Meu Erro

- Vem cá garoto! Venha conversar um pouco com seu avô – disse aquele senhor ao garotinho que brincava por ali.

Aquele homem com ar de desânimo, sentado em sua poltrona, como que jogado em um canto da sala, aparentava ter bem mais que seus sessenta e cinco anos. A vida lhe fora dura. Começou a trabalhar desde cedo, aos dez anos, como engraxate, para ajudar no sustento da família. Aos quinze perdeu seu pai. Dois meses depois sua mãe. Tornou-se então responsável pelos seus avós paternos. Idosos e doentes, sempre precisando de remédios e cuidados especiais. Ele começou a considerá-los um fardo pesado demais para carregar. Sem perceber foi tomando aversão por aqueles dois idosos.

- Meu neto, você anda muito estranho ultimamente – diziam os avós – Fizemos alguma coisa que lhe contrariasse?

Ele nada respondia. Passava pelos avós côo se eles não existissem. Já propositadamente deixava faltar alimento em casa.

“Por que não morrem logo de uma vez? Já não servem pra nada mesmo. Já viveram tudo que tinham de viver. Se morressem seria até um alívio pra eles. Assim eu não teria a obrigação de ficar com esse peso às minhas costas... mas... quem disse que tenho que ficar com eles. Posso muito bem enfiá-los num asilo... até que não é má idéia...”.

E ele não via a hora de se ver livre do avós. Uma vez, pela manhã, a pretexto de estar lavando a casa, jogou água e sabão à frente da porta do quarto dos seus avós e os chamou para que o ajudassem. E nada. Chamou novamente... e nada. Resolveu entrar pra ver o que estava acontecendo, uma vez que não respondiam ao seu chamado. Não havia ninguém. Irritado por seu plano não ter dado certo, saiu apressado, esquecendo-se do sabão. Só percebeu quando já era tarde demais. Estatelado no chão, berrava: - Desgraçados! Eu mato aqueles dois! – Mais tarde soube que haviam saído bem cedo para entrar na fila de espera para atendimento médico no Posto de Saúde do Estado. Embora seu neto tivesse condições de pagar por tratamento particular, não entendiam por que não o fazia Tinham de dispor de sua minguada aposentadoria para comprar remédios e suas despesas particulares e às vezes até da casa. Não entendiam por que sempre aconteciam coisas esquisitas naquela casa, e justamente quando o neto lá se encontrava. Cada fato estranho que acontecia era motivo de gritos e ofensas aos dois velhos; e sempre aconteciam esses pequenos incidentes. “Parece de propósito”, pensavam eles. Certo dia desatarrachou a perna traseira da poltrona preferida de seu avô e deixou-a solta, como uma armadilha. Uma vizinha, que raramente visitava a família, resolveu vir justo naquele dia, e foi logo se sentando na poltrona. O grito histérico foi tão alto que assustou mesmo que passava pela rua.

- Ai, meu Deis! O que é isso? Me ajuda... – Com as pernas pro alto, vestido lá na cabeça, rosto branco como leite – Me ajuda, me tira daqui...

Tão logo se levantou, o rosto passou do branco para vermelho, e se desculpando (como se fosse sua culpa!), foi saindo.

Não atingira seu objetivo. Mas até que se divertiu bastante com aquela cena toda.

Ao completar vinte e um anos, já trabalhava como contador em um pequeno escritório de contabilidade. Seu patrão lhe prometera sociedade assim que se aposentasse. Maior de idade e já livre da tutela de seus avós, sendo totalmente independente, resolveu que chegara o momento de colocar seus avós num asilo.

Algum tempo depois chega ele em casa, sem perder muito tempo e sem o mínimo eufemismo, chama os avós para conversar e diz:

- Bem... eu tenho uma coisa pra falar pra vocês. Como eu permaneço o dia inteiro fora e fico preocupado com vocês aqui sozinhos, pois pode acontecer alguma coisa, eu gostaria que vocês ficassem com alguém que cuidasse melhor de vocês.

-Ora, meu neto. Não precisa contratar alguém pra cuidar de nós, - diz seu avô, ingenuamente – nós podemos nos cuidar sozinhos. Não se preocupe.

- Não é isso, Vô. Vamos que algum de vocês passe mal e eu não esteja aqui. Vão falar que eu não cuido bem de vocês. Me falaram que o Lar Santo Agostinho cuida muito bem de pessoas, assim como vocês.

- De velhos que não servem mais pra nada, você quer dizer.

- Olha aí. Já está reclamando. Vai ser melhor pra vocês. Serão melhor cuidados.

Seus avós se olham incrédulos e agoniados, e em seguida abaixaram os olhos, resignados. “Trabalhar a vida toda e depois ser jogado num depósito de velhos”.

Levou enfim seus avós pro asilo. Prometeu visitá-los toda semana. Cumpriu sua promessa apenas por duas semanas. Não voltou àquele asilo nem quando soube da morte de seus avós.

Casou-se pouco tempo depois. Teve apenas um filho, que educou sempre com muita severidade, e sempre saia com essa:

- Velho só serve para ocupar lugar no espaço.

Tudo que se relacionava à chamada terceira idade era motivo de deboche para ele. E o tempo foi passado, o filho se casa, ele fica viúvo. Vieram-se o netos, aposentadoria... Passa ele então a descobrir algumas limitações, que não tinha antes. Começa a ter estranhas sensações e a perceber que já não podia viver sem alguns remédios.

“Meu Deus. Estou ficando velho! Como o tempo passou depressa”.

Começa a observar o comportamento da família para consigo. “Não pode isso, não pode aquilo. Você já não está mais na idade de fazer extravagâncias...” Começa a ser tratado como criança; perdera a voz ativa dentro de sua própria casa. O filho já o tratava de modo diferente, ou melhor dizendo, de maneira indiferente, o que o fazia sentir-se cada vez mais inútil.

Por várias vezes ouviu, sem que percebessem, discussões entre seu filho e sua nora, sobre se o interditavam ou não. Seu filho a favor da interdição e sua nora sempre contra; ela fora educada de outra forma. Aliás, essa era uma das razões pela qual o filho não havia colocado o pai num asilo. Sogro e nora, sempre se relacionaram bem. Ela, talvez por haver perdido seu pai muito cedo, tinha muito afeto por ele, como se fosse um pai. E não se sabe a razão, visto que ele era muito sistemático e de gênio difícil, esse afeto era recíproco. Era ela quem o acompanhava em suas visitas ao médico, que passaram a ser regulares depois que passou a se manifestar nele o Mal de Parkinson. E num desses “check-ups” feitos regularmente diagnosticou-se que ele tinha tumor na próstata. Exames mais detalhados em pólipos retirados da bexiga, revelara que esta também havia sido atingida. O filho seguindo os exemplos que ouvira durante toda sua juventude, era contra a operação. Segundo o filho, seria um gasto inútil, já que na sua opinião essa doença na tinha cura e o seu pai já esta velho: - Operar pra quê? Já está velho, e vai gastar todo o dinheiro dele e não vai deixar nada pra mim. – A nora, como sempre, interveio, juntamente com os médicos, convencendo o sogro de que operar seria a melhor solução.

O filho, que já o tratava mal, passou a tratá-lo pior ainda. Nem sequer o cumprimentava. E esse comportamento começava a influenciar a criança em relação ao avô. Não havia aquela relação agradável entre neto e avô. Mas se o neto sofria a influência do pai, o avô não dava o braço a torcer, não fazia o mínimo esforço para mudar essa situação, embora começasse a entender que tinha sua parcela de culpa.

- Meu sobro... Vocês precisam se entender. Essa situação já está ficando insuportável.

- O que eu posso fazer? Eles não me suportam. Nem eu neto me dá atenção.

- É, mas tiveram a quem puxar. Se o senhor não fosse tão duro, tão severo e mal humorado, quem sabe não seria diferente.

- Mas agora é tarde. Não há como mudar o que passou.

- Não. Não é tarde. Nunca é. Basta que alguém dê o primeiro passo, e eu estou apostando no senhor. E o senhor sabe que não tem muito tempo, se é que me entende. Talvez com seu filho seja mais difícil, mas não custa tentar, nem que seja pra ficar com a consciência tranqüila. Bom, vou deixar o senhor aqui, sentado nesta poltrona, para que o senhor reflita bem sobre o que acabei de dizer.

Ela sai. Ele com o olhar fixo através da janela relembra toda sua vida, toda sua conduta em relação a pessoas que eram como ele é hoje, relembra também de seus avós...

“Meu Deus. Agora o velho sou eu!”, pensa ele. “Justo agora que eu tenho experiência de vida. Justo agora que eu tenho conhecimento do que é certo ou errado, do que se deve ou não fazer, se uma coisa deve ser feita assim ou daquele jeito. Justo agora que eu posso perceber aonde errei em minha vida; se soubesse o que sei hoje, minha vida teria sido tão diferente... Não teria feito a maioria das besteiras que fia. Teria levado uma vida mais voltada para minha família. Nem meu filho nem meu neto me dão atenção. Hoje estou aqui, esquecido por eles, sem que eu possa ensiná-los, sem que possa passar-lhes toda experiência que vivi e que estou vivenciando neste momento. Ensiná-los para que um dia não cometam os mesmos erros que um dia cometi”.

Um barulho de brinquedo lhe chama a atenção.

“O passado não posso mudar, mas posso dar o primeiro passo para que nossas vidas tomem outro rumo”.

- Vem cá garoto! Venha conversar um pouco com seu avô – disse ele.

Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 16/11/2011
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