O Milagre da Fé

Oswaldo Lourenço se casara muito novo, aos dezessete anos, com Leontina, ambos da mesma idade. Um casal ovo, cheio de vida e esperança no futuro. Os pais, tanto dele quanto dela, não cabiam sem si de tanta satisfação. O sonho deles era ver as suas famílias unidas através do matrimônio de seus filhos. Apesar de suas limitadas condições financeiras, as famílias se uniram e deram uma festa de casamento que, igual, não se viu nas redondezas nos últimos anos. Ainda hoje se fala na festa de casamento de Oswaldo e Leontina. Como presente, Oswaldo ganhara uma pequena gleba de terra de quarenta hectares, às margens do Ribeirão das Antas, retirado pouco menos que uma légua de Cruzeta, um pequeno arraial das redondezas onde começou a formar sua nova família.

Oswaldo era um rapaz alto e forte. Quem não o conhecia, juraria que tinha mais idade do que aparentava. Possuía cabelos e olhos castanhos, mãos grandes e grossas, próprias de quem não tinha medo do trabalho. Quando recebeu esse sítio dos pais, apenas um terço dela estava trabalhada, sendo o restante de mata fechada. No início, por aproximadamente três meses, moraram em uma cabana de pau a pique, coberta com folha de palmeira, devido ao atraso na construção da sede; esta de alvenaria e telha colonial.

Assim iniciaram suas vidas em comum, Oswaldo e Leontina, com grandes projetos para suas vidas, trabalhar e ter conforto, receber de Deus a graça de ter vários filhos, para alegrar ainda mais suas vidas. Já até viam as crianças correndo pelo pomar, que aliás, já começava a ser plantado aos fundos de sua casa.

Muito religiosa, Leontina era devota de Nossa Senhora da Conceição, à qual atribuía várias graças recebidas. Participava da missa todos os domingos e não perdia uma quermesse da Paróquia, sempre comparecendo com donativos e prendas, destinados aos menos favorecidos, como forma de agradecimento e sinal de devoção. Oswaldo, na verdade achava um pouco exagerada a devoção de Leontina, mas participava da maioria desses eventos para agradar a esposa. Se a fazia feliz, ele se sentia feliz também. Certa vez, após a missa, o padre Rui veio ter com o casal.

- Sr Oswaldo, como vai?

- Muito bem, Pe. Rui. Na graça de Deus.

- Tem lido a Bíblia conforme recomendei semana passada?

- Claro. Leontina tem me lembrado sempre. Tenho lido o livro de São Marcos, São Mateus... Ainda ontem li o livro de “São Coríntios”.

Leontina que mantinha o braço pela cintura do marido, deu-lhe um beliscão na altura da barriga. Este soltou um grunhido e a olhou procurando entender o que teria feito de errado. O padre deu um sorriso e mudou de assunto.

O tempo foi passando, vieram os filhos, dois meninos e uma menina; Julio, o mais velho, com seis anos, Marcos com quatro e Ana com dois. Sempre trabalhando muito e com certa dificuldade foram se mantendo e construindo o futuro que sempre sonharam. Oswaldo plantava quase de tudo que precisavam: arroz, feijão, milho. Construíra um cercado com vários canteiros para que Leontina fizesse ali sua horta. Possuíam gado de leite e algumas cabeças para o corte. Após alguns anos já gozavam de certo conforto. Leontina, como sempre, atribuía essa “sorte” a Nossa Senhora da Conceição.

Oswaldo possuía em sua propriedade, um trecho de mais ou menos oito hectares, bem às margens do ribeirão, que ainda não havia mexido. Resolveu que naquele ano iria plantar milho numa parte daquele trecho, cerca de quatro hectares. Com a produção poderia separar um pouco para tratar de seus animais e conseguir um bom dinheiro com o restante. Limpou bem o local e usando a matraca iniciou o plantio do milho.

Um dia após o término do plantio, andando próximo à margem do rio, José, um empregado que o acompanhava, chamou a atenção de Oswaldo para umas pegadas.

- Que bicho será esse? Será que é paca?

Oswaldo se agacha. E diz com a experiência de bom caçador que era:

- Não. Pegada de paca é menor. Isso é rastro de capivara. Sinto que vamos ter problemas com essas danadas.

Oswaldo passou a percorrer o perímetro da roça, ao longo do rio para que com sua presença elas tivessem mais receio de se aproximarem. Só que às vezes chegava pela manhã e lá estava o pisoteio delas. Às vezes ia à noite, dava alguns tiros para espantá-las. Não podia ficar por ali vinte e quatro horas por dia.

- Ora, porque é que você não bota aqui uma figura de gente, um Judas, um espantalho? - indaga José. Vai ser o único jeito de “espantar elas” daqui.

- É. Vai ser o jeito. Eu estou deixando meus outros afazeres pra cuidar que elas num entrem aqui, e num ta adiantando muito.

Lembrou-se de ter visto na capital, em uma viagem que fizera recentemente, a figura de um homem esculpido em madeira. “Vai dar certinho”, pensou Oswaldo. Partiu no mesmo dia para a capital, retornando no dia seguinte com a “solução dos seus problemas”, como ele mesmo dizia.

Quando chegou, pediu a Leontina que arrumasse alguns trapos e costurasse uma roupa para aquele boneco de madeira. Para as crianças aquilo tudo era novidade.

- Pai, vai ter festa de malhação do Judas? – pergunta Júlio, seu filho mais velho.

- Não, meu filho. Malhação do Judas só no meio do ano que vem. Isso aqui é um espantalho pra espantar os bichos que vêm invadir minha roça de milho.

Após vestido e arrumado, Oswaldo olha para o Judas, satisfeito com o resultado apresentado. Júlio e Marcos acharam muito engraçado a figura de madeira toda vestida e de chapéu. Mexiam com Ana, a caçula, que se não fizesse o que eles mandassem, iriam pedir ao Judas para levá-la. Pronto. Era choro de um lado, risada de outro... e bronca de Leontina, para que não caçoassem de sua irmã.

Tudo pronto, Oswaldo colocou o Judas dentro de uma carroça, pegou o embornal com pregos e martelo, a escavadeira de mão. Júlio insistiu tanto que queria ir junto para ver a “instalação” do Judas que acabou conseguindo com que seu pai o levasse. E lá foram eles.

Chegaram à roça de milho. Junto com José, Oswaldo escolheu o local mais adequado para ser colocado o Judas, próximo do

Ribeirão das Antas. Eles se puseram a trabalhar.

- José, diz Oswaldo, vamos logo com isso porque está vindo um temporal por aí. Pelo jeito vai chover até cachorro beber água em pé.

José olha para o leste e vê que o tempo está fechando, com nuvens escuras.

- Vai ser um toró daqueles, diz.

Arrumam rapidamente o espantalho. Oswaldo deixa que José termine o serviço, enquanto que ele arruma as ferramentas na carroça.

- Pronto, Seu Oswaldo. Estando de pé aqui, bicho nenhum vai chegar por aqui. Depois a gente vem e fixa melhor o danado.

José monta na carroça e saem apressados. A chuva começou quando estavam pela metade do caminho. Chegam em casa e enquanto José entra com a carroça dentro do paiol, Oswaldo e Julio se dirigem para casa, onde encontram Leontina rezando para Santa Clara, ao mesmo tempo que rezava a Nossa Senhora da Conceição para que seu marido e seu filho chegassem a tempo.

Chove forte o restante da tarde. À noite, diminui um pouco de intensidade mas continuou chovendo até de manhã.

Oswaldo levantou-se cedo. Após dar ordens aos empregados, chama José.

- José. Estou desconfiado que o rio transbordou. Deve ter alagado boa parte da roça. Vamos lá dar uma olhada.

Chegando lá , puderam constatar que sua desconfiança tinha fundamento. O rio enchera tanto que alagara boa parte de sua roça. A corrente d’água, próxima à margem arrastou tudo que podia... inclusive o Judas.

Apesar da intensidade da enchente, o prejuízo com a lavoura foi relativamente pequeno. O trecho da roças que ficou irrecuperável, Oswaldo plantou novamente, ficando um espaço curto de tempo entre uma e outra, não prejudicando a colheita, que seria feita manualmente. Quanto ao Judas, o espantalho, resolvera fazer alguns de palha mesmo. Não iria gastar mais dinheiro neste tipo de artifício.

E assim se deram o fatos. Com os espantalhos e constantes movimentos de Oswaldo e José pela roça, conseguiram manter afastadas as capivaras. Algum tempo depois se deu a colheita do milho, aliás, melhor do que o esperado.

O tempo foi passando, seis meses, oito meses... um ano. Após esses fatos, Ana, a caçula de Oswaldo, adoece. A menina é levada a vários médicos que a examinam, prescrevem remédios mas não resolvem o problema. Leontina reza novenas, mas nada; Ana melhora por pouco tempo, mas logo em seguida tem recaídas. O desespero começa a tomar conta de Oswaldo e Leontina. Cada pessoa que visita o casal surge com novas receitas de chás milagrosos, simpatias, que eles logo se utilizam na esperança de curar a menina.

Cansados de tanto chá, os pais resolvem levar Ana ao médico novamente. Eis que na cidade se encontram com Ormezina, amiga de Leontina.

- Oh! Comadre – diz Ormezina. Queria meso encontrar com vocês. Eu queria saber notícias da menina.

- Ah... Está na mesma. Melhora, piora... Já não sei mais o que fazer.

- Olha, sabe o que vocês podiam fazer? Fazer uma novena para Santo Antônio Aparecido.

- Santo Antônio... Aparecido!? – diz Leontina.

- É. Esse Santo está fazendo milagres desde que foi achado a imagem dele nas água do Rio das Antas, lá pras bandas de Rochedos. Foi achado por algumas crianças que tomavam banho no rio, e foi logo reconhecido por alguns com Santo Antônio. Um irmão de uma das crianças que “acharam ele”, que andava meio perrengue e que tocou no Santo, no mesmo dia ficou “sãozinho”. Aí se descobriu que ele fazia milagre.

- E esse santo é forte mesmo? – pergunta Leontina. Olha que eu tenho rezado pra Nossa Senhora da Conceição...

- Olha, comadre, ele já fez “muitos milagre” e tem uita gente fazendo romaria pra lá. E eu soube de muita gente que já alcançou graça.

Leontina olha para Oswaldo, que até então estava calado. Rochedos ficava a seis léguas dali.

- Oswaldo, diz ela, temos que levar Ana até lá.

- Porque a gente não reza aqui mesmo? Faz promessa de ir visitar o santo assim que ela ficar boa.

Despedem-se de Ormezina, planejando como fariam a promessa.

- Vamos fazer o seguinte, fiz Oswaldo. A gente precisa atacar em todas as frentes. Levamos Ana ao médico e em seguida vamos à igreja daqui mesmo e fazemos a promessa.

- Sim, a gente faz isso e ainda façamos uma novena, começando por hoje.

E assim fizeram. Levaram Ana ao médico. Foram à igreja, fizeram a promessa. Do encontro com alguns vizinhos conseguiram a adesão de alguns na hora da reza.

- Quanto mais gente pedindo, mais força ele tem pra atender nosso pedido.

Continuaram com a novena. No quinto dia pela manhã, Ana levanta toda serelepe, sorrindo, querendo brincar com os irmãos e com uma fome danada.

- É um milagre! – exclama Leontina. Ainda ontem ela estava bem “ruinzinha”. O santo atendeu o nosso pedido.

O contentamento tomara conta de todos. Oswaldo fizera nova promessa de doar mais donativos na festa anual de Nossa Senhora da Conceição, da paróquia à qual freqüentavam todos os domingos. Mesmo tendo alcançado a graça, continuaram com a novena até o fim, só que agora em tom de agradecimento.

Terminada a novena, teriam que cumprir a promessa feita a Santo Antônio Aparecido. Iriam no final de semana, no sábado.

Chegado o dia, se arrumaram e partiram para Rochedos. Chegando lá encontraram um verdadeiro exército de romeiros em torno do santuário construído em tempo recorde para o Santo. Havia umas duzentas pessoas do lado de fora, mais outras tantas lá dentro. Oswaldo diz a Leontina:

- Como está difícil pra chegar até lá, você fica rezando daqui com os meninos que eu levo Ana até o altar pra cumprir a promessa.

Leontina entrega Ana para Oswaldo e procura se concentrar em oração ao Santo. Nem percebe que Júlio, se aproveitando que ela não prestava atenção, seguiu de o pai de perto, se apertando no meio dos romeiros.

Chegando ao altar, Oswaldo se detém por um instante, observando o Santo. Júlio que se aproxima, se colocando ao lado do pai, dá um grito:

- Pai, não é Santo Antônio, é o Judas.

Oswaldo surpreso com o filho ao lado dele, fala em tom baixo e severo:

- Quieto Júlio. Nem um pio. Vem comigo.

Olhando ao redor, procurando perceber se alguém ouviu o que Júlio disse; estavam todos concentrados em suas orações. Aproximam-se, os três, do altar, se ajoelham, cumprindo a promessa. Júlio olha curioso para todos sem entender o que se passa.

Na saída, Oswaldo diz a Júlio:

- Nem um pio sobre o Judas, hein! Ninguém pode ficar sabendo, nem mesmo sua mãe.

Partiram de volta a Cruzeta, com a promessa cumprida.

E Santo Antônio Aparecido continuou realizando milagres até hoje.

Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 17/11/2011
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