Sem Culpa

“Vou dizer uma coisa a vocês: Nunca tive paciência para esperar, sempre tive pressa em alcançar meus objetivos. Se bem que a pressa não me levou a lugar nenhum. Já faz um tempão que me pediram para esperar aqui. Porque será que estão demorando tanto? Bah! Também não sei porque é que estou preocupado com o tempo; ele não me é nenhum problema agora, portanto o jeito é esperar. Enquanto isso, bem que podiam servir um cafezinho. Vou pedir um, se passar alguém por aqui, e quem sabe umas revistas pra distrair um pouco. Aliás, revista pra quê? A gente podia ficar batendo papo até me chamarem... Hum! Agora é que estou observando, como é enorme essa sala! Poucos móveis, tranqüilo... Que ambiente agradável! Sinto-me bem aqui. Não experimentava esta sensação desde a minha juventude. Sensação de bem estar e conforto. Quando entrei aqui estava cansado como se tivesse carregado pedras o dia todo. Estou gostando daqui. O que eu gostaria mesmo era... Ouviram algo? Acho que vem vindo alguém. Vou pedir para trazerem algo pra beber”.

- Por gentileza, será que você poderia...

“Droga! Passou tão depressa, e nem sequer olhou pra mim. Bem, de volta à espera, que aliás já está demais. Estou ficando agoniado. Pensemos em alguma coisa pra passar o tempo. Só assim não percebo o quanto estou esperando, e pra dizer a verdade, estou com a impressão de que ainda vou tomar um chá de cadeira por mais um bom tempo. O ambiente aqui é bem claro. De onde será que vem essa luz? E esse silêncio... Bem, enquanto espero, deixe-me contar pra vocês a minha história... breve história.

“Nunca fui de muito ‘nhé-nhé-nhé’; quando mais jovem, era oito ou oitenta. Não tinha muita paciência com as lamúrias dos outros: ‘...Ah, porque isso, Ah porque aquilo...’ só resmungando da vida. Isso me torrava a paciência. ‘Pessoas inúteis’, pensava eu. Era bem nascido, sempre tive tudo ao alcance de minhas mãos. Não precisava fazer muito escorço pra conseguir o que queria, por isso não entendia do que tanto essa gente reclamava. Era tudo tão fácil! Era engraçado de ver, tudo que fazia dava certo. Às vezes até eu mesmo duvidava dos resultados almejados em alguns negócios; no fim tudo dava certo. Diziam que nasci virado pra lua. Pode ser. Mas como tudo muda... minha vida mudou. Como se tivesse virado uma página na minha vida. Terminado uma etapa e começado outra. Totalmente diferente. Uma virada na vida que até perdi o rumo. Já não me reconhecia mais. Fui de um extremo (a bonança, a sorte) ao outro( as dificuldades, o azar, o fundo do poço). Com o tempo a gente vai entendendo todas essas transformações, mas conformar, é difícil.

“Minha vida deu uma virada tão grande, que perdi tudo: amigos, esposa, casa, carro... tudo. Teria que começar tudo de novo. Lá de baixo. Só que na minha idade já não era mais tão fácil. Tive que recorrer a várias pessoas, mas me olhavam com ar de desprezo; assim como eu olhava os outros, em tempos idos. Foi aí que percebi o quanto havia sido mesquinho e insensato. Agora era eu que precisava correr atrás.

“E assim foi durante um bom tempo. Quando pensava que fosse melhorar, surgia um empecilho e eu voltava à estaca zero. Parecia que havia um complô contra mim. Algumas pessoas com quem eu tinha oportunidade de conversar, me diziam que isso era carma, eu tinha que passar por aquela provação. Nunca acreditei nisso. Sempre achei que o destino é a gente que faz. Num dia desses estava eu na Igreja Matriz... havia ficado mais religioso; aliás a gente só presta atenção nisso quando estamos no aperto. Apelamos pra tudo que é santo, impondo, como se ele tivesse obrigação de resolver tudo por nós. Como ia dizendo, lá estava eu, sentado num banco da igreja, quando apareceu por ali um sujeito com um embrulho, desses sacos de papel de mercearia. Fiquei observando, sem dar nas vistas, aquele sujeito. Ele foi até a sacristia... voltou. Havia apenas nós dois dentro da igreja naquele momento. Fingi que não o havia percebido, que estava rezando. Ele veio e colocou o pacote aos pés de São Sebastião. Olhou ao redor e saiu. Aguardei alguns instantes e curioso, fui ver o que era. No pacote estava escrito: ‘Para as obras de São Sebastião’. Eu que era muito bem informado, nunca tinha ouvido falar sobre tais obras naquela cidade. Esse sujeito deve ter se enganado. Tive um impulso de ver o que era. Abri o pacote e lá estava. Todo aquele dinheiro em notas de cem e de cinqüenta. Meu coração disparou. Pensei em colocar o pacote de volta mas não me movi e fiquei por um momento olhando aquela dinheirama toda. Tudo bem que não resolveria todos os meus problemas financeiros, mas com aquele início e com a minha experiência poderia recomeçar. Pela minha cabeça passa mil e uma idéias de como eu poderia começar a multiplicar aquela razoável quantia em dinheiro. ‘Não, não seria certo’, pensei eu. Mas aquela visão e o desejo de sair do caos financeiro em que eu me encontrava falou mais alto. ‘Só um empréstimo’, pensei eu. ‘Depois eu devolvo. E com juros’. Sim, porque nunca fui ladrão ou praticante de qualquer outra desonestidade. Rígido com os outros, mesquinho, arrogante, sistemático, isso sim, admito, mas desonesto não. Naquele momento entendi que qualquer um é passível de erro. Ora, quando o destino fica espezinhando e atravessando o seu caminho (embora não acreditasse muito nele), não há quem resista. Chega um momento em que só nos resta chutar o pau da barraca, como se diz lá de onde eu venho. Portanto não me culpem, nem tirem conclusões apressadas. Vocês podem não estar vendo as coisas pelo mesmo ângulo que eu. Ou estejam vendo as coisas pelo ângulo inicial de minha vida. Atinem pra isso.

“Bom, com aquele dinheiro todo, paguei as dívidas mais urgentes, investi, enfim, multipliquei o restante e consegui ‘sair do buraco’. A minha sorte havia voltado. A partir deste momento passei a viver apenas para o trabalho. Um pouco menos severo com as pessoas; talvez mais rigoroso comigo mesmo. Nunca vou esquecer aquela experiência. Não viajei, não esbanjei dinheiro. Ajudava um aqui, outro ali... sempre que possível. Há algum tempo descobri que tinha uma doença incurável. Os médicos me deram pouco tempo de vida. Seis messes. Oito no máximo. Preparei tudo. Fundei a Sociedade Beneficente São Sebastião. Fiz um testamento deixando todos os meus bens para esta entidade.

“Agora estou aqui. Tomando esse chá de cadeira. Na entrada me disseram que eu deveria vir falar com o chefe.

“E vocês, o que é que estão fazendo agora? Veja...”

Neste momento abre a porta que dá acesso a uma imensa sala. Lá de dentro uma voz:

- Entre. Temos muito que conversar.

(Março, 2000)

Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 26/11/2011
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