Um Roceiro Aprendiz

UM ROCEIRO APRENDIZ

Ao Vô Fiote pelo dote da linguagem

Ainda no momento em que remeto esta aos senhores, mesmo não sabendo se chegará à vista de algum com existência certa, firme, não careço de por sentido na juntura dos fatos. Não trago na capanga um grão sequer de firmeza a quem lê. Falo mais é pra mor de desabafar, trair o tino com tempo gasto falso ou mesmo miudando em certeza; enxadão desencavado, com a língua afiada, cortosa, potente, cobre batuta e novo, mas sem cabo.

Se houve proseio de peão sabido, homem de não sei quanto de instrução, montado em cadeira, vista fraca de tanto campear letra miúda em almanaque calibroso, posso dizer com a força de um burro novo, com a quentura de boi inteiro, aluado, derrubador de farpado no peito, que no mundo não tem dessa conversa de coisa certa e errada. Papo furado de vigário pra cevar caboclo em missa, de velha benzedeira, lambuzando os outros com capim de toda estirpe.

A lembrança vem cutucando a gente. Sô Enoque era velho sabido, passeava todo derradeiro de tarde sem carecer de precisão mesmo. Costumava trepar em morro e sentar debaixo de árvore, sempre carregando um porrete. Não tinha quem não tomava opinião com ele não. Casamento, negócio de compra, venda, troca, meia, trajeto de cobra, cachorro papador de galinha, doença de zona, ressaca, olho gordo, cozinha, enxorrio de bezerro mamão...o velho era conselheiro, cofiava o algodão branco na cara e sempre arregalava a jaboticaba pra aferir o fato a obra do céu ou do inferno. Como se esse assunto me fosse hoje de alguma valia. Quede o Sô Enoque pra me desgarrar dessa mata fechada, dessa galhada de rio, desse lodo frio de brejo arrozeiro, cortante, capim navalha? Cadê o conselheiro pra refrescar minha ideia de forma que eu volte a pensar de novo e a ter noção de tempo e de lugar?

A tubarana quando sai d’água pipoca toda dançarina pro chão afora, numa brabeza de corpo tomado, bate o lombo ladeando pro barro seco, se ferindo cada vez mais no desespero seco do cascalho, da areia fina e cortante dos bichos de fora do mundo molhado, acuoso e normal, como deve ser o mundo da tubarana.

Teve uma ocasião em que o Sô Enoque desembaraçou quizila antiga entre dois matutos vizinhos. Seu Nelson era o único erveiro desses lados. Único macho capaz de bater o olho em pasto fechado e conhecer erva-daninha. Didau por exemplo se mistura com outros matos, não tem quem não deixa passar. Erva ficando, é a seca chegar e o gado bater a boca naquilo por falta de trato. É mascar e cair, nem a carne se aproveita, porque onde o sangue daquilo derrama, num é bom nem plantar ali mais não. Derruba cachorro carniceiro e até urubu, tudo vestido de fraque, fantasiado de crente, cambaleando em direção à carcaça, só salivando. Antes de bicar no falecido, fica ali em riba do moirão de cerca, guaritando a boia e metendo olho ruim naquilo.

Seu Nelson era desavença velha do Chico Seleiro. De trombar em estrada deserta e investir no outro. Quando se dava fé, era poeira sungando e pescoção moendo. Tinha de sair de longe pra acudir aquilo. Saíam os dois tudo esfolados com as pontas de osso comidas de tanto ralar pra terra afora.

Por este motivo, pasto do seleiro era carregado de erva. Toda seca era o mesmo enguiço. Além do gado dele, num tinha garrote da vizinhança que num arrebenta cerca, de olho no veneno verde. Era homem demais que perdia boi, até vaca leiteira; de fazer uma dó sentida. Dava a noite e a gente ainda escutava os berros doloridos se espichando pelo vale inteirinho. Como é que pregava o olho?

Seu Nelson num punha foice em terra do Seleiro nem por muito dinheiro, mas o que ninguém esperava era que o Sô Enoque daria jeito naquilo. O erveiro tinha uma única filha que era o xodó da casa, tudo lá era pra ela mesmo, de roupa bonita até novidade da cidade. Tudo pro gosto da menina.

O Velho Enoque sabia do horário de escola da moça e mandou buscar cachorro caçador dos lados do Paiol. Sabendo que o Chico era homem de coração grande, foi buscá-lo em casa pra acudir ele, de mentirinha, com uns arreios que tinha arrebentado. Só que deu certinho de no caminho trombarem os dois e a menina do Nelson. Nesse inteirinho, homem de confiança do Enoque já tava tocaiado e desamarrou escondido os cachorros que voaram pra banda da menina. Era tudo bicho de caça, tatuzeiro, dava sinal, latia grosso, fazia medo mas não avançava não.

Vendo a menina passar estreito com a cachorrada e com pena do Velho Enoque, o Chico Seleiro deu de gritar com os bichos, achando que tava salvando a filha do Nelson.

Já foi o bastante pra no outro dia o Seu Nelson mandar agradecimento pro Chico e colocar fim na discórdia. Sem ninguém falar nada, meteu a foice no lombo e tirou de graça tudo quanto é erva da propriedade do Seleiro. De lá pra cá, gado num bateu mais as botas na região por conta de didau e se definhava mais uma discórdia do mundo.

O que eu pergunto pra eu mesmo é onde anda essa saberança, conhecimento pra consertar o irreparável, pra brecar tufão d’água morro abaixo, cegar olho de fogo morro acima, destravar quebranto, desfazer mandinga. Onde é que anda todo miolo do mundo? Por que cargas num compreendo o que tá à minha volta se eu mesmo me sinto igualzinho a calango branco; sem cor nem quentura, sem expressão nem sentimento. Comendo pra viver e vivendo pra comer. Diria que nem isso se os senhores fossem de acreditar.

Nasci em berço distante, distância do que eu nem sei por que não há nada que seja perto. Vizinho não se avistava por conta da localidade. Em tempo de chuva a gente acreditava que tava esquecido no meio do vazio; dez, quinze dias de água só coarando e a meninada em casa sem nenhum tipo de recurso de hoje, se é que me posso dar ao luxo de um hoje. Se desse pio na hora da boia, já era motivo de buscar o bingo de boi, seco, ardido. Aquilo era o relho da molecada. Saía com a cacunda que era tomate, cuspindo a revolta calado pra lá pra num levar mais e com risco de quebrar dente.

Do jeito que meu velho tratava a terra, também tratava as crias. Zelo, carinho, capricho, só que com meio de educar, de ver depois tudo homem honesto, fazedor de obrigação e gente de bem. Tinha muita cisma da gente crescer longe de tudo, receio da barrigada sair bobada, capiau. Não ligou pra estudo mas fazia questão de prosear toda noite, ensinar cada malícia mesmo com a brabeza de galinha choca, avançadeira.

Falando em galinha, veio na minha caixa aqui um acontecido de quando um irmão foi fazer a primeira comunhão. Recurso pra sair era custoso, ainda mais com barrigada comprida. Bicho do mato, chegava no povoado tudo que nem tatu preso em gaiola caceira, com vertigem de ver gente, olho arregalado, jaboticaba, cabeça pra baixo, tudo desacossoado.

Regressando pra volta do dia, tava tudo varado, com o bucho colado na cacunda. Pai mandou apanhar um frangão dos que ficavam ciscando do lado do chiqueiro. O problema é que apontou pro carijozão estiloso que a Vó trouxe pra cá ainda pintinho, falando que era meu. O bicho foi criado na mão, eu dava quirela toda tarde, andava até atrás mais eu quando voltava da bica.

Fazer o quê? Deus sabe a peleja que criei comigo mesmo pra olhar pro frango e na trairagem catar pelas patas. Era mais bobado que o resto, foi crescendo sem maldade de galo, temia gente não, foi assim desde novinho, passeava dentro de casa, em riba de ombro. Deu um gritado como que num tivesse entendendo e repuxou os dedinhos com coisa que ia deveras soltar da garra do Judas. Pelo peso tava com papinho cheio, devia de ter brincado a manhã inteira no terreiro, dando capote atrás das franguinhas que esperava enxertar assim que criasse espora. Não teve chance de ser arisco porque não gastava de temer o homem. Ficava veiaco é com irara, gambá, cachorro festeiro e até alguma cobra, que denunciava alardeado, sambando nas patinhas pro terreiro afora. Galinhada abrindo o gogó fora de hora num pode ser ovo, é passar a vista na terra batida e lidar com alguma jararaquinha puladeira ou cascavel enroladona. Essa é soberana, devia de ter juba porque se posta como rainha, não arreda por conta de risco, morre matando e mata morrendo. Honra as calças que num tem.

Parecia que o galinhame virou plateia e eu me queimava de uma vergonha feia. Não tinha franquinho que não me reprovava pela covardia fria, bote nas costas, sem perdão. Foi então que avistei o tanque e quis afogar o carijó pra ele não sentir a friagem da faca. Do meu olho pingava um caldo arrependido, salgando a água, fazendo umas bolas agoreiras no tanque e apagando o meu próprio reflexo.

O que circulava na cabeça do Carijó naquele prazo? Como é que ele podia entender que a ruindade do homem colocava ele naquela situação de desentendimento, dúvida, de um desespero derradeiro e triste? Na medida que a borbolha subia, a vontade era de levantar a crista dele, passar a mão, limpar, secar aquela penagem cinzenta, olhar pra ele e dizer que é de mentira, de brinquedo, pra assustar o Carijó.as patinhas denunciavam o fim do episódio mais infeliz e eterno da minha infância.

Quando pensei que tudo tinha acabado, ainda levei sova dura porque levei o frango morto e num tinha mais jeito de aproveitar o sangue. Enquanto eu soluçava por conta do acontecido no tanque, o marmelo chorava pro meu lombo afora. Tudo quanto é menino achando que o meu bué era por conta da coça, caçoava de mim, proseando que tava apanhando por conta de frango. Ser humano é bicho estranho, finge não se afeiçoar em criação, faz que num liga pra sofrimento animal e depois padece da própria carência, vai curar doença de amor na pinga. Vira palhaço dos outros, começa a chorar, vermelho de álcool, envenenado, falando em amores, precisando de pinga pra demonstrar afeto.

Depois do corretivo, era costume a gente sentar no paiol e passar o tempo lá pra refletir. A hora mais infinita da minha vida foi ilustrada pela quirela que o Carijó ia papar de tarde na minha mão. Tava ali no debulhador e no triturador o milho, a lágrima, o suor, o sangue nas costas, o fubá, a quirela, tudo misturado e o único refresco foi não ter que comer a carne no almoço, não ter que sentir o cheiro do meu delírio.

Agora, essa sentimentada que eu tive de sentir no passar dos dias, das acontecências que tenho relatado aos senhores, esses continuam aqui dentro de não sei onde mas com que vou me importar se o sentir ainda mantém? Sentimento , o coração apertado de ver o Carijó padecendo ainda ta intacto, paradinho igual a burro empacado, não arreda pata nem com a desvantagem do porvir. Sentir deve de ser mais importante que possuir.

Posse é coisa que envenena o homem, faz peão mansinho virar onça e traíra, golpeando a cacunda de quem intromete pro caminho afora, sem cisma de pecar, sem receio de pagar. Essa prosa toda me lembra o Doutor Moreira, filho do Sô Chico Moreira, neto do Coronel Moreira. Esses cabras do poder são a formiga da plantação da vida; alastra que nem fogo em dia seco, ventoso, não tem quem cerca. Um vai transmitindo ruindade pro outro e comendo a raiz do mundo, roendo sem piedade e multiplicando na medida que devasta; formiga quenquém, assoviando no silêncio, batendo o dentinho no verde sem ser percebida, se fazendo de miúda, de ninguém.

Onde tem poder tem puxa-saco. Anu carrapateiro, espreitando boiada gorda, caçando bichinho, fica alisando, penteando o couro do gado com o bico, com coisa que ta fazendo carinho, se passando de Pai João, de ridículo pra dizer que ta ajudando o boi. Na verdade, pensa em encher a pança, não influindo com a opinião da bicharada que se ri a balaiada do puxa-saco. Se o boi sumir, ele some também, se morrer ervado, morre junto, se for abatido, o anu também se abate porque não sabe viver sem o bichão, não agüenta mais sair pra caçar sozinho.

Anu velho, se perrengar no curral, der bobeira no chão, morre pisado, toma cascada, patada de guzerá porque é pequeno na atitude, num merece o tempo bovino pra carecer de licença, pra avisar, sair debaixo. Não há boi criado que num carregue seu anu. E o mundo se cabisbaixa de sua própria criação, se envergonha no final de toda tarde fria com o brasão do céu.

Moreira não era gente de desfazer porque havia quem o fizesse pra eles. Vinham de geração antiga a comandar tudo que há de melhor e de pior na região. Num tinha jeito de varar uma propriedade na outra sem pisar em pastagem Moreira. Era terra sem jeito de contar, cabeça de gado que de cima virava buscapé em dia de correção, um pomar que aguava a boquinha dos meninos, voltando da escola que mandaram construir no terreno deles. Quem pusesse o bico em um gomo de mexerica, havia de preparar a canela que cachorrão batia atrás mesmo. Tinha uma represa que era o próprio mar, com peixe pedindo passagem pra num trombar no outro e o anzol que entrasse naquela água podia preparar o lombo que levava chumbo.

Doutor Moreira era filho, neto, bisneto de Moreiras, tudo nutria lenda de ruindade. Só que este não era de roça, só vinha pra encher o bornal de voto e voltar com sua gravatinha pra BH. Quem cuidava de tudo era o encarregado mais velho, homem de confiança dele, era quem pingava a mixaria do desinfeliz que batesse enxada lá. Servia bóia azeda pra turma aproveitar o que ninguém comia; feijão de broto, arroz quebrado, galinha velha, couve amarela, laranja passada, era tudo cardápio dos pobre-coitados que lidavam com a fazenda.

Dia de missa, a Dona Clarice ia acompanhada das duas meninas. Era a única ocasião que arrancava Mulher Moreira do casarão. Ficavam numa fé medonha, ajoelhadas no chão grosso até depois da bênção final. E a turma era proibida de sair da capela enquanto elas não arredassem o pé. Moacir, o encarregado, ficava vigiando, batendo chocalho. Ai de quem desobedecesse, minguava depois por conta de qualquer favor; remédio, trator estradeiro em época das águas, algum serviço e até trem com padre, tipo confissão, comunhão, batizado. A Terra girava é com sangue Moreira. Sem autorização deles, sabiá não cantava, touro num cobria e novilha não mojava e nem mijava porque a terra gemia na moçada da mata, na trairagem fria dos homens do Moacir, friagem do sentido, friagem da ordem, friagem do espreitar, friagem do fazer, friagem da navalha. Coça de testa de facão tira a honra e a barba do peão maduro, sério, temente a Deus e trabalhador, enchedor de bucho de menino, chefe de tapera simples, saudosa da volta na viradinha do dia.

Elpídio era homem taludo, comprido, com uma barbicha de bode gozada. Nunca foi de bater bem, sem mulher nem filho, vivia de favor num barracão velho em terreno Moreira. Em troca ainda cuidava de horta pra eles, aguava o verde, juntava esterco e no tempo que restava que fazia bico pra ver se ganhava o de comer. Sofreu muita desfeita na vida, principalmente do beiço do Moacir que o colocava todo tipo de apelido, gozava com o jeito dele andar, até com a boia que o coitado pegava era motivo de troça.

No dia da padroeira, a região inteira festejava rodeando a capela. Tinha missa de primeiro, depois veio barraquinha, moda de viola, mulherio todo da região, jogo de bola no campo do lado e pinga a se fazer sopa. Era menino batendo canela pra toda banda, gente que nunca se viu enfeite colorido, música alta e até montaria em boi; além do leilão e da prosa boa entre a companheirada que ainda dá saudade e sentimento até os dias de hoje.

O Elpídio tava lá, coitado, com o trapinho mais bom que podia arrumar, ajeitado daqui, esticado dacolá e com um remendinho ou outro que fizeram pra ele. Foi por devoção e gosto que festa santa é só no nome. Nego vai com intenção diversa de olhar umas bezerrinhas mais novas, de molhar a guela, ouvir uma música e desembestar com o movimento. Tem erro nisso não. Hoje eu vejo o quanto de lereia, de conversa fiada a gente escuta. Dia da padroeira tinha de ter é todo mês, foguete, reza, devoção e um papo agradável, com diversão, família reunida. Esse é o sentido do bicho homem e não bater enxada a vida toda pra reunir metal. Tem gente que só proseia em cobre, negócio, gado, é tudo peão pobre, pobre do falar, pobre no sentir, no aprender a lidar com o outro, a perdoar, largar de ajuntar rancor e pertença pra mor de viver como tudo quanto é bicho; só viver. Do contrário, o mais difícil fica fácil e a facilidade encontra cascalhada, barranqueiro em linha larga, soltando o náilon em boca de galhada se o panelão limpo tá livre. Buscar o rançoso se o frescor da simpleza ta na cara, no bico do sanhaço devorando mamão macho, no beijinho fino do mico-estrela espreitando a gente, puiando, com coisa que engana bobo.

O Elpídio era simples. Dava volta só pra ver o Ipê floridão de setembro, todo lambrecado de gema. Ficava lá debaixo daquilo, apoiando o namoro das abelhas. Gente com miolo em cobre não encherga nem o ouro da natureza, ouro em árvore que num carece de briga nem vela. Ouro de graça, farturento e belo como o próprio Elídio, que era gozado na roça toda porque tinha afeto em cachorro, andava com ele pra toda banda.

Num dia da padroeira, tava a turma toda do Moacir lá, era tempo de gente importante. Doutor Moreira ia inaugurar placa. Nessa situação, a anuzada fica escorada ali, caçando meio de bajular pra mor de levar tapinha no lombo e sair gargalhando que nem seriema perdida, perdia era dentro de si mesmo porque não podia nem se suportar. Nesse contexto de risada e pinga, um dos companheiros do Moacir quis troçar do Elpídio, tentando obrigar ele a beber e fazendo com que o coitado fosse alvo da turma. Arrumaram um cachorro sarnento e relaram nele com coisa que iam dançar.

Tem muita forma de medir o caráter de um peão mas uma medida não falha. Nego que carece de companhia pra troçar dos outros, o caboclo que modifica dependendo do lugar, esse não tem alma, depende do outro pra poder existir e quem não tem alma perde até a valentia. Gavião Pinteiro é o dobro no tamanho e na força que a galinha mas quando avança em ninho novo, tem que rezar pra mãe ali não estar porque ela incha toda pra defender o pinto. O gavião sai pulando envergonhado, com coisa que não é com ele.

Foi o que sucedeu nessa tarde. O Paulo da Liza não andava com a bainha vazia, era novo e nutrido, cada braço que era isso, de retiro. Costume de mexer com gado não faltava. Foi troçar do Elpídio magrelo e cabisbaixo mas perdeu a razão ao jogar o cachorro nele. Esse Elpídio passou a mão num cacete e chiou na cacunda do Paulo até a turma entrar no meio pra não machucar. Envergonhado, ferido, sujo, o Paulo voltou pra casa calado.

No outro dia, não saía de perto dos outros empregados do D. Moreira. Moacir foi pra banda deles, mastigando um capim verdinho. Tava tudo enrolado lá no curral, espreitando o pobre do Elpídio que carregava uns baldes d’água. De vez em quando um conversava mais alto e dava a entender do que se tratava.

Daí pra frente, os dias se rompiam e nada do Elpídio aparecer. Foi preciso o Sô Enoque bater lá no barraco dele. Voltou o velho, sem falar um A e continuou a visitar o Elpídio todo dia, com a barriguinha da capanga estufada. Ia no mato catar alguma coisa, buscava de comer em horta do povo ali mesmo, moia algum milho, passava a mão em ovo, leite e baixava pra casa do Elpídio. Ninguém ficou sabendo o que aconteceu de fato mas o certo é que houve covardia. Tudo em nome do orgulho, gente pequena não se sustenta na própria alma se não se maquiar de poder, de dinheiro. Jararaca se ta no brejo, fica mais verde, catando algum sapinho, enroladinha na navalha-de-macaco pra ninguém amolar. Quando a chuva ta em falta, costura pasto seco e costuma até romper terreiro; aí ela fica bege. É pra ninguém ver ela, que rasteja, anda sem perna, num tem uma mãozinha sequer e se não é pela boca, não consegue se defender nem de um pernilongo.

Pra enxergar a carniça, o urubu dança lá em cima, pra flertar com a urutu, seriema tem pescoço longo e ainda levanta mais a cuca que é pra não ter erro. Nesse momento, eu posso garantir pros senhores que só vejo tudo isso que proseei, da forma como relatei, é porque saí pra longe sem sair, me distanciei ainda próximo e é aí que a inteligência permite a gente a ver o que está perto, a valorizar o que tem valor e se despedir de período outrora. Nesse exato momento se chega gente nova e gente velha, tudo roceiro, pé no chão e com a cara mais boa que pode ter. Me levantam pela mão e é aqui que eu termino minha prosa pra quem sabe prosear outrora.

Giu Santos
Enviado por Giu Santos em 19/11/2011
Reeditado em 25/11/2011
Código do texto: T3344506
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