O Castelo de Cartas
O Castelo de Cartas
Esse episódio ocorreu recentemente e só não foi ao ar devido a motivos até agora incompreensíveis. Era o meu segundo dia na redação, ocupando o cargo de repórter, quando meu superior aventou sobre um maluco na periferia, que construíra o que já estava sendo chamado de “castelo de cartas”, um feito para ser exibido no Jornal das 6, depois do relato policial e antes do futebol, algo que será esquecido pelos jornais maiores e retransmitido pelos menores em dias de marasmo. “Deve ser alguma coisa, disse ele, similar aquele que fez uma fortaleza de cacarecos e o chamam de Gaudi dos Pobres, existem outros assim, cujo desespero abissal os leva a edificar cautelosas sandices. Vá até lá, filme, fotografe, entreviste e volte com alguma coisa que preste”.
Sem maiores volteios me dirigi ao local, que por razões de consideração ao protagonista aqui omito, revelando apenas tratar-se de bairro afastado do centro e com todas as características de desolação pertinentes a uma eira dessa natureza.
Estava ele na porta, como que antevendo a minha chegada, tinha nos lábios um cachimbo apagado que em muito lembrava o artefato do Pererê, seus olhos eram azuis e os sulcos na sua face indicavam uma idade que pouco desperta curiosidade. Sua casa, um amontoado de tábuas com pedaços de tijolos mais o chão de terra batida mesclado ao aroma de alguma coisa fumegando no fogão lembravam um quadro triste, de dias tristes, ou antes, um quadro esquecido, de dias esquecidos. Nada mais triste que o esquecimento.
“Estou aqui em virtude do Castelo Cartas”, disse-lhe. Ele retrucou não se tratar de um castelo e sim de cartas de pé, levemente inclinadas e encostadas umas nas outras, que fazem uma extensa fileira. Como eu olhasse para os lados sem ver carta alguma, apenas um cão magro cochilando, jornais velhos e sacos de juta espalhados pelos cantos, ele entendeu minha expressão e se adiantou explicando que a fileira começava no cômodo ao lado. Passamos por um corredor ora claro, ora escuro, devido a parca uniformidade das telhas e chegamos num quarto largo tendo no centro um caixote com as cartas em cima, num dos lados do caixote havia uma lâmina bizarra, que de longe parecia uma pista de autorama, saindo em declive para o interior de um túnel.
Cheguei perto do caixote e pude reparar que eram cartas de baralhos ordinários e que de fato se apoiavam nessa lâmina, perfeitamente equilibradas para o interior do túnel, de onde só se percebia o breu. Fiquei pensando no motivo dessa reportagem e, como até o presente eu mal tivesse aberto a boca, perguntei porque fizera isso. Seus olhos azuis, que brilhavam mesmo na difusa luz do cômodo, sorriram enquanto seus lábios proferiam “fiz isso pelo mesmo motivo do Eça de Queiroz ter escrito: “Fulana, gasta por todos os homens válidos da cidade”. Ou, como escreveu Huxley sobre a percepção: “O homem que volta através da porta nunca mais será totalmente o homem que saiu. Será mais sábio, mas menos seguro. Mais feliz, porém menos satisfeito consigo mesmo. Mais humilde no conhecimento de sua ignorância, ainda que mais equipado para compreender a relação das palavras com as coisas, de raciocínio mais sistemático para o insondável Mistério que em vão sempre tentou compreender”.
Sua voz ecoava livre de monotonia e como nada me viesse à mente, falei por falar: ora, mas o senhor está falando de livros, esses trechos são de livros. Ele balançou a cabeça, “sim, são livros, repare porém que o mundo está repleto de livros, livros repletos de palavras, e...”. Ele deixou no ar e passou a falar das chapas onde as cartas estavam apoiadas. Achara uma quantidade considerável no lixão, então se dispusera a cortá-las em tamanhos iguais e com o uso de uma solda foi juntando-as e à medida que o túnel progredia ele equilibrava as cartas.
Esperando a hora certa de perguntar onde ia dar o túnel, ele me pegou pelo punho da camisa, levando-me a percorrê-lo alguns metros. Como que por mágica surgiu uma luz uniforme que revelava enorme distância. E lá estavam as cartas, apoiadas sobre as chapas, até onde a vista alcançava. Fiz a pergunta. Ele respondeu: “Na China. Esse túnel vai até a China”.
Com três passadas largas voltei para superfície digerindo informações conflitantes. Meu segundo dia de trabalho e alguém se dera ao luxo de me pregar uma peça. Ocorre apenas que a perfeição do túnel e o semblante do homem me diziam que eu poderia estar presenciando várias coisas, exceto uma mentira. E se fosse uma mentira, era sordidamente bem arquitetada.
Já haviam me dito que nesta profissão depara-se com vários estágios de loucura em andamento febril, que o que está estampado nas manchetes é mero resultado de um processo anterior, que enfim se manifesta, exatamente como a febre.
- Até a China?
Ele moveu a cabeça e o cachimbo ao mesmo tempo, seu relato agia como um instrumento de sopro, segundo ele o túnel tinha quatro seções distintas, uma daqui até o porto de Santos, outra que se estendia sob o Atlântico até a costa da África, outra que atravessava de uma só vez o Continente Negro, o Mar Vermelho e o Oriente Médio e por fim a última sessão, até a China. E toda essa extensão está preenchida com as chapas de metal apoiando as cartas de baralho.
- O sr. acredita? – indagou, e em cada sílaba proferida percebia-se o cachimbo mexendo.
“Vê-se de tudo nesse mundo”, pensei, usando o tato de um cego para não contrariá-lo. Tudo o que eu vira foram 100, talvez 200 metros de um túnel incrivelmente bem acabado, mais as cartas, e, palavra, não havia uma só delas fora do lugar.
Tornei a perguntar-lhe porque o fizera. Ele voltou ao Eça, salientando ser apenas um exemplo dentre muitos. “Foi como eu lhe disse, o Eça poderia apenas ter escrito, Fulana é uma promíscua, ou como se diz hoje em dia, uma vadia, mas não, ele escreveu assim: “Fulana, gasta por todos os homens válidos da cidade”. Penso, então, que o Eça não estava vendendo um livro, estava parindo a organização das palavras a partir do seu próprio cerne. Algo impossível de ser medido. Por isso passei a equilibrar as cartas. E por outros motivos também.
- O sr. tem família? – nesse momento me vi compelido a dizer qualquer coisa.
- Um sobrinho financista – respondeu - faz cursos na Alemanha, na França, é um destaque. Um dia perguntei se em meio a esse sucesso ele, em algum momento, pensava nos que estão lá atrás e que indiretamente o ajudaram, e se fez alguma coisa por essas pessoas. Foi então que ele sumiu, não sem antes me dizer que eu tomasse conta do meu castelo. Falei para ele que não era um castelo.
Não sabia o que pensar. Achei difícil essa matéria encaixar-se no Jornal das 6, fiquei imaginando as cartas sob o Atlântico e daí em diante. Perguntas como as marcas dos baralhos, a origem da escavadeira ou a iluminação perdiam o fôlego no caminho entre a complexidade do cérebro e a trivialidade da fala.
Como precisasse de ar, sugeri que saíssemos do cômodo e fôssemos para fora.
- O sr. não vai tomar notas para a reportagem? A vida é muito simples quando se é feliz. Hoje posso dizer que vivo num estágio intermediário entre a felicidade passada e a que há de vir. Cada carta dessas simboliza uma escrita falsa, de egos cheios de orgulho e nenhum talento, cada carta dessas, também, é uma reverência de profundo respeito pela escrita genuína de talentos anônimos e grandiosos, e, saindo desse âmbito, outras cartas representam os momentos de desconforto que passei, e saiba o senhor, é impossível amar no desconforto, eu pelo menos não consigo, só mesmo os iluminados, o que não vem a ser a minha condição.
- Até a China? – volvi, sem perceber, mas ele não parava de falar
- Outras simbolizam uma nova emoção que não julgava possível sentir, um defeito a mais no meu caráter e um agradecimento por não ter sido testado além dos meus limites para caminhos tortos. Assim, fico protegido no meu castelo.
- Que não é um castelo – volvi.
- Exatamente – afirmou ele.
- Até a China? – insisti.
Ele pegou gentilmente no meu cotovelo e me conduziu de novo até o túnel. De dentro de um compartimento retirou um carrinho mequetrefe, similar em conceito àquele utilizado nos campos de golfe, e quando dei por mim estávamos deslizando pelo túnel, que descia em quieta suavidade, sempre iluminado por uma formidável luz branca, e à medida que avançávamos as cartas seguiam em paralelo, apoiadas umas nas outras sobre a chapa, rodamos por uns 5 quilômetros, talvez mais, as cartas se perdiam de vista, ele não pareceu desapontado quando lhe pedi de forma brusca que desse meia volta.
- Sofro de claustrofobia – falei, como que me desculpando.
De volta, fiquei imaginando o que os editores iriam falar, pelo pouco que vi desse túnel já merece pelo menos duas páginas na revista dos engenheiros.
- O senhor sabe quantas cartas foram utilizadas?
Ele balançou a cabeça negativamente.
- Poderia responder através de metáforas – prosseguiu – e seriam rebuscadas respostas. Desconheço o número de cartas, mas sei a intenção de cada uma delas. Para cada momento de esperança e desinquietude, para cada ação errada, e para as certas também, para as certas eu colocava duas cartas, gosto de comemorar, para cada chance que me fugiu como o zéfiro de verão e para cada zunido de felicidade que senti, então eu corria para cá, cavava e equilibrava as cartas.
- Por que até a China?
- Por que não? No mais, eu acreditava quanto maior a distância, mais eficiente a fuga. Somente quando estava próximo da Muralha descobri... Ele não completou o raciocínio.
Eu tomava notas, até que me veio à mente a questão do tempo. Novamente me vi agindo por impulso:
- O senhor gostaria de ter tido outra vida?
Ele sorriu largo e seu sorriso era similar ao telhado.
- Vou lhe responder como respondeu um personagem de Camus, ao ser indagado por um padre se já desejara ter outra vida. “Naturalmente, mas isso é tão importante quanto desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais bem feita. É da mesma ordem.”
Terminei de anotar, inda que duvidando de meus motivos, e tornei à meada, sobre a sua descoberta, quando estava chegando à Muralha.
- Ah sim – fez o homem movendo o cachimbo – Naquele ponto, como um lampejo, cristalizou-se a inutilidade de continuar cavando. Percebi que a vida me vencera pelo cansaço e vice versa. Foi quando me dei por satisfeito. Não poderia mais acertar, não havia mais tempo. Igualmente esgotaram-se as chances de errar. Estamos empatados, eu e a vida. Graças ao castelo.
- Que não é um castelo... - atalhei.
- Precisamente – finalizou ele.
(Imagem: Paul Klee)
O Castelo de Cartas
Esse episódio ocorreu recentemente e só não foi ao ar devido a motivos até agora incompreensíveis. Era o meu segundo dia na redação, ocupando o cargo de repórter, quando meu superior aventou sobre um maluco na periferia, que construíra o que já estava sendo chamado de “castelo de cartas”, um feito para ser exibido no Jornal das 6, depois do relato policial e antes do futebol, algo que será esquecido pelos jornais maiores e retransmitido pelos menores em dias de marasmo. “Deve ser alguma coisa, disse ele, similar aquele que fez uma fortaleza de cacarecos e o chamam de Gaudi dos Pobres, existem outros assim, cujo desespero abissal os leva a edificar cautelosas sandices. Vá até lá, filme, fotografe, entreviste e volte com alguma coisa que preste”.
Sem maiores volteios me dirigi ao local, que por razões de consideração ao protagonista aqui omito, revelando apenas tratar-se de bairro afastado do centro e com todas as características de desolação pertinentes a uma eira dessa natureza.
Estava ele na porta, como que antevendo a minha chegada, tinha nos lábios um cachimbo apagado que em muito lembrava o artefato do Pererê, seus olhos eram azuis e os sulcos na sua face indicavam uma idade que pouco desperta curiosidade. Sua casa, um amontoado de tábuas com pedaços de tijolos mais o chão de terra batida mesclado ao aroma de alguma coisa fumegando no fogão lembravam um quadro triste, de dias tristes, ou antes, um quadro esquecido, de dias esquecidos. Nada mais triste que o esquecimento.
“Estou aqui em virtude do Castelo Cartas”, disse-lhe. Ele retrucou não se tratar de um castelo e sim de cartas de pé, levemente inclinadas e encostadas umas nas outras, que fazem uma extensa fileira. Como eu olhasse para os lados sem ver carta alguma, apenas um cão magro cochilando, jornais velhos e sacos de juta espalhados pelos cantos, ele entendeu minha expressão e se adiantou explicando que a fileira começava no cômodo ao lado. Passamos por um corredor ora claro, ora escuro, devido a parca uniformidade das telhas e chegamos num quarto largo tendo no centro um caixote com as cartas em cima, num dos lados do caixote havia uma lâmina bizarra, que de longe parecia uma pista de autorama, saindo em declive para o interior de um túnel.
Cheguei perto do caixote e pude reparar que eram cartas de baralhos ordinários e que de fato se apoiavam nessa lâmina, perfeitamente equilibradas para o interior do túnel, de onde só se percebia o breu. Fiquei pensando no motivo dessa reportagem e, como até o presente eu mal tivesse aberto a boca, perguntei porque fizera isso. Seus olhos azuis, que brilhavam mesmo na difusa luz do cômodo, sorriram enquanto seus lábios proferiam “fiz isso pelo mesmo motivo do Eça de Queiroz ter escrito: “Fulana, gasta por todos os homens válidos da cidade”. Ou, como escreveu Huxley sobre a percepção: “O homem que volta através da porta nunca mais será totalmente o homem que saiu. Será mais sábio, mas menos seguro. Mais feliz, porém menos satisfeito consigo mesmo. Mais humilde no conhecimento de sua ignorância, ainda que mais equipado para compreender a relação das palavras com as coisas, de raciocínio mais sistemático para o insondável Mistério que em vão sempre tentou compreender”.
Sua voz ecoava livre de monotonia e como nada me viesse à mente, falei por falar: ora, mas o senhor está falando de livros, esses trechos são de livros. Ele balançou a cabeça, “sim, são livros, repare porém que o mundo está repleto de livros, livros repletos de palavras, e...”. Ele deixou no ar e passou a falar das chapas onde as cartas estavam apoiadas. Achara uma quantidade considerável no lixão, então se dispusera a cortá-las em tamanhos iguais e com o uso de uma solda foi juntando-as e à medida que o túnel progredia ele equilibrava as cartas.
Esperando a hora certa de perguntar onde ia dar o túnel, ele me pegou pelo punho da camisa, levando-me a percorrê-lo alguns metros. Como que por mágica surgiu uma luz uniforme que revelava enorme distância. E lá estavam as cartas, apoiadas sobre as chapas, até onde a vista alcançava. Fiz a pergunta. Ele respondeu: “Na China. Esse túnel vai até a China”.
Com três passadas largas voltei para superfície digerindo informações conflitantes. Meu segundo dia de trabalho e alguém se dera ao luxo de me pregar uma peça. Ocorre apenas que a perfeição do túnel e o semblante do homem me diziam que eu poderia estar presenciando várias coisas, exceto uma mentira. E se fosse uma mentira, era sordidamente bem arquitetada.
Já haviam me dito que nesta profissão depara-se com vários estágios de loucura em andamento febril, que o que está estampado nas manchetes é mero resultado de um processo anterior, que enfim se manifesta, exatamente como a febre.
- Até a China?
Ele moveu a cabeça e o cachimbo ao mesmo tempo, seu relato agia como um instrumento de sopro, segundo ele o túnel tinha quatro seções distintas, uma daqui até o porto de Santos, outra que se estendia sob o Atlântico até a costa da África, outra que atravessava de uma só vez o Continente Negro, o Mar Vermelho e o Oriente Médio e por fim a última sessão, até a China. E toda essa extensão está preenchida com as chapas de metal apoiando as cartas de baralho.
- O sr. acredita? – indagou, e em cada sílaba proferida percebia-se o cachimbo mexendo.
“Vê-se de tudo nesse mundo”, pensei, usando o tato de um cego para não contrariá-lo. Tudo o que eu vira foram 100, talvez 200 metros de um túnel incrivelmente bem acabado, mais as cartas, e, palavra, não havia uma só delas fora do lugar.
Tornei a perguntar-lhe porque o fizera. Ele voltou ao Eça, salientando ser apenas um exemplo dentre muitos. “Foi como eu lhe disse, o Eça poderia apenas ter escrito, Fulana é uma promíscua, ou como se diz hoje em dia, uma vadia, mas não, ele escreveu assim: “Fulana, gasta por todos os homens válidos da cidade”. Penso, então, que o Eça não estava vendendo um livro, estava parindo a organização das palavras a partir do seu próprio cerne. Algo impossível de ser medido. Por isso passei a equilibrar as cartas. E por outros motivos também.
- O sr. tem família? – nesse momento me vi compelido a dizer qualquer coisa.
- Um sobrinho financista – respondeu - faz cursos na Alemanha, na França, é um destaque. Um dia perguntei se em meio a esse sucesso ele, em algum momento, pensava nos que estão lá atrás e que indiretamente o ajudaram, e se fez alguma coisa por essas pessoas. Foi então que ele sumiu, não sem antes me dizer que eu tomasse conta do meu castelo. Falei para ele que não era um castelo.
Não sabia o que pensar. Achei difícil essa matéria encaixar-se no Jornal das 6, fiquei imaginando as cartas sob o Atlântico e daí em diante. Perguntas como as marcas dos baralhos, a origem da escavadeira ou a iluminação perdiam o fôlego no caminho entre a complexidade do cérebro e a trivialidade da fala.
Como precisasse de ar, sugeri que saíssemos do cômodo e fôssemos para fora.
- O sr. não vai tomar notas para a reportagem? A vida é muito simples quando se é feliz. Hoje posso dizer que vivo num estágio intermediário entre a felicidade passada e a que há de vir. Cada carta dessas simboliza uma escrita falsa, de egos cheios de orgulho e nenhum talento, cada carta dessas, também, é uma reverência de profundo respeito pela escrita genuína de talentos anônimos e grandiosos, e, saindo desse âmbito, outras cartas representam os momentos de desconforto que passei, e saiba o senhor, é impossível amar no desconforto, eu pelo menos não consigo, só mesmo os iluminados, o que não vem a ser a minha condição.
- Até a China? – volvi, sem perceber, mas ele não parava de falar
- Outras simbolizam uma nova emoção que não julgava possível sentir, um defeito a mais no meu caráter e um agradecimento por não ter sido testado além dos meus limites para caminhos tortos. Assim, fico protegido no meu castelo.
- Que não é um castelo – volvi.
- Exatamente – afirmou ele.
- Até a China? – insisti.
Ele pegou gentilmente no meu cotovelo e me conduziu de novo até o túnel. De dentro de um compartimento retirou um carrinho mequetrefe, similar em conceito àquele utilizado nos campos de golfe, e quando dei por mim estávamos deslizando pelo túnel, que descia em quieta suavidade, sempre iluminado por uma formidável luz branca, e à medida que avançávamos as cartas seguiam em paralelo, apoiadas umas nas outras sobre a chapa, rodamos por uns 5 quilômetros, talvez mais, as cartas se perdiam de vista, ele não pareceu desapontado quando lhe pedi de forma brusca que desse meia volta.
- Sofro de claustrofobia – falei, como que me desculpando.
De volta, fiquei imaginando o que os editores iriam falar, pelo pouco que vi desse túnel já merece pelo menos duas páginas na revista dos engenheiros.
- O senhor sabe quantas cartas foram utilizadas?
Ele balançou a cabeça negativamente.
- Poderia responder através de metáforas – prosseguiu – e seriam rebuscadas respostas. Desconheço o número de cartas, mas sei a intenção de cada uma delas. Para cada momento de esperança e desinquietude, para cada ação errada, e para as certas também, para as certas eu colocava duas cartas, gosto de comemorar, para cada chance que me fugiu como o zéfiro de verão e para cada zunido de felicidade que senti, então eu corria para cá, cavava e equilibrava as cartas.
- Por que até a China?
- Por que não? No mais, eu acreditava quanto maior a distância, mais eficiente a fuga. Somente quando estava próximo da Muralha descobri... Ele não completou o raciocínio.
Eu tomava notas, até que me veio à mente a questão do tempo. Novamente me vi agindo por impulso:
- O senhor gostaria de ter tido outra vida?
Ele sorriu largo e seu sorriso era similar ao telhado.
- Vou lhe responder como respondeu um personagem de Camus, ao ser indagado por um padre se já desejara ter outra vida. “Naturalmente, mas isso é tão importante quanto desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais bem feita. É da mesma ordem.”
Terminei de anotar, inda que duvidando de meus motivos, e tornei à meada, sobre a sua descoberta, quando estava chegando à Muralha.
- Ah sim – fez o homem movendo o cachimbo – Naquele ponto, como um lampejo, cristalizou-se a inutilidade de continuar cavando. Percebi que a vida me vencera pelo cansaço e vice versa. Foi quando me dei por satisfeito. Não poderia mais acertar, não havia mais tempo. Igualmente esgotaram-se as chances de errar. Estamos empatados, eu e a vida. Graças ao castelo.
- Que não é um castelo... - atalhei.
- Precisamente – finalizou ele.
(Imagem: Paul Klee)