A Dívida

Morro Branco é uma cidade do interior mineiro, numa região tão afastada que mantém os costumes mais rígidos da moral. O prefeito Eliseu Paranhos estava no seu primeiro mandato. Já fora por duas vezes vereador da mesma cidade e ambicionava chegar a governador e, quem sabe, à esfera federal como senador.

Eliseu dedicara-se à política muito cedo. Aprendera a lidar com o povo, a conhecer suas reações ao que acontece à sua volta, seus costumes, maneiras de raciocinar... Para isso, mantinha uma conduta ilibada. Zeloso com sua imagem, era um exemplo como cidadão e como político; pelo menos aos olhos de seus eleitores. Casara-se aos trinta e dois anos com Helena, dez anos mais jovem. Viviam bem. Não havia nada em sua vida pública ou privada que pudesse ser usado por seus adversários políticos, que pudesse interromper sua brilhante carreira. Nos doze anos de casamento tudo corria bem. Questionava, às vezes, a si próprio se não estava dando mais atenção à sua carreira do que à sua esposa, a mulher que o apoiara durante anos, e que, sem dúvida, era um esteio que o mantinha firme na realização de seus sonhos políticos. Ultimamente, porém, sentia algo diferente na esposa. Estava arredia e distante... Algo estava diferente nela e isso já não estava agradando a Eliseu. Sempre com a pulga atrás da orelha, ele ia levando o casamento, aparentemente, de maneira normal.

Era conhecido como pessoa de grande bondade. Muitas pessoas lhe deviam favores, que ele, dentro de sua habilidade política sabia aproveitar em seu favor.

Há alguns dias, doara, como cidadão de Morro Branco, quantia substancial a um asilo da cidade. Quando vereador, em seu segundo mandato, prestou ajuda a uma mulher, para que ela se separasse de seu marido, que a espancava. A última vez que isso aconteceu, o sujeito havia retalhado o rosto da pobre com um estilete, desses que se compram em papelaria. Eliseu conseguiu para ela, advogado e passagem de ônibus para sua erra natal. O marido conseguiu escapar a uma condenação mais dura; acabou se conformando com a separação. E foi justamente o irmão desta mulher que o procurou nesta manhã em seu gabinete; como não o havia encontrado, retornou agora à tarde, obtendo sucesso desta vez. Sem saber do que se trata, imaginando ser mais um favor a ser pedido, Eliseu deixa-o esperando por cerca de quarenta minutos. Por fim a secretária lhe diz:

- Senhor... O prefeito Paranhos irá lhe receber agora.

Aquela figura humilde, franzina, se levanta e passa pela porta. A secretária a fecha logo em seguida. Observa a sala bem arrumada, com estantes e armários de madeira. Mesa em estilo antigo, atrás da qual está o prefeito Eliseu Paranhos.

O prefeito se levanta. O “sorriso espontâneo” que tantas vezes treinara diante do espelho estava agora estampado em seu rosto. Adianta-se, saindo detrás da mesa, vindo ao encontro do possível eleitor. Cumprimenta-o e pede que se sente.

- Muito bem, Senhor Francisco... Em que posso lhe ser útil?

- Bem doutor, minha vinda aqui não tem nada a ver com o prefeito e sim com a bondade da pessoa que o senhor é.

Eliseu concorda lisonjeado, mesmo sem entender o que ele queria dizer. Espera em silêncio que Francisco conclua o que tem a dizer.

- Não sei se o senhor vai se lembrar. Há muitos anos atrás, o senhor fez muito por minha irmã, num caso de separação, ocasião em que ela fora muito espancada pelo marido, chegando até mesmo a feri-la com uma faca ou coisa assim...

Paranhos sempre tivera boa memória e se lembrava do caso, pois este havia saído em todos os jornais e sua atitude o ajudara na sua eleição para prefeito.

- Sim, sim. Lembro-me muito bem- completa pensativo – não sabia que ela tinha um irmão.

- Poucos sabem disso. Na época não pude aparecer porque estava em dívida com a justiça. Hoje eu e minha irmã estamos em dívida com o senhor. Somos pessoas de honra.

- Não ajudei sua irmã pesando em favores – rebate Eliseu procurando manter sua imagem de homem do povo – Fiz o que faria por qualquer pessoa. O que não podia, era deixar um covarde, que é isso mesmo que ele é, um covarde, fazer tanta barbaridade com outra pessoa. Portanto, agi cumprindo minha obrigação de bom cidadão; vocês não me devem nada.

- Mas nos sentimos em dívida. Estou aqui pra saldar essa dívida. O senhor me desculpe mas não gosto de ficar devendo nada a ninguém – insiste Francisco.

- Diga então, Francisco. O que pretende fazer?

- Bem, pra dizer a verdade, vim a esta cidade à procura do ex-marido de minha irmã, pra que pudesse colocar nossas contas em dia, por tudo que ele fez a ela.

- Sim... – diz Eliseu ainda sem entender aonde aquilo iria levá-lo.

- Fiquei algum tempo na espreita do sujeito e acabei descobrindo muita coisa.

- Seja mais direto, por favor.

- Como se diz por aí, o marido é sempre o último a saber...

Um sino bate dentro da cabeça de Eliseu. Francisco continua:

- Ele tem recebido a visita de uma mulher. Essas visitas têm sido cada vez mais frenquentes. Não gostaria que o senhor fosse o último a saber. Essa mulher... é a sua esposa.

Eliseu se põe de pé num sobressalto. Contém-se a tempo para não pular no pescoço do sujeito à sua frente. Reflete um pouco, analisa as últimas atitudes de Helena. Aparentemente se acalma e volta a se sentar, sem nada dizer. Francisco o observa em silêncio por mais alguns segundos e continua:

- Não tenho intenção de ofender o doutor. Só que, como estou em dívida, eu não poderia permitir que um homem tão bom fosse apontado na rua como “o corno”. E o pior, sem nem saber ainda.

Eliseu pensa um pouco: “Que método mais esquisito de pagar uma dívida”!

- Sabe onde estão se encontrando?

- Sei, sim senhor.

- Escreva aqui neste papel, o endereço.

Francisco pega a caneta e com certa dificuldade, rabisca o endereço. Eliseu pega o papel... demora um pouco para decifrar os garranchos. Pensa um pouco e diz:

- Gostaria de abusar um pouco mais de sua ajuda, mas preciso de um tempo pra pensar no que fazer. Pode voltar aqui amanhã pela manhã?

- Serei o primeiro a chegar, doutor.

- Mais uma coisa. Alguém mais sabe? Contou a alguém?

- São muito cuidadosos. Não acredito que mais alguém saiba. Só fiquei sabendo porquê estava na cola dele. Quanto a mim, de minha boca não saiu nada... nem sairá.

Os dois se despedem e Eliseu fica pensativo, observando aquele soco no estômago. “hum... muito esperto o nosso amigo. Veio dar cabo do ex-cunhado mas vislumbrou a possibilidade de ganhar com isso. Paga aqui e recebe ali. Sei... Talvez ele próprio venha a me dar dor de cabeça no futuro. E essa história dele garantir em ficar em silencio não me convence”. Eliseu pede à secretária para cancelar todos seus compromissos para aquela tarde e sai em seguida.

Meia hora depois, ele se aproxima da ponte sobre o Rio Lajeado. Pára a dez metros dela. Olha para os lados. Depois pelo retrovisor, verificando se não havia sido seguido. Estava sozinho. Desce do carro e vai até a ponte. Ouve o barulho do rio batendo suas águas nas pedras em seu leito, passando por debaixo da ponte e seguindo, contornando os morros que compõem a paisagem local e que encobrem a visão da ponte para quem se encontra distante. Observa o local por um longo tempo. Procura um local onde possa ocultar o carro. Mesmo tendo pouco movimento naquela estrada, Eliseu não queria correr o menor risco. Não era do seu feitio “dar sopa pro azar”. Nesse tempo em que ficou ali, calculou cada passo que daria no dia seguinte Volta em seguida a Morro Branco. Confirma o endereço no papel. Pouco depois ele passa pela Rua das Andorinhas, no número indicado. Estaciona o carro um pouco mais à frente. De óculos escuros e boné, ele aguarda dentro do carro. Fica ali por um bom tempo, retornando à Prefeitura antes do final do expediente.

Na manhã seguinte, conforme Francisco prometera, foi o primeiro a chegar. Combinam o preço e o local para o pagamento, uma vez que seria arriscado Francisco voltar à prefeitura. Se encontrariam à tarde depois do serviço feito sob a ponte do Rio Lajeado.

- Quero que seja feito hoje. E não se atrase muito.

- Estarei lá – afirma Francisco – Está fazendo a coisa certa, doutor.

- Eu a segui ontem e confirmei o que me disse. É melhor cortar o mal pela raiz. Agora vá. Não é bom que nos vejam juntos por muito tempo.

Naquela noite nota que a esposa faz, sem sucesso, várias tentativas de telefonar. Diz estar querendo falar com uma amiga. Eliseu age normalmente.

Na manhã seguinte soube-se que no final da tarde anterior havia sido assassinado um morador da Rua das Andorinhas nº 6. A polícia não tinha pistas do assassino. À tarde, descobriram que um forasteiro havia morrido ao cair da ponte sobre as pedras do Rio Lajeado.

Por algum tempo, o bom marido Eliseu se preocupou com o súbito ataque de depressão da esposa, o que a obrigava a tomar fortes doses de remédios. O estado dela piorava a cada dia, até que se tornou necessário interná-la, por começar a dizer coisas desconexas, tais como o grande amor que havia “morrido matado”. Foi internada no Sanatório Público Municipal, com diagnóstico de irrecuperável.

Prefeito Eliseu Paranhos, manteve sua imagem de marido cuidadoso, homem do povo, homem sofrido, carente de apoio popular. Sua popularidade aumentou, reelegendo-se prefeito de Morro Branco, com perspectiva, de num futuro próximo, vir a se eleger o Governado do Estado.

Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 22/11/2011
Código do texto: T3349986
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