Ah! O amor!

Tive um sonho. Eu era um sapo (ou seria uma perereca?) sentada, engolindo moscas de hora em vez, quando de repente ouvi uma doce voz de donzela:

— Sabê-lo bem: a máscara da noite me cobre agora o rosto; do contrário, um rubor virginal me pintaria, de pronto, as faces, pelo que me ouviste dizer neste momento. Desejara – oh! minto! – retratar-me do que disse. Mas fora! Fora com as formalidades! Amas-me? Sei que vais dizer-me "sim", e creio no que dizes. Se o jurares, porém, talvez te mostres inconstante, pois dos perjúrios dos amantes, dizem, Jovem sorri. Ó meu gentil Romeu! Se amas, proclama-o com sinceridade; ou se pensas, acaso, que foi fácil minha conquista, vou tornar-me ríspida, franzir o sobrecenho e dizer "não", porque me faças novamente a corte. Se não, por nada, nada deste mundo. Belo Montecchio é certo: estou perdida, louca de amor; daí poder pensar que meu procedimento é assaz leviano; mas podeis crer-me, cavalheiro, que hei de mais fiel mostrar-me do que quantas têm bastante astúcia para serem cautas. Poderia ter sido mais prudente, preciso confessá-lo, se não fosse teres ouvido sem que eu percebesse, minha veraz paixão. Assim, perdoa-me, não imputando à leviandade, nunca, meu abandono pronto, descoberto tão facilmente pela noite escura.*

Pensei com minhas manchas - já que sapos não usam camisas, ficando, assim, difícil pensar com os botões -: onde estou? Seria algum lugar perdido entre o século dezessete, dezoito ou dezenove? Antes disso ainda?

Tentei lembrar as palavras que não me pareciam estranhas. E o linguajar? Arcaico, meloso e antiquado, cheio de não me toques e poesia e delírios apaixonados e ainda e, sobretudo, um tal de Romeu?...

Pensei. Pensei. Pensei. E num estalo, ou melhor, quando estalava a língua pra fora da boca pra pegar uma mosca tsé-tsé que passava rente aos meus olhos me dei conta: Romeu. Romeu e Julieta. Sim! Julieta. Era Julieta de Romeu. Shakespeare com certeza.

Eu não queria perder por nada nesse mundo o encontro de Romeu e Julieta, nem mesmo por uma mega-mosca-verde, suculenta e cremosa. Estava exultante - taquicárdica -. Estava preste a presenciar o encontro mais romântico de todos os séculos. Dramaticamente romântico.

... E parece mesmo que antes do amor há de vir um certo tempo entre a busca, a quase decepção, a loucura, o devaneio, o arrancar os cabelos, as lágrimas, os sentidos todos emaranhados até o tempo exato da conquista, a espera, a espera, a espera, o primeiro sinal, o primeiro olhar, a primeira palavra, a segunda palavra, a terceira palavra (desnecessária), o roçar de mãos, os dedos entrelaçados, o suspiro, o beijo, o beijo, o beijo, o beijo, os corpos, o sexo muito bem feito e aproveitado e por fim o véu e a grinalda assinando um foram felizes para quase sempre até que um dos dois resolva se separar. Enfim, o amor... que chega, toma conta e ...

Hoje em dia anda tão desgastado. Sem graça (será?).

Por onde andará o romantismo? Enclausurado em alguma masmorra de celas e pedras escuras sem luz para iluminar? Ou será que se desgastou de tanto ser usado tal qual colarinho de camisa branca de ser a única pendurada no armário de camarins televisivos onde tudo é tão fácil de ser feliz no último capitulo da novela mesmo que antes tenha-se provado tudo e todos numa suruba quase muito familiar?

Como sapo sei que estou fadada a pular e pular até encontrar alguma sapa (ou vice-versa) e nem sei como acontecem esses envolvimentos entre sapos. Talvez seja um chegar babento de olhar aberto e esfregar de leve a pele gelada contra a pele gelada do outro até esquentar, sem qualquer som. Ou pode ser também uma sonata de coaxar altas madrugadas á beira do lago ou por sobre uma flor de lótus girando, girando à luz da lua. Ou ainda, para ser moderno, um vem cá minha sapa gostosa, vem cá fazer sapinho. Não sei. Não sei como também não sei deste meu sonho de ser sapo ou sapa, ainda que preferisse ser perereca pra poder ser conquistada (de volta ao romantismo).

Fico imaginando um sapão amarelo de manchas verdes rajadas de preto, com olhos grandes e sorriso largo que se achegue, assim, como quem não quer nada e diga (também do nada) que meus olhos de perereca brilham tanto que ofuscam a lua. Ai, ai, meus sais pererecais. Não seria lindo? E depois de trocar algumas palavras de oh estou envergonhada e não sei o que responder quando me elogiam dessa forma, ele viesse carregado de ramalhetes de moscas e mosquitos, ou mesmo apenas uma muriçoca roubada do jardim de um sapo qualquer e me presenteasse num estava pensando em você e não pude resistir em te trazer este mimo. E depois mais palavras e de repente um coaxar uníssono de encontrar os olhos dele nos meus olhos e sorrir e tocar as patas num quero te fazer feliz e sem pressa de te conhecer pra sempre nos bons e maus momentos e fazer sempre ser bom de pular pelas pedras juntos e juntos até que seja o que for e enquanto isso que seja bom. Será que é assim? Se assim for, então, que eu seja sapa-perereca para sempre porque os amores humanos andam um tanto quanto confusos de não se saber mais o que significa romantismo ou companheirismo ou o que o amor um dia significou e deixou de significar numa roda de amigos e amigas que já se conhecem dentro e fora da cama e esquinas escuras e bancos de carro e por vezes mal lembram os nomes. Acho que estou ficando velha. Uma sapa-perereca fora de época porque ainda acredito em passeios de mãos dadas...

Pulei duas, três, quatro pedras indo em direção à voz. Agora tinha visão perfeita do jardim da bela casa de Julieta e ali estava ela caminhando lentamente com um dos braços um tanto esticado para trás como se fosse véu saindo de seu ombro, leve, flutuando como se não houvesse gravidade. A outra mão pousada no peito segurando a explosão que arrebata, cega, alucina, atordoa. A explosão chamada paixão. Ah. Que linda cena. A lua banhando sua pele branca e cintilante, levemente acariciada pelos longos cabelos que lhe caiam em cascatas douradas. Em seus olhos via-se o amor pulsante e mais uns bons vinte ou vinte e três adjetivos.

Procurei Romeu, pois devia estar por ali. Era assim. Agora Romeu deveria falar.

Julieta havia dado a deixa.

Lá estava ele, à direita da minha visão de sapo, pendurado na treliça onde trepadeiras cresciam harmoniosamente. Usava roupas coloridas e largas. Um adorno de aba grande na cabeça que lhe tapava toda a testa e metade dos olhos. Envolto ao pescoço belíssimas correntes de ouro. Anéis. E o sapato do mais puro couro costurado.

Romeu pigarreou e soltou um dó-maior desafinado e rompeu:

- Eu gosto quando você diz que gosta de mim

Eu sei que é mentira, mas eu gosto assim

Eu nunca vi. Que nem você não tem cadela igual

Você me deixa babando e passando mal

Parece que passaram repelente : "Não encosta !!!"

Mas peraí, tenho certeza tenho o que cê gosta

Arrumo Limusine só pra dá um rolê aí

Te falo no ouvido aquilo que cê quer ouvir

Uma noite de Princesa, quem não quer passar?

Eu tenho o que você precisa e pronto pra te dar

Não sei bem se sapo tem orelha, mas cocei as minhas para ver se a cera acumulada não estava me deixando um tanto quanto surda.

Romeu continuou:

- Na mesa caviar. No pano marca de batom

Teu beijo tem aquele gosto de Moët Chandon

Até o som que tá rolando fica sensual

Uma mistura de Tim Maia com Dogão é mau

Você tem que mi dá e quimicá de tão cheirosa

No banho e tosa relaxando no ofurô de rosa

Agora vem deitar comigo, que pelo macio

Me arrepio quando você diz que tá no cio**

Eu não estava surda. Era mesmo a voz de Romeu que cantava com uma das mãos por sobre sua genitália (e como genitália é feio de se falar) e rebolava. Não. Remexia num pra frente e pra trás despudorado.

Veja bem que digo despudorado, genitália e tudo o mais, uma vez que estou em plena atmosfera Shakespeariana e acredito piamente que naquele tempo (deles) não se usavam outras palavras que não despudorado e genitália e etcétera.

Mas isso não era tudo. Não ainda.

Romeu despencou da treliça num duplo mortal e correu ao encontro de Julieta que o olhava tão abismada quanto eu. Abraçou a moça apertando-lhe as nádegas (a bunda mesmo. - Será que diziam bunda ou nádegas ou ancas ou? -) e foi logo lambendo sua orelha.

Os olhos de Julieta pareciam querer pular das órbitas enquanto suas mãos tentavam afastar aquele Romeu saído de algum baile rap-funk-sub-urbano. Pensei em como poderia ajudá-la, mas tendo em vista a minha forma pegajo-gelatinosa e a pouca agilidade – ser sapo é diferente de ser outra coisa qualquer - fiquei observando os acontecimentos e torcendo para que Julieta usasse a velha tática rotular. Explico: A tática rotular nada mais é do que a ascensão da extremidade rotular, paralisando o suporte sustentáculo da unidade sobressalente do elemento atacante ou na linguagem técnica: Dar uma joelhada no saco de Romeu.

Infelizmente não foi o que aconteceu. Sem entender nada, vi Julieta, a donzela, afrouxar a força das mãos e corresponder ao amasso provocado (provocante?) daquele homem que, agora, já lhe apertava os peitos e mordia seu pescoço enquanto ela gemia um: Oh! Yeah came on baby! Yeah! Yeah! Oh! Yeah!

Eu por minha vez fiz o que pude fazer: babei.

Aqui não cabem maiores detalhes do que ocorreu na seqüência - a imaginação existe para ser usada – e, diga-se de passagem, eu jamais cogitaria imaginar o que Romeu e Julieta imaginavam e apresentavam em tela Scope para quem quisesse ver - eu vi, meninos. Eu vi -.

O que se pode dizer é que dias depois Romeu e Julieta marcaram um encontro atrás da igreja onde o tal pastor “manero-brow-firmeza” estava pronto a uni-los nos sagrados laços do concubinato. E disseram, quem os viu, que Julieta, agora, usa calças de cintura baixíssima, com top minúsculo (após os 500 gr. de silicone) e formou um grupo de funk, juntamente com Isolda, Cressida, Cleópatra e uma tal de Megera chamado: “As Alegres Tchutchucas de Funktown” e estão nas paradas de sucesso com as baladas “Atolada de uma noite de verão” e “O Marombado da rua Veneza”. Romeu virou seu agente e enquanto Julieta canta, ele xaveca Medeia. Os dois assumiram o relacionamento aberto e por isso, e só por isso o truta Macbeth, o mano Otelo e o chefia Lear, mais conhecido como MC Lear, dividem o quarto e a cama com Julieta. Tudo numa boa, Tudo no maior love.

Foi o que disseram. Não comprovam e não descomprovam.

Enquanto vejo o amor atolar na tchutchuca linda que anda boladona porque Dako é bom no bonde do Tigrão acompanhado pela Lacraia (vai lacraia, vai lacraia), vou me beliscando pra ver se (me) acordo deste sonho que é mais do que um pesadelo:

Eu de sapo?... Isso é ridículo!

* Fala de Julieta retirada da peça “Romeu e Julieta” – Shakespeare

** Fala de Romeu retirada da música(?) “Banho e Tosa” de composição de: Charlie Midnight/ Andre Cymone/ Dogão/ Mano Cabuloso. (precisaram de quatro pra produzir esta obra prima da música popular brasileira.... )

P.S.: enquanto isso no éden literário, Shakespeare galopa pelos verdes prados na éguinha pocotó. – pocotó, pocotó, pocotó -...

Paula Cury
Enviado por Paula Cury em 03/01/2007
Reeditado em 07/10/2011
Código do texto: T334951
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.