EU TE LEMBRO
O vento gelado, que derrubara as folhas amarelecidas da ameixeira, passou pelo pátio e seguiu pela avenida em direção ao norte, não sem antes carregar junto o resto das flores que haviam enfeitado o canteiro central na primavera.
O sol era como se via no Tejo, avermelhado feito um morango, mas desbotado pela tarde cinzenta que se escoava. Tomei uma braçada de lenha e segui rumo a casa. Coloquei-a sob o fogão e concluí, do alto do conhecimento de meus nove anos, que, como era a terceira braçada de lenha, aquilo bastaria para aquela noite.
No cômodo que ficava além da sala de jantar, minha mãe pedalava a velha máquina de costura, que rangia num lamento ritmado e monótono. Fiquei a olhar para ela, séria, concentrada no tecido que passava por baixo da agulha e que ia juntando as peças de mais um vestido encomendado. Os olhos azuis permaneciam tristes como sempre foram e dos quais me lembraria anos mais tarde quando confirmei a suspeita dela de que tinha um câncer de tireóide.
Pelo meu corpo, enregelado da fria noite entrante, percorreu uma suave e morna onda de ternura que me escapou pelos olhos em duas solitárias lágrimas.
Aquela era minha casa, aquele era meu abrigo. Minha mãe estava ali, e, em breve, chegariam as demais personagens que completariam meu universo compreensível e aceitável na desorganização que espreitava, de dentro de minha limitada ingenuidade, as coisas da vida.
De repente, o ruído da máquina de costura parou e ela ergueu os olhos para mim. Juro que percebi, nos meandros da surpresa, um rasgo de afeto, logo recomposto e dissipado pela ordem:
- O que tá olhando, guri? Vai fazer o fogo!
Abri a porta do fogão e ajeitei a lenha, como aprendera com minha irmã mais velha, para que o fogo pudesse vingar sem álcool. Coloquei jornais velhos por entre os gravetos e acendi o fósforo que iniciaria o ritual de mais uma noite dos invernos que acalentariam tantos anos de fortes razões para manter aquecidos os sonhos de uma vida toda.
Logo os figurantes chegaram: meu pai, minhas irmãs, a noite.
Sobre o fogão, aquecido pela lenha, uma grande panela com leite, à espera da fervura. Minha irmã misturava a farinha com ovo, que completaria a sopa do jantar.
Ao redor do fogão, cozinhávamos pinhões na chapa e aguardávamos o final da fervura da sopa de leite para nos deliciarmos com a realidade que dispúnhamos. Ninguém questionava a existência de outras formas de alimentação. Aquela sopa era a suprema felicidade: quente, apetitosa, preenchia o vazio do estômago e nos unia no prazer de uma refeição compartilhada.
Foram muitas noites de sopa de leite.
Foram muitas noites ao redor do fogão a lenha e de histórias contadas, as vezes pelo pai, outras pela mãe e algumas pelas irmãs mais velhas. Mas a magia do fogão a lenha, do calor que se espalhava pela cozinha, juntando almas, juntando medos, juntando expectativas, juntando sonhos, juntando o que nunca mais permaneceria junto, isso tudo restaria para sempre como o elo capaz de ligar o real com o imponderável, a fantasia com a realidade, o meu sonho com o teu.
Cresci para tornar o sonho dela possível. Morri porque não afastei a tristeza daquele olhar.
Compreendi que não se muda o passado, nem os fatos, nem as dores. Há mágicas que nos permitem criar distintas interpretações da memória, criar um mundo pessoal, mas haverá sempre vestígios a nos lembrar que a mentira é vazia e a realidade é uma tirana despudorada a romper nossas fantasias.
Jamais pude me livrar da lembrança daqueles tristes olhos azuis. Mesmo quando ela falava de alegrias, havia neles uma sombra que denunciava uma irrenunciável história de sofrimento.
Mas isso não passa de divagação de um velho com dificuldade de compreender o que se passou nesses anos todos de presenças e ausências, de amores e desconfortos, de vitórias e derrotas e, por fim, da solidão que ameaça dividir a casa sonhada num canto que lembra as sereias de Homero.
Volto, assim, a ser o menino, a esperança, a espera, o infinito, a ausência que, mais dia, menos dia, será percebida.