ETERNO OLHAR

Tive que desacelerar por causa de uma entrada parcialmente bloqueada naquela rua. No meio do caminho havia uma cratera que engolira meia pista, em virtude das fortes chuvas que estavam caindo este verão. Faz uma semana que chove sem parar, e esta noite, a chuva estava serena, fraca, eram mais uns chuviscos do que as tempestades a que estávamos acostumados a enfrentar nesses dias.

Os carros iam passando devagar e obedecendo às ordens de um guarda de trânsito. Logo que saí do congestionamento, entrando numa rua secundária e não muito iluminada, meu olhar cruzou com o dela. Ela estava sentada na calçada e recostada num poste. Tinha os cabelos molhados das gotas de chuva e usava um vestido azul, com uma blusa de lã listrada em cinza e preto, cheia de furos. Usava uma sandália simples e segurava uma criança enrolado em um manto verde. Tinha um olhar assustado e olhou-me dentro dos olhos com tal profundidade que parecia adentrar em mim com suas questões. Instintivamente pus o pé no freio e diminuí a velocidade, olhando aquele rosto de olhos profundos e provavelmente vermelhos que ali estavam a pedir algum socorro. Continuei em frente, tendo em vista que não conhecia aquela mulher e não faria sentido parar ali.

Em casa, ao tomar banho e depois fazer um lanche, não conseguia tirar da minha mente aquela imagem da mulher sentada na calçada. Sentia-me desumano por não ter ouvido seu possível grito de socorro. Como pude ser tão insensível e passar diante de uma cena dessas sem ao menos perguntar se ela precisava de alguma ajuda. Foi então que decidi voltar. Coloquei uma roupa adequada e fui saindo. Ainda no portão fui tomado por um pouco de dúvida, mas resolvi ir assim mesmo. Entrei no carro e voltei àquela rua.

Quando observei bem o lugar, para ter certeza que estava no lugar onde eu a tinha

visto, fui tomado de um sentimento de arrependimento. Ela não estava mais ali. Meu Deus, teria ela ido embora ou apenas esperava um ônibus ou alguém? Tentei justificar para eu mesmo que eu tinha ficado demasiado preocupado com algo tão corriqueiro. Não havia de ser nada, pensei. Mesmo assim fiquei ali parado por alguns instantes ainda com aquele olhar fixo na minha mente. No fundo eu não acreditava que tudo aquilo era apenas um momento comum, alguém esperando algo. Eu não conseguia imaginar como alguém poderia estar naquela hora debaixo de uma chuva com uma criança. Mas resolvi fechar os vidros escuros do carro e sair.

Conduzi o veículo em marcha lenta, pensativo, quando de repente, ouvi um grito forte e alto de mulher. Meu coração palpitou e fui tomado de assalto por um grande medo. Pude ouvir também gritos de um homem, perceptivelmente encolerizado a gritar os mais diversos palavrões e palavras de ofensas a alguém. Parei o carro e desci. Fui ver o que acontecia. Foi quando vi que a luz de uma casa próxima se acendia e uma porta se abriu e a mulher rapidamente entrou naquela casa que logo já estava novamente com portas fechadas. O homem enfurecido não ousou adentrar ali. Eu assistia a tudo imóvel, sem compreender nada. Foi tudo muito rápido, mas o suficiente para ver que a mulher que fugia daquele homem era a mesma que eu havia visto horas atrás. Mas estava sem a criança. Eu parecia me sentir responsável por ter me envolvido, mesmo que anonimamente naquele episódio. Mas, com a aparente calma eu voltei pra casa.

Dia seguinte passei por aquela rua e não vi movimentação alguma de anormal. As pessoas pareciam continuar suas vidas normalmente, como se nada tivesse acontecido e foi possível até mesmo ouvir uma mulher que assoviava ao fundo, ocupada em seus afazeres domésticos. Observei por um instante a casa próxima à calçada onde, dia anterior havia avistado aquela mulher. Passei por ali atento por uns quatro dias, ainda com aquele olhar, que aos poucos foi se desfazendo de minha memória, quando ontem, já fazendo quase dois meses daquele dia, abri o jornal diário da cidade e vi a foto daquela rua. A notícia trazia a informação de uma mulher, chamada Gilvânia, casada com Alberto fazia oito anos e três filhos, um inclusive de apenas dois meses. Não dizia muita coisa, mas contava que ela era frequentemente espancada e sofria da violência doméstica na frente dos filhos, que por causa das constantes agressões haviam ido morar com os avós. O menor estava com a mãe ainda, e a vizinha era quem sempre socorria aquela mulher. No dia em que nossos olhares se cruzaram, ela tentava fugir do marido e aguardava naquela rua pelo pai que a buscaria perto de casa. A notícia não continha muito do que aquilo que já estamos acostumados a ouvir. Penso que meu olhar compadecido, mas sem atitude é o olhar de toda a sociedade diante de questões ainda a resolver. Nunca mais sairão de minha mente aqueles olhos pedindo o socorro que neguei e agora também impregnada ficará na minha memória sua foto acompanhando a manchete, em letras garrafais: Mulher morta pelo marido.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 17/11/2011
Código do texto: T3341737
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