A Portaria
“BBzzzzzzzztt” – toca o interfone do Edifício Jacarandá. Um prédio de sis andares, apartamentos de três quartos, quatro apartamentos por andar, típicos para pessoas de classe média. Embora situado no centro da cidade, fica numa travessa pouco movimentada.
Mais alguns instantes: “BBzzzzzzztt”.
Antunes, o porteiro, sai apressado do banheiro, mãos molhadas, resmungando qualquer coisa, vem atender. Pelo pequeno corredor já consegue ver, através do vidro da porta de entrada, a figura do carteiro. Como já o conhecia, nem se deu ao trabalho de atender ao interfone e aperta o pequeno botão sob a mesa que destrava a porta. O carteiro entra, como sempre, com seu jeito apressado.
- Bom dia, Seu Antunes.
- Bom dia. Desculpe a demora.
- Encomenda para Se. Carlos Magal.
- Humm... Rapaz, diz Antunes com seu sotaque de baiano e estendendo a mão para pegar o pequeno pacote, Seu Carlos está viajando. Mas eu posso receber por ele e quando ele chegar eu entrego. Onde é que eu assino?
Antunes assina o papel e o entrega ao carteiro.
- Tá aqui rapaz.
- Obrigado. Até logo Seu Antunes.
O carteiro sai, travando a porta atrás de si.
Antunes fica em pé por um instante, olhando para a encomenda do morador do 501, imaginando o que poderia ser aquele pacote do tamanho de uma caixa de sapatos. Após alguns segundos resolve sentar-se, tentando se esquecer o pacote. Assim que se senta observa a luz do elevador se acender; subindo. Fica observando o mostrador dos andares. Para no 4º andar. Em seguida sobe novamente até o 7º andar de onde é mandado para o andar térreo.
Antunes olha para o relógio. “Nove horas. Como sempre”, pensa. “Ele vai até o quarto andar e depois até o sétimo. Isso num ta prestando”.
Dona Creuza, empregada do 502, se aproxima da entrada de serviço puxando com uma das mãos um carrinho de feira repleto de verduras e legumes e na outra uma sacola cheia de compras para cozinha. Antunes, assim que percebe sua aproximação, se apressa em abrir a porta que conduz ao elevador de serviço.
- Oh! Dona Creuza. Deixa que eu ajudo a senhora. Isso aí deve estar muito pesado. Isso aí “deve de ta” muito pesado. A senhora não pode carregar todo esse peso não, ou vai acabar sofrendo da espinha.
- Obrigada, Seu Antunes – diz Dona Creuza com um sorriso insinuante.
Antunes sempre tivera uma queda por Dona reuza. Ficara encantado por aquela figura que não era nenhum padrão de beleza, mas era extremamente simpática. Dona Creuza já percebera o efeito que produzia em Antunes, mas embora o incentivasse com sorrisos e gestos a uma aproximação, nunca permitira que ele ultrapasse certos limites, deixando às vezes o baiano desorientado.
Antunes deixa a portaria por um instante e a acompanha até o 502, retornando cinco minutos mais tarde. Senta-se na sua cadeira e liga o rádio (em baixo volume) e procura a sintonia da Rural FM. Fica sentado ouvindo música sertaneja até às dez horas, quando o elevador sobe até o sétimo, desce até o sexto, para no quarto e depois até o térreo. Saem três moças de uma república do sexto andar.
- Bom dia, Seu Antunes - cumprimentam quase que ao mesmo tempo as três.
- Bom dia. Estão indo pra aula?
- E estamos atrasadas – responde Alessandra. – Sérgio está lá em cima. Vai sair daqui a pouco. Se alguém do prédio perguntar, diga que chegou hoje cedo à minha procura.
- Pode deixar, “fia”.
Antunes olha para o pacote. “Rapaz, como é que eu vou cuidar deste troço até o Seu Carlos chegar? Ele não disse quando ia voltar. Isso vai acabar é sumindo daqui”.
Iracema, a mulher do síndico, moradora do 101 se aproxima da porta. Antunes está distraído com o pacote. Ela bate no vidro, tirando-o daquele transe. Ela entra e pergunta:
- Estava distraído, Seu Antunes? Que pacote é esse?
- É uma encomenda pro Seu Carlos, mas ele ta viajando e isso ta aí esperando por ele...
- É melhor guardar isso dentro do armário e fechá-lo a chave, ou isso vai acabar sumindo.
- Sim, senhora. Eu tava pensando nisso agorinha mesmo. Vou fazer isso mesmo.
Antunes Fica só. Olha para o pacote. “Depois eu guardo isso aí”. Coloca o pacote numa gaveta lateral da mesa. Põe o pé na cadeira e despreocupadamente se põe a coçar entre os dedos e limpando a unha do dedão. Vez ou outra, cheira o dedo da mão pra ver se a situação está crítica, requerendo um banho.
Antunes, distraído, só percebe movimento no elevador quando a porta se abre e sai um rapaz alto, corpo atlético.
- Bom dia, Sr Antunes.
- Bom dia, Seu Sergio – responde agindo de maneira o mais natural possível.
Ao mesmo tempo em que sai, entra um rapaz procurando por Margot, do 301. Antunes interfona e a seguir:
- Pode subir. É o 301, terceiro andar.
O tempo passa vagarosamente. Antunes, diante daquele marasmo, sente as pálpebras pesarem. “Mas rapaz, ainda é só onze e meia”. Ele se levanta, sai da portaria e segue em direção a uma lanchonete, no prédio da frente. Volta pouco depois com um litro de refrigerante e três esfirras. Sem lavar as mãos e dispensando o guardanapo, consome os salgados e metade do refrigerante. Arrota e espreguiça.
Cerca de meia hora depois o interfone toca. É Dona Nicinha, do 402.
- Ôoo D. Nicinha... aceito sim... pode mandar... agradecido, D. Nicinha... veio em boa hora... sim senhora, no elevador de serviço, né?
Quando o elevador de serviço chega no térreo, Antunes retira lá de dentro uma bandeja com um prato de comida e uma travessa de verduras.
- Benza Deus... que fartura!
Dirige-se ao salão de festas, que dá saída para a portaria, deixando a porta aberta para que possa vigiar quem entra ou sai. É um salão amplo, com várias cadeiras, uma TV e um vídeo-cassete, usados em reuniões de condomínio. Antunes de água na boca sacia sua gulodice, bebendo junto o restante do refrigerante.
Pouco depois está sentado na sua cadeira. Com toda liberdade abre o jornal vespertino destinado ao 501, que acabara de ser entregue. Começa pela seção de entretenimento, e depois, a seção de esportes. Para seu azar, é justamente neste momento que chega Maria Adélia. Dentre todos os moradores daquele prédio, era a única a pegar no seu pé. “Carne de pescoço, gorda nojenta. Se acha a tal com esse cabelinho curto e pintado de fogo”, pensava Antunes sempre que a via. Era o tipo de mulher que procurava sempre um deslize dos funcionários do condomínio mínimo que seja, para armar o maior “fuzuê”. Era detestada por todos.
- Sr Antunes. Que liberdades são essas?
- D. Maria Adélia.
Ela detestava ser chamada por apenas um nome. Não podia ser apenas Maria ou apenas Adélia. “Maria Adélia” era o seu nome, corrigia, às vezes, aos desavisados.
- O Sr não é pago pra ler jornal em horário de serviço. Onde é que está o síndico que não vê isso? Aproveite este tempo pra limpar a portaria.
- Sim senhora.
Antunes se levanta dobrando o jornal, se preparando pra pegar o material de limpeza.
- Mais uma coisa, Sr Antunes. Preste atenção pra não precisar repetir: Se me procurarem, não atendo ninguém. Estou um pouco cansada e não quero ser incomodada. Se aparecer alguém não precisa interfonar nem receber recado, diga pra voltar em outro horário.
Ela entra no elevador. Antunes que já estava co o balde na mão, o põe de lado, faz uma pantomima em direção ao elevador, imitando o jeito de Maria Adélia. Retorna à sua cadeira abrindo novamente o jornal.
Meia hora depois toca o interfone. Antunes olha para o aparelho e vê a luz do nº 502 piscando. Se arruma na cadeira, olha para os lados e procurando uma voz sensual atende:
- Oi. Pois não? ... Sim, é o Antunes. “Quem mais poderia ser minha beleza?”. Ah, é a senhora, D. Creuza. “Quer sair comigo hoje, minha fofura?” – a senhora está precisando de meus préstimos? ... sim ... sim ... agradeceria muito D. Creuza... está certo, eu subo então pra pegar. “Assim eu lhe vejo meu docinho de gerimum”. D Creuza, se não for muito abuso da minha parte, será que podia vir um suco junto? ... Agradecido D. Creuza.
Antunes sobe pelo elevador de serviço, retornando em cinco minutos com uma bandeja contendo um prato de comida, um copo de suco, talheres e guardanapos. Tudo arrumado com o máximo de capricho possível por D. Creuza. Repete o mesmo ritual de uma hora antes, dentro do salão de festas. É interrompido na primeira garfada por Jorge, que acabara de chegar de Santo Antonio, em visita à noiva.
- Como vai, Seu Antunes?
- Tudo bem, meu rapaz.
- Parece que cheguei em boa hora.
- Na horinha, Seu Jorge. Tá servido?
- Não obrigado. Tomei um lanche reforçado agora a pouco. Fique à vontade, Seu Antunes. Bom apetite. Alessandra ta aí em cima?
- Não. A essas horas ela deve de estar na Faculdade. Hoje ela deve chegar só lá pras três horas. Não tem ninguém aí no apartamento, mas se você quizer subir... acho que a porta está aberta.
Jorge olha no relógio. Uma e cinqüenta da tarde.
- Vou subir sim, Seu Antunes. Mas antes eu queria dar uma olhada neste jornal.
Jorge se senta nas poltronas pra ler o Folha da Manhã. Na primeira página lê a notícia:
“REI DAS BOTINAS É ENCONTRADO MORTO. Encontrado hoje pela manhã o corpo do empresário Abílio da Fonseca Borges em uma garçonnière, no Ed. Solar, de propriedade o empresário. O corpo foi encontrado na manhã de ontem, por volta das sete horas, pela faxineira, Dirce dos Santos. Dirce realizava a limpeza uma vez por semana. Assim que encontrou o corpo do empresário, ligou para o síndico do prédio que chamou a polícia imediatamente. (...) Segundo informações do Delegado Mário Velloso, Abílio foi assassinado com dois tiros no peito, provavelmente por arma de calibre 38, a aproximadamente 48 horas. Foram encontrados vestígios de consumo de cocaína que deverá ser comprovada através da autópsia. (...) Segundo apurado por este jornalista, ninguém ouviu os disparos. (...) O porteiro disse se lembrar de um homem e duas moças terem procurado por Abílio este dia, o qual os autorizou a subirem ao apartamento. (...) Delegado Mario Velloso não descarta a possibilidade do empresário estar envolvido com o tráfico de drogas.
- É, diz Jorge. Esse mundo está cada vez mais violento.
- O que foi que você disse? – pergunta Antunes de boca cheia e quase engasgando com um pedaço de frango.
- Sobre essa notícia no jornal. O assassinato do Rei da Botina. O senhor “conhecia ele”?
- Rei da Botina é o Dr Abílio da Fonseca, não é? Conhecia sim. Mas rapaz, um homem tão bom. Como é que foi acontecer uma coisa dessas? Ele vinha aqui de vez em quando em visita ao Seu Carlos. Eles eram sócios de uma outra “firma” de cortume.
- Esse Carlos é morador aqui do prédio?
- É sim. Mas ele ta viajando de férias com a patroa dele. Já tem três dias que estão lá pro nordeste. Disseram que iam pra praia pegar um bronzeado.
São interrompidos por Maurício, morador do 401. Maurício possui uma imobiliária, no centro da cidade, que mesmo estando a apenas três quadras dali, prefere ir de carro. Geralmente não vem almoçar em casa. Algumas vezes vai com a esposa a algum restaurante ali por perto.
Vem da garagem pra pegar o elevador social. Cumprimente Antunes, sem mesmo olhar para Jorge, que também não lhe dá atenção. Maurício entra no elevador e sobe. O elevador desce parando no terceiro andar e em seguida viaja para o térreo. Saem do elevador, uma moça jovem, morena e muito bonita de aproximadamente vinte e cinco anos, acompanhada de quatro rapazes, todos eles com tatuagens vistosas e cabelos compridos. Mal o elevador chega ao térreo, é chamado novamente, indo até o sétimo andar, que desce parando no quarto. Antunes, agora conversando sobre futebol com Jorge, é interrompido novamente pelo interfone. É Maurício querendo saber se a esposa havia saído.
- Não, responde Antunes. Por aqui ela “não passou não”. Ela deve estar por aqui mesmo, pelo prédio, talvez... Ah, sim... sim, ela está chegando aí... sim, senhor, Seu Maurício... disponha.
Seu Antunes desliga o interfone. Jorge diz:
- Que pessoal mais esquisito esse que acabou de sair, hein, Seu Antunes?
- Ah, é a menina Margot. Esses amigos dela são meio esquisitos, mas nunca deram trabalho não... Vivem queimando incenso no aparamento dela. Dizem que são da paz. Sei não... – arremata Antunes com um sorriso.
- É melhor a gente deixar isso pra lá. Problema deles.
Jorge, ainda curioso sobre o caso do Rei das Botinas, volta ao assunto:
- Então, Seu Antunes, voltando àquele assunto, quer dizer que esse tal de Carlos não está sabendo da morte do sócio?
- Acredito que não. Acho que não sabe nem da explosão da carta.
- Que explosão?
- Ah, é um embrulho que entregaram pro Sr Abílio. A secretária dele é que recebeu o pacote, não sei te dizer porquê, explodiu na mão dela. Deu nos “jornal” ai explicando tudo direitinho, mas eu não entendi nada.
Coitada... ficou sem a mão direita.
- Então ele já estava marcado pra morrer bem antes de atirarem nele. Deve ter sido algum traficante que deu cabo dele – e levantando-se e entregando o jornal a Antunes – Bom, acho que vou dar uma volta aí pelo centro, enquanto Alessandra não chega. Até já, Seu Antunes.
- Até já, meu filho.
Antunes volta a sintonizar a Rural FM e fica observando o pouco movimento da rua através do vidro. Sente o forte calor, fazendo o suor escorrer-lhe na fronte. Porém ele não se mexe, nem pra se abanar. As pálpebras começam a ficar pesadas. Decide se levantar pra não ser pego novamente em pleno cochilo. É quando surge diante da porta de entrada a figura de uma mulher, já conhecida por Antunes. Ele a olha com ar de desânimo – “Ai, meu Deus! Hoje não é o meu dia”. Abre a porta pra falar com Amélia.
- Eu quero falar com a Júlia. Ela está ai, não está?
- Ih, minha filha, ela num ta aí não – responde Antunes, carregando ainda mais seu sotaque – Elas saíram cedinho.
- Ela passou a noite aqui, eu tenho certeza. Ela não podia fazer isso comigo. Tem certeza que elas saíram juntas?
- Tenho sim... mas eu vou interfonar, pra te deixar mais tranqüila.
Antunes interfona ao 302. Ninguém atende. Amélia pensa por um instante e sai. Antunes diz pra si mesmo:
-E. Desta vez ela não armou nenhum fuzuê. Ainda bem...
Mal Antunes termina a frase, Margot entra no prédio acompanhada de outros cinco rapazes, que não aqueles que saíram com ela ha pouco. Antunes ainda não entendia muito bem tudo aquilo, mas não ligava muito. Já havia se acostumado com aquele entra e sai de Margot e seus amigos.
Neste momento a porta do elevador se abre, e Tiago, de dois anos, sai correndo lá de dentro, seguido por Hilda, sua babá. Eles são do 201. Tiago, descalço e sem camisa, sobe nas poltronas, corre, rola pelo chão. Antunes acha graça do garoto. Eles sempre se gostaram. Às vezes Antunes cuidava de Tiago, enquanto Hilda saia rapidamente; isso sem que sua patroa soubesse.
Pouco depois desce também, Maria, a empregada de Iracema. Hilda deixa Tiago por conta de Antunes e conversa despreocupadamente com Maria. Este também se esquece do garoto e resolve participar do assunto quando chega D Creuza. Ficam tão envolvidos na conversa que quase não percebem a saída de Maurício e a esposa, uma morena bonita de fechar o trânsito, alta, cabelos compridos, bem arrumada, num vestido não muito comprido, mas justo ao corpo. Seguem para a garagem e saem em seguida.
Antunes se lembra de Tiago e resolve procurar pelo garoto. Este está sentado ao lado da mesa, com o pacote na mão. O embrulho estava parcialmente aberto de um lado, pelo qual o garoto tentava tirar algo lá de dentro. Antunes tira o pacote das mãos do garoto:
- Não, filho! Esse aqui não pode não!
Tem vontade de dar umas palmadas. Pensa em chamar a Hilda, mas perceba que ela está distraída em sua conversa com Maria. Pega uma fita adesiva em outra gaveta e antes de lacrá-lo novamente, espia o que tem dentro; sua curiosidade também estava aguçada.
“Parece uma fita de vídeo. Bom, melhor fechar logo isso”. Lacra o pacote novamente e o coloca na gaveta.
Pouco depois duas pessoas, usando coletes que os identificavam como policiais civis, chegam à entrada do prédio. Antunes abre imediatamente a porta e enquanto os policiais entram, ele se aproxima.
- Boa tarde. Eu sou o investigador Márcio, da Polícia Civil. Eu gostaria de falar com o Sr Carlos Magal.
- Olha... ele não está. Ele viajou com a mulher dele.
- Faz muito tempo?
O policial faz mais algumas perguntas de praxe. Não obtendo muitas respostas satisfatórias, resolvem ir embora.
- Muito bem Sr Antunes, se ele não está voltamos num outro dia. Até logo.
Antunes fecha a porta e volta a participar da conversa com o grupo de mulheres.
- Será que estão à procura do Sr Carlos por causa da morte do sócio dele? – pergunta Maria.
- Com certeza, responde Hilda. Senão, não teriam vindo aqui.
D. Creuza acrescenta:
- Isso faz parte da profissão deles. Eles têm que investigar. E depois pode ser que o Sr Carlos esteja correndo risco de vida também. Eles eram sócios e a morte do Dr Abílio ainda não foi explicada direito.
- É, pode ser – responde prontamente Antunes – Acho que você está certa.
- Sem contar com o atentado de antes, ao Dr Abílio, que quem levou a pior foi a secretária dele, coitada...
Maria intervém:
- Ah, mas espera aí. Eu li no jornal, há alguns dias, que aquilo foi um ex-namorado dela que mandou. Segundo a polícia já ficou provado que foi ele. Só falta prenderem o safado.
- E se não for, vocês acham que poderiam mandar uma outra bomba pro Sr Carlos que era sócio dele? – pergunta Antunes meio preocupado.
- Claro que pode – todas concordam.
Antunes fica pensativo. “Mas não pode ser. O pacote tem apenas uma fita de vídeo”. D Creuza Olha pra ele e sorrindo lhe perguta:
- Não está com medo, está?
- Não, não... Claro que não.
Ele sente o coração bater mais rápido. Vai até a mesa e retira o pacote da gaveta.
- É que hoje de manhã chegou esse pacote aqui pro Sr Carlos. O que será que tem dentro? – pergunta balançando o pacote, procurando ouvir algum ruído.
As três mulheres observam boquiabertas. Se entreolham e disparam a falar ao mesmo tempo:
- Pelo amor de Deus, Seu Antunes, larga isso...
- Não sacode, que pode ser perigoso...
- Ai, meu Deis, deixa isso longe de mim...
Como explicar a elas que já havia espiado dentro do pacote? Resolve ficar calado e ver o que dava.
Estão naquela balbúrdia, com Antunes parado e pacote na mão, sem nenhuma reação àquele falatório, quando chega Iracema e Maria Adélia querendo saber a razão daquela confusão toda. Após as explicações, Iracema se junta às demais mulheres, repudiando o pacote, sugerindo chamar a polícia. Maria Adélia, mais controlada, não credita no perigo do pacote. Acha melhor aguardarem a chegada de Carlos Magal para que ele decida o que fazer.
- Não há motivos para interferirmos nem violarmos a correspondência dele. Se for uma bomba, ela só explodirá se for aberta. A meu ver deveríamos guardar, e muito bem guardado, esse pacote e o Sr Carlos que resolva o que fazer após a sua chegada. Evitaríamos assim uma grande confusão e maus entendidos. O que acham?
- É, mas a polícia esteve aqui procurando pelo Seu Carlos, diz Antunes. E eles ainda estão lá fora dentro daquela viatura – diz apontando para uma viatura estacionada em frente ao prédio com duas pessoas em seu interior, confabulando.
- É... mas tenho que concordar com Maria Adélia. É melhor a gente não se meter nesse assunto.
- Se quiserem, pode ficar comigo – diz Maria Adélia – Quando ele chegar eu entrego.
- Melhor não, diz Iracema. Isso tem que ficar guardado aqui na portaria. Cuide disso, Seu Antunes. E Quero estar junto quando entregar a encomenda. Preciso falar com ele.
Antunes, despreocupadamente, pega o pacote e diz que guardá-lo no armário que fica no salão ao lado e se retira andando devagar. Quando está Diane do armário ouve Dona Creuza se despedindo das colegas. Ele deixa o pequeno embrulho na primeira prateleira interna e retorna ao hall de entrada, deixando a porta do armário aberta.
- Você já vai?
- Ah, estou com muito medo desse treco aí. Depois a gente conversa.
- Eu também, diz Maria. Acho que vou subir também.
Doma Iracema, que estava de saída, aproveita a deixa e se retira. Hilda com medo daquele pacote chama Tiago e retornam ao apartamento. Apenas Maria Adélia fica.
- Sabe, Seu Antunes, eu acho que vocês estão exagerando. Vai ver não é nada disso.
Antunes resmunga qualquer coisa, estranhando mais ainda o fato dela puxar assunto, o que não era do feitio dela. Ela, que estava saindo, resolve retornar ao seu apartamento.
- Seu Antunes, vai vir aqui um senhor com o nome de Menezes. Assim que ele chegar o senhor diz a ele pra me esperar aqui embaixo e me interfone imediatamente.
Maria Adélia entra no elevador e sobe.
Pouco depois Margot sai acompanhada dos cinco rapazes ao mesmo tempo que Sérgio e Alessandra chegam juntos.
- Ué. Encontrou com a Dona Alessandra?
- Fui buscá-la na faculdade, Seu Antunes. A saudade estava apertando e eu não resisti.
Eles sobem.
Antunes volta à sua mesa. Assim que se senta, ouve o locutor da Rural FM informando as últimas notícias. Segundo ele, a polícia suspeitava que o Dr Abílio da Fonseca Borges havia sido assassinado por traficantes e que estariam seguindo pistas encontradas na garçonnière, e ainda: Muito em breve estariam solucionando o caso. Enquanto isso as investigações continuariam.
“Então o Seu Carlos não tem nada a ver com o peixe. E eu aqui pensando que ele estava metido nesta mutreta. Mas e o pacote? Pode não ser mesmo uma bomba, apesar de nem mesmo ter um remetente. Ele recebeu um pacote igualzinho outro dia e não aconteceu nada. Acho que nos preocupamos à toa”.
Cerca de quinze minutos depois, chega à frente da porta de entrada do prédio um senhor muito bem vestido carregando uma maleta.
- Bom dia, diz. Me chamo Menezes. Gostaria de falar com Maria Adélia. O Senhor poderia avisá-la que estou aqui?
- Perfeitamente. Aguarda só um instantinho que vou avisar.
Antunes interfona, porém ninguém atende.
- Ué, rapaz. Mas que esquisito. Ela me disse pra avisar assim que o senhor chegasse, mas ninguém ta atendendo – Antunes pensa por um instante – Acho que vou lá em cima chamar D Maria Adélia.. O senhor, por favor, espera só um minutinho.
Antunes sobe e demora bem mais que o previsto, retornando para a portaria acompanhada de Maria Adélia.
Os dois se cumprimentam e saem.
Pouco depois, Margot retorna ao prédio. Desta vez acompanhada de duas moças e um rapaz. Comenta com Antunes:
- Puxa, Seu Antunes, que coisa mais baixo astral. Está o maior fuzuê ali na rua de baixo. Agora a pouco, uma menina pulou do décimo andar.
- Nossa... E que menina é essa? Você conhecia?
- Só de vista. Vivia andando aqui pelo prédio. O nome dela era Amélia. Ainda não se sabe o motivo dela ter pulado – completa Margot entrando no elevador.
Antunes está ainda meio perplexo, porém entende o motivo, quando sai do elevador, Ricardo, o solteirão do 701. Rapaz simpático, bem vestido, corpo malhado. Cumprimenta a todos e sai.
Dona Iracema retorna pouco depois e está dando algumas recomendações a Antunes, quando chega Carlos Magal e sua esposa. Antunes com a calma e passividade de sempre diz:
- Boa tarde, Seu Carlos.
- Boa tarde, responde secamente Carlos.
- Há uma encomenda pro senhor aqui.
Antunes se apressa em pegar o pacote. Porém não o encontra no armário. Ao voltar:
- Desculpe Seu Carlos... mas não entendo. O pacote sumiu.
- Como sumiu? – indaga Iracema. Você não guardou conforme mandei?
-Guardei, sim. Coloquei no armário e tranquei a chave. Ele não podia ter sumido lá de dentro.
- Gostaria de ver onde ele estava, diz Carlos.
Vão todos até o salão. Carlos examina a porta do armário.
- Não sou perito, mas essa porta não foi arrombada. Quem a abriu possuía uma chave.
- Tem certeza que trancou esse armário? – pergunta Iracema.
- Claro que tenho. Só que quando vim pegar o embrulho a porta já estava aberta, assim do jeito que está.
Iracema diz, um pouco exaltada:
- Essa história está muito esquisita. É melhor chamar a polícia.
Sônia, esposa de Magal, que até então não se havia ouvido o som da sua voz, retrucou de imediato:
- Não... Quer dizer... Melhor procurarmos saber melhor essa história primeiro. Pode estar por aqui mesmo e a gente iria incomodar a polícia à toa... e depois não deve ter nada de tão importante neste pacote.
Iracema e Antunes acatam a decisão de Sônia, apesar de não entenderem nada daquilo tudo que estava acontecendo.
- Está certo, diz Iracema. Vocês decidem o que fazer. Qualquer coisa... me procurem!
Margot sai logo em seguida com as duas moças e o rapaz.
No início da noite, Antunes ouve a Rural FM. Novamente o repórter entra no ar:
- Novamente sobre o Caso Rei das Botinas: A Polícia divulgou agora há pouco, ter encontrado, na ocasião do crime, uma coleção de fitas em que o empresário assassinado aparece em cenas bem quentes, em cada uma delas, com uma mulher diferente, inclusive com damas casadas de nossa sociedade. Segundo fontes dentro da Polícia, temos a informação de o arquivo estava incompleto, faltando algumas fitas. Provavelmente, essas fitas poderiam identificar o assassino, mas até o momento a polícia não tem mais nenhuma pista, e pelo jeito, esse é mais um crime a ficar impune nesta cidade...
Antunes desliga o rádio, pensando em ir à lanchonete buscar um refrigerante.
Maria Adélia retorna pouco depois. Entra sem falar com Antunes. Sobe no elevador e vai até o quinto andar.
“Ué. Ela passou direto. O dela é o primeiro andar; foi parar lá no quinto. Eu, hein!”.
Antunes está distraído quando ouve o zumbido da campainha da entrada do prédio. É Margot... acompanhada de três amigos. Eles sobem. O elevador vai ao quinto e desce em seguida. Sai um casal de dentro de elevador, Antunes ouve Maria Adélia dizer a ele:
- Calma, Carlos. Não se preocupe. Logo todos esquecem e isso aí não vai dar em nada.
Antunes olha para o relógio.
“É... está na hora de deixar a portaria. Vou é jantar agora. E esse calor, hein? Conforme for, eu até que poderia tomar um banho logo mais...