Outros tempos

Meses atrás eu ainda tinha muito medo da morte, hoje, nem tanto. Parece que as adversidades que me afrontaram, fizeram de mim um homem mais “corajoso”. Nem sei se a palavra mais adequada é está, mas é a que melhor reflete o sentimento que sinto neste exato momento.

Falar da morte ou de morte, nunca foi o meu desejo. Até porque ela está sempre rondando à nossa porta, vez por outra, cutuca a janela para dizer: estou por aqui, cuidado! Particularmente preferiria que me deixasse para sempre no meu cantinho. Já pensei até na possibilidade de passar um susto nela, mas a danada é por demais hábil e aborrecida. Alguns dizem que ela é o início da vida... tenho cá, as minhas ressalvas.

Um dia desses foi ao enterro de um amigo querido que morreu prematuramente. Essas coisas acontecem quando menos se espera.

Como ele faleceu em uma cidadezinha do interior, o velório foi em sua própria casa. Rapidamente formou-se uma multidão nas proximidades do recinto. Dizem que é nessas horas que vemos o quanto somos odiados ou amados, isto se levarmos em conta o número de pessoas que vão prestar o último adeus ao finado.

É interessante notar que, com o advento da Internet, as reuniões familiares ficaram mais restritas aos pais e aos filhos. Hoje os celulares nos colocam ombro a ombro com todas as pessoas onde quer que estejamos. A facilidade do contato é na “velocidade da luz”. Olhando por este ângulo, os velórios passaram a ser, infelizmente, o centro das grandes reuniões domésticas. É onde encontramos os velhos amigos e os parentes distantes. As pessoas vão chegando e cada um que chega é um ah! de espanto. Os cochichos são inevitáveis: olha como ele está velho; como ela engordou; aquela ali... hum!!!... que horror! E assim vai. Chega a ser cômico.

Com o passar das horas chegou o momento do sepultamento que deveria acontecer por volta das 16H. Nesse horário as pessoas foram se acomodando normalmente em duas filas indianas que corriam em direção ao túmulo. É importante lembrar que, nessas horas, os familiares vão se revezando nas alças do caixão num gesto de solidariedade ao defunto. Mas, inesperadamente, quando ninguém esperava ou o que ninguém sabia era que o meu distinto amigo era seguidor da Doutrina do Amanhecer. Com mais de 600 templos em todo o Brasil e em outros países. Em um dado momento do cortejo, seguidores da referida doutrina ocuparam os postos disponíveis nas alças do caixão. Depois de alguns passos, sem mais nem menos, retiraram o corpo do baú. Numa correria desenfreada fugiram com o corpo. Pelo menos era o que parecia, pois ninguém estava entendendo nada. Alguns dos presentes chegaram a gritar: “chamem a policia, os ladrões estão fugindo com o cadáver”. Foi um verdadeiro alvoroço. Outros começaram a rir e bater palmas. Um incrível fuá. A confusão parecia não ter fim, até que um cidadão vestido de branco bradou: temos que respeitar a “vontade” do morto, este corpo pertence ao “Pai Seta Branca”. Vamos levá-lo para o Vale do Amanhecer, para que o defunto receba o último passe e volte para a sequência do funeral. Na multidão via-se de tudo. Alguns faziam o sinal da cruz, outros rezavam Ave Maria, outros riam e outros choravam copiosamente e, outros, faziam gestos que não sei explicar o que significava. O certo é que o ocorrido não foi nada convencional para a maioria dos incrédulos presentes (onde me incluo). Este ritual demorou aproximadamente duas horas para que o corpo fosse levado de volta à normalidade. Esse entrevero serviu como pausa para o “café do defunto”, as conversas variavam do sagrado ao profano.

Enfim, o corpo foi enterrado depois do último desejo do morto, mas ficou na minha cabeça os versos do poema Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto, que diz:

”Não é cova grande, é cova medida

É a terra que querias ver dividida”.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 24/11/2011
Reeditado em 01/11/2017
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