Solta os animais no pequeno lote cercado de taboca trançada no arame farpado. Mal entra em casa começa o aguaceiro e os lampejos seguidos dos estrondos. Francisco cumprimenta Armando, Idelma e Ézio, seu afilhado, já na casa dos dez anos. Armando manda o filho soltar a corrente que prende a cachorra, deixando-a livre naquele amplo quintal também cercado de taboca trançada. Francisco olha pela porta da cozinha, a ampla área coberta e aberta pro fundo. Pelo lado de fora, a cachorra mestiça, corpulenta, ali parada, latindo e olhando fixo para ele, sem se importar com a chuva.
- Entra pra cá, compadre. Essa cachorra anda muito perigosa depois que deu cria. É melhor não facilitar.
Francisco entra. Idelma fecha a porta.
Lá fora o toró continua, sem nenhum sinal de trégua.
- Eita que hoje o córrego lá em baixo vai inundar. Vai ficar tão alagado que nada passa por ali.
Francisco se distrai um pouco com seus pensamentos. Passa as mãos magras pelo cabelo e alisa a longa barba grisalha. Pensa em seus afazeres, suas criações. “Por sorte sou viúvo... Diacho, isso é jeito de pensar da falecida? Tome jeito homem... hum, os empregados cuidam de tudo até a minha volta”.
- Então compadre. Quem é vivo sempre aparece.
Francisco sai daquela distração momentânea e inicia um longo papo com Armando, já despreocupado de seus assuntos. Enquanto o jantar estava sendo preparado, tapeavam a fome comendo milho cozido com sal. Ficam ali pela sala com um papo animado, quando lá pelas sete e meia da noite surge na porta a figura de D. Idelma:
- A janta tá na mesa.
Levantam-se e seguem pra cozinha. Lá fora a chuva diminui um pouco de intensidade mas ainda continua. Francisco come pouco; parecia não se sentir muito disposto. Armando e Ézio, ao contrário, aproveitaram o frango com quiabo, que era uma das especialidades de Dona Idelma.
Após o jantar, voltam todos para a sala. Francisco se senta num tamborete, palitando os dentes com um palito de fósforo em movimentos com os lábios, utilizando as mãos para preparar um cigarro de palha. Vez ou outra aproxima o rosto da janela aberta, olhando a chuva, procurando vestígio de estiagem. Agora já não relampejava tanto.
- Num adianta compadre. Não adianta nem tentar ir embora hoje. Essa chuva num vai passar tão cedo e o córrego lá embaixo deve ter alagado tudo. Idelma já até preparou uma cama ali pr’ocê dormir.
Francisco resmunga qualquer coisa, mas acaba cedendo, dando razão a Armando. Não tinha com que se preocupar mesmo. Ficam por ali, contando estória, fumando... De repente, sente uma pontada esquisita no abdômem. Se arruma no tamborete. “Deve ser gases...”.
Lá pelas nove e meia decidem ir dormir. Ele ocuparia um dos dois quartos que a casa dispunha. Ézio dormiria numa rede colocada no quarto dos pais.
Com aquele vento frio da chuva nem pensou num banho; dormiria daquele jeito mesmo. Tivera um dia cansativo e não demorou a pegar no sono. Ainda mais com aquele barulho de chuva.
Por volta da meia-noite Francisco acorda com uma estranha sensação. De início não sabe o que é, até que desperta de vez. Sente uma dor aguda percorrendo sua barriga de um lado pro outro, aliviando em seguida. Pouco depois sente a mesma coisa. – “Diacho! Tinha que dar uma dor de barriga justo agora?” – Senta-se na cama tentando se orientar. Ouve Armando roncando no quarto ao lado e uma respiração forte, quase um ronco alto, que imagina ser de Idelma. Lá fora não se ouve mais o barulho da chuva. Apenas um ou outro grilo se fazendo notar. Francisco se lembra que o banheiro não dava saída para dentro de casa e sim para a varanda dos fundos. Ele se levanta, acende uma lamparina e até com certa pressa, mas sem fazer barulho e sem movimentos largos com as percas se dirige à porta dos fundos que é fechada com tramela. Abre a porta de sopetão e dá de cara com a cachorra rosnando e mostrando os dentes. Com a mesma rapidez ele bate a porta, travando-a imediatamente com a tramela. A porta, travando-a imediatamente com a tramela. A cachorra dá alguns latidos. Ele fica atento. Percebe, em um péssimo momento, que seus compadres tem o sono pesado. Mesmo com o barulho da porta batendo não acordaram. Ele começa a se contorcer e a trançar as pernas. Se dirige ao quarto de Armando. Bate na porta:
- Ô cumpadre!
Nada. Bate na porta e chama mais algumas vezes e nada. Continuam no mesmo ritmo do ronco de antes. Francisco se segura com todas as forças e já meio alucinado: “A janela do meu quarto...”. Se Dirige à janela, mas descobre que o corredor pelo lado de fora se comunica com o terreno dos fundos. “Eu é que num vou deixar minha bunda dando sopa aí do lado de fora pra essa cachorra!”. Retorna à sala e meio que rodopiando, já quase não aguentando mais, percebe em um canto um par de botinas. Não pensou duas vezes. “É aqui mesmo”. Abaixa sua cueca samba-canção e descarrega em uma das botinas o motivo de sua agonia. Sente um alívio imediato. No quarto, ainda o ronco de seus compadres. Na sala aquele ar empesteado, a catinga se alastrando rapidamente. Francisco se lembra de ter visto uma folha de jornal sobre a mesa da sala. Cobre a botina com a folha de jornal e fica imaginando um jeito de se livrar daquele produto antes que o mau cheiro se alastre até os quartos; e sem que Armando saiba o que aconteceu com a botina dele. Pensa em levar pro fundo do quintal e enterrar, mas se lembra da cachorra em seguida. “O jeito é sair pela porta da frente. Diacho... devia ter pensado nisso antes... Também na agonia que eu tava... Agora é tarde”. A porta da sala possuía aqueles trincos com mola, sem maçaneta, onde se abre facilmente por dentro mas é necessário o uso da chave pra abrir pó fora. Francisco apaga a lamparina e a coloca sobre a mesa, abre a porta e sai, descalço, apenas de cueca samba-canção, levando consigo a botina já começando a vazar pela costura. “O cercado dos cavalos. Ali ninguém vai achar...”. Entra no cercado. Mal fecha a cancela atrás de si e sente uma nova pontada na barriga. Dá mais alguns passos e pela distração da dor se esquece da botina em sua mão. Só se dá conta dela quando sente algo lhe escorrendo sobre seu único traje naquele momento.
- Oh, droga! Ihh... porcaria, sô...
Francisco atira longe a botina, lá pros fundos do lote. Já que estava no escuro mesmo, tira o resto de suas vestes, ficando totalmente pelado. “Depois eu lavo em uma dessas poças d’água”. Coloca a cueca sobre uma touça de capim. A dor aumenta novamente, mas agora ele estava no local apropriado e sem nenhum empecilho, não teve dúvida. Pouco depois se sente aliviado. Olha para o lado e vê a mula mascando algo branco.
- Não acredito... Não a-cre-di-to! Ô mula lazarenta... ‘Cê tinha que ser dessas?
Francisco procura se aproximar da mula, que muito arisca se afasta rapidamente. “Deixa pra lá. Eu é que num vou ficar aqui correndo atrás desta mula”. Caminha em direção à cancela. Pisa em um barro meio esquisito.
- Merda, merda, merda... ô dia sô!
Ali, pelado, fora de casa, acha melhor voltar para o seu quarto antes que alguém o veja. “No azar que eu to é bem capaz mesmo que apareça alguém nesta hora”. Olha para um lado e outro. Não vê ninguém. Sai do lote com as duas mãos à frente e corre para a porta da frente da casa de Armando. Aproxima-se e tenta empurrar a porta. Não consegue. “Diacho! O vento deve ter fechado a porta. Agora só chamando compadre Armando; é o jeito. Depois eu explico tudo direitinho, invento umas histórias. Sou bom nisso”. Francisco fica atento e lá de fora consegue ouvir os roncos de seu amigo. Ele olha para os lados. “Que mais falta me acontecer? Droga! Vou ter que gritar o compadre. Tomara que não acorde mais ninguém”. Ameaça chamar por Armando um pouco mais alto, quando ouve se aproximar uma caminhonete, reduzindo a velocidade. Rapidamente, ele se esconde atrás de um vaso de planta que ficava na frente da casa. A caminhonete para a duas casa dali. Eles já descem chamando o dono da casa.
- Ô Seu Raimundo...
Eles são atendidos pelos donos da casa. Dos sete ocupantes do carro, dois entram pra conversar enquanto o restante aguarda pelo lado de fora. Francisco aguarda por cerca de meia hora. Neste intervalo, ouve comentários de que o nível das águas do rio baixou mas a ponde havia sido danificada, não permitido a passagem de automóvel. Só montaria conseguiria passar por ali.
- Hum... Só montaria, é? – diz a sim mesmo.
Pega o tapete da frente da casa, desses de tiras de pão e com uma tira amarra-o à cintura, tapando a frente e deixando a parte de trás totalmente descoberta. Retorna ao cercado dos animais, agora mais atento por onde pisa, consegue sem muito custo pegar seu cavalo que havia sido solto com um cabresto. Abre a cancela e sai. Tão logo a fecha, sai a galope rumo à saída da vila e logo chega ao corredor no qual está a estrada. Já havia calculado tudo: Indo rápido, chegaria à sua fazenda com o dia amanhecendo. Com um pouco de sorte não encontraria ninguém pelo caminho. Inventar alguma desculpa a Armando que justificasse sua saída no meio da noite seria fácil; o difícil seria explicar toda sua roupa ter ficado pra trás.
Esse não era um de seus melhores dias. Chame como quiser: Azarado, pé-frio, caipora... Lá embaixo, perto da ponte, um grupo de pessoas aguardavam pacientemente ao lado de algumas carroças. Um pouco mais acima, um carro parado. Devido a escuridão e na pressa, mais preocupado com sua retaguarda do que com o que vinha pela frente, só se deu conta do movimento quando já estava quase em cima daquelas pessoas. Ouviu algumas vozes e imediatamente puxa as rédeas ao mesmo tempo em que é atingido por um facho de luz de uma lanterna. Ambos os lados se assustaram. A visão daquela figura de cabelo desgrenhado, pêlos pelo rosto, esquelética, mais parecia o capeta montado em uma besta. O rapazote que segurava a lanterna ficou estático, paralisado pelo medo, enquanto os demais gritavam assustados. Francisco, tão rápido quanto pode deu meia volta em seu cavalo e se pôs a galope, procurando sair dali o mais rápido possível. Alguém do grupo se recupera logo do susto e descarrega seu revólver em direção da visagem. Francisco ouve o zumbido passando rente a sua cabeça. Ele se abaixa e se agita mais ainda, tentando aumentar sua velocidade. “Diacho...”.
Francisco não volta imediatamente à casa de Armado. Fica dando volta sem saber o que fazer, rezando para não encontrar mais ninguém. Por fim retorna ao cercado dos cavalos. O dia já estava clareando. O pessoal da caminhonete que estava na casa vizinha já haviam ido embora. Francisco fica pensando no que iria fazer, em como sair daquela situação vexatória. Está cabisbaixo, sentado sobre o cocho dos animais, onde havia se lavado com a água acumulada pela chuva, quando ouve a porta da casa de Armando se abrir. Fica quieto, procurando não chamar atenção. Observa e vê Dona Idelma saindo, deixando a porta aberta. “Está indo até a esquina comprar pão. É agora ou nunca”. Espera que Dona Idelma se afaste. Rapidamente Francisco sai do cercado dos animais e entra em casa indo o mais rápido possível para o quarto. Francisco se veste. Pouco depois sai do seu quarto, justo quando D. Idelma retorna com um pacote de pães...
- Bom dia, compadre! Dormiu Bem? – pergunta ela.
- Muito bem. O sono dos justos. Caí na cama e fui acordar agora de manhã. Há muito tempo que não dormia assim.
- Então não ouviu nenhum alvoroço de madrugada?
Neste momento Armando vem saindo do quarto.
- Que alvoroço, mulher? – e para Francisco – Bom dia, compadre.
D. Idelma continua:
- Ora, lá na venda tão comentando que o coisa ruim apareceu lá pelas bandas da ponte, montado numa besta sem cabeça, aterrorizando as pessoas e soltando fogo pelas ventas, partiu pra cima do pessoal lá, que se num é Seu Martinho dá uns tiros nele, tinha era pegado todo mundo... cruz, credo... Deus me livre. Fico agoniada só de pensar...
- Deixa disso, mulher... – diz Armando – Isso é falatório desse povo.
- Não sei não, diz Francisco. Essa aparição ta parecendo com uma que surgiu lá pras bandas das minhas terras, assustando e roubando menina moça, e que eu acabei encontrando mais tarde. A danada resolveu aparecer na minha frente e eu acabei tendo que jogar o cavalo em cima da visagem e dando tiro em cima dela, que a danada acabou desaparecendo. Nunca mais ninguém viu o tinhoso pr’aquelas bandas... pois sim!
- É, compadre – diz D Idelma, assustada – Vai vê que ela fugiu de lá e veio batê aqui pr’esses lados.
- É. Pena que eu tenho que ir embora, senão eu ia atrás desse danado outra vez.
- Idelma – chama Armando –Onde é que ta minha botina. Só achei um pé dela aqui.
Francisco procura cortar o interesse do compadre pela botina.
- Bem, o dia já amanheceu, só vou tomar um café e pôr o pé na estrada.
Pouco depois ele está sobre seu cavalo, se dirigindo à saída do vilarejo. Nas ruas todos comentam a aparição do coisa ruim, cada um com uma história diferente e cada qual querendo ser dono da estória mais assustadora.
“É, mas de depender de mim, essa visagem não vai voltar tão cedo”. Francisco aperta a espora na virilha do animal, impondo um trote mais rápido.