Vila dos Empacados
Interior de Minas. Início do século XX. Naquele pequeno arraial havia algo de incomum. Não era à toa que as cidades vizinhas riam da população local, chamando esse arraial de “Vila dos Empacados”. Bastava que alguém implicasse com outro, ou arreliasse com outro... Pronto. Nada fazia com que esse mudasse de idéia.
Venâncio, ao contrário da regra geral da vila, sempre fez de tudo para que mudasse a forma como sua vila era conhecida. Chegou até a se candidatar vereador. Não se elegeu... Venâncio era condutor de bererê. Talvez por medo, preconceito ou simplesmente birra da população não se elegeu.
Depois da derrota nas urnas Venâncio se entregou à bebida. Ninguém se atrevia a contestá-lo, com medo que lhe rogasse alguma praga, e como vivia ao lado de defuntos, era melhor ao arriscar.
A rotina de Venâncio era essa. Várias vezes por semana, lá ia ele conduzindo o bererê, às vezes sentado em cima, às vezes caminhando lado a lado com o carro fúnebre. Venâncio não entendia porque um percurso tão pequeno a ser feito, demorava duas ou até três vezes mais, na condução com o bererê à de uma charrete normal. O cemitério ficava no alto de uma colina e toda vez era aquele sofrimento fazer com que os cavalos subissem aquele morro. Os cavalos escorregavam, as rodas derrapavam, parecia que o defunto não queria ir. Era como se pesassem uma tonelada. Quando não havia enterro se subia ali sem qualquer esforço. Venâncio já havia feito o teste.
- Diacho! Como é que pode, sô?
Venâncio se irritava com aquilo. Mas realizava seu trabalho normalmente. Era sua sina.
Num certo dia morreu Murillo, homem bravo e impiedoso, matador de aluguel. Tuberculoso já há muito tempo, se recusava a fazer tratamento correto. Por birra.
- Não é essa tossezinha que vai me matar. Aqui não tem cabra nenhum que me põe debaixo de sete palmos de terra. Mas não vão me enterrar assim tão facilmente não – dizia Murillo.
Corria certo boato que Murillo mantinha um romance com mulher casada. Alguns afirmavam que era Edésia, esposa de Venâncio. Venâncio ficava a ponto de perder o controle. Não tinha certeza. Pensara várias vezes em tirar satisfação, mas tinha medo de Murillo, embora não saísse de sua cabeça a possibilidade de Edésia e Murillo serem amantes. Por várias vezes chegara de surpresa em casa para um possível flagrante, mas nada. Nunca teve certeza.
Agora que Murillo morreu, nunca mais saberia se era verdade ou não. Estava ali, diante de seus olhos, deitado em seu caixão. E a seus olhos, parecia com certa expressão de deboche.
- Não. Devo estar impressionado, influenciado por minhas suspeitas... não é nada disso...
Olhava para o defunto. Lá estava ele com seu ar debochado. Venâncio irritado resolveu beber mais algumas doses de pinga no bar de Seu Amâncio. Ia bebendo e praguejando contra o defunto.
Chegada a hora do enterro e Venâncio nada de aparecer. Mandaram um menino chamá-lo no boteco.
Venâncio veio de cara amarrada, meio que trocando as pernas, cuspindo de lado e resmungando qualquer coisa.
Sentou-se no banco do condutor do bererê e deu-se início ao cortejo fúnebre. Primeiro, passagem pela igreja matriz, para encomenda da alma do coitado.
- Coitado uma ova. Esse cabra já está ardendo nos infernos há muito tempo – resmunga Venâncio.
Terminada a missa, reiniciou-se a marcha em direção ao morro do ipê, onde ficava o cemitério.
E lá iam todos, naquela marcha lenta. Venâncio conduzindo o bererê com “uma tonelada” de carga. Chegaram ao pé do morro e prá azar de Venâncio havia chovido poucas horas antes da sida do féretro.
- Esse diacho vai ter que subir nem que seja na marra – resmungava Venâncio – Nem que eu tenha que puxar eu mesmo... mas ele vai. Não queria ser enterrado de jeito nenhum, mas agora não tem escolha. E faço isso com o maior gosto. Pena que não tive coragem de enfrentá-lo em vida. Daria uma surra nele. Assim estaria me sentindo bem melhor agora.
Na subida do morro os cavalos escorregavam e nada fazia com que se movessem um palmo sequer. Venâncio, já meio alterado pela bebida, aquelas lembranças todas que lhe vinha à memória, Edésia e Murillo. Desceu do bererê com o chicote na mão, irritado e resmungando:
- Não quer ir não, hein! Pois eu já dou um jeito nisso. Não quero mais saber de reclamação de defunto. Ou vai de um jeito ou de outro.
Desceu o caixão do carro, abriu a tampa e ante o olhar de espanto das pessoas que acompanhavam o féretro, desceu a chibata no defunto. Bateu no coitado até quase a exaustão.
- Quero ver se vai ou se não vai, diacho. É sempre a mesma coisa, chega aqui é essa lamúria pra ir para o cemitério.
Tampou o caixão e o recolocou no carro. Subiu em cima e tocou os cavalos.
Para espanto de todos, subiram sem nenhum esforço, como se nada tivessem transportando. A viagem durou um terço do esperado.
Venâncio nunca mais pôs uma gota sequer de álcool na boca. E desse dia em diante, defunto nenhum mais empacou durante sua última viagem.