Recomeço

Cecília ia andando pela rua, com ar de desânimo. Já não havia mais espaço para o desespero que a atormentara nos últimos meses. Devido à crise que assolara o país, fora demitida a oito meses e desde então tem procurado emprego de empresa em empresa. A resposta obtida tem sido sempre a mesma: - Vamos ver. Se a situação financeira melhorar, nós te ligamos. Todas as suas economias já há muito tempo se esgotaram. Os credores já batiam à sua porta, exigindo, ameaçando. Sua dívida ia aumentando cada vez mais e como se não bastasse, anteontem, segunda-feira, vencera o prazo de trinta dias que o proprietário do apartamento onde mora lhe dera para desocupar o imóvel. Não lhe restava mais nenhuma esperança. Nada ou ninguém com quem pudesse contar. Não tinha família, tampouco amigos que pudessem He estender a mão neste momento tão difícil de sua vida; se não ajuda financeira pelo menos uma conversa para um desabafo.

Agora, ali, andando pela rua, sem rumo, já entregara os pontos. Em sua bolsa um pequeno vidro de veneno contra ratos que acabara de roubar em um pequeno supermercado. Estava decidida.

Naquele momento, passava ela em frente a uma capela do século XVIII que estava sendo restaurada. Olhando, até com um certo desinteresse, observou que algumas pessoas que passam por ali iam entrando. Uma senhora de mãos dadas com uma criança de mais ou menos cinco anos que caminhava à sua frente se dirigiu para a capela. Cecília, meio sem pensar, resolveu entrar também para descansar, e quem sabe dizer poucas e boas a Ele por lhe haver abandonado.

Alguns restauradores confabulavam de um lado, analisavam uma planta, e apontavam com o dedo, comparando cada detalhe. O rapaz que fazia reparos na porá da frente se afastara para buscar uma ferramenta. Na lateral direita, duas pessoas em um andaime analisavam a estrutura de cobertura da capela. Cecília foi entrando, seguindo de perto a senhora com a criança. De imediato percebeu o silêncio, a tranqüilidade. Algumas pessoas se encontravam ali, não muito próximas uma das outras. Ao chegar mais ou menos no meio, Cecília entrou entre os bancos e sentou-se ali, observando ao redor, olhando cada uma das pessoas que ali se encontravam. Percebeu que a senhora e a criança sentaram-se um pouco mais adiante, do outro lado do corredor central que se formava pelas fileiras de bancos.

“Todas essas pessoas aqui...”, pensou ela, “parecem tão tranqüilas. Não devem ligar a mínima para os outros. Deveriam estar ajudando alguém e ao invés disso se escondem aqui dentro, despreocupados com os problemas alheios. Uns egoístas, isso sim!”.

Um senhor passa por ela e senta-se ao lado da mulher com a criança.

“Pelo menos rezam unidos. Eles têm um ao outro para se apoiarem. Porquê será que rezam tanto? Parecem tão felizes...”

Cecília ficou ali observando e analisando cada um daqueles que ali estavam. Que problemas poderiam ter? O que se passava pela cabeça de cada um? Foi sentindo uma estranha paz lhe invadindo. Gostou da sensação agradável que transmitiam aquelas pessoas, alheias à sua presença...

- Olá!

Cecília olha para o lado um pouco assustada.

- Ah... me desculpe. Não era minha intenção assustá-la, disse ele.

- Bem, não se incomode. É que eu estava um pouco distraída... – e olhando com um ar de interesse – o senhor... está me parecendo ser um padre. É o pároco desta igreja?

- Não sou exatamente um padre. Mas estou ligado a este local. E de certa forma me sinto responsável pelas pessoas que vêm aqui em busca da solução de seus problemas.

- Não creio que seja uma dessas pessoas. Mas já que estou aqui gostaria de conversar um pouco. Essas pessoas que estão aqui, rezando, conseguem realmente encontrar alguma paz?

- Minha cara, algumas pessoas têm por hábito nos procurarem apenas quando estão com algum problema, outras nos procuram sempre, seja em busca de ajuda ou simplesmente para agradecer pelo que são e possuem. Veja por exemplo aquele senhor, à nossa frente: Um rico comerciante. Só conheceu a felicidade quando a procurou nas pessoas e não em seus bens materiais. Hoje ele só pensa em ajudar as pessoas que buscam ajuda e não sabem a quem recorrer. Cada um aqui dentro tem a sua história, o seu caso particular. Veja aquele casal com a criança. Há muitos anos separaram-se de uma outra filha. Recentemente a reencontraram, perdida, sem rumo. Vieram aqui para ajudá-la. Os problemas que aparecem ao longo da vida fazem parte do amadurecimento das pessoas, é como desafios a serem transpostos. Algumas encaram de frente... outras necessitam de ajuda.

- Pra dizer a verdade, não tenho lidado muito bem com meus problemas. Por ter lutado sozinha desde cedo, deveria ter aprendido a lidar com as mazelas da vida. Mas os acontecimentos dos últimos meses... não estou conseguindo suportar. Ninguém liga pra mim. Ninguém se importa.

- Eu me importo. Pode parecer estranho pra você, uma pessoa que nunca viu, de repente querendo lhe ajudar. É que minha missão aqui é ajudar as pessoas. Cada um de nós tem seu lugar no universo.

- É... lutei a vida toda com muito sacrifício. Fiquei órfã aos três anos. Meus pais e meu irmão de cinco anos sofreram um acidente de carro. Morreram todos. Não me lembro muita coisa da vida deles. Ao que parece minha mãe não tinha mais ninguém e meu pai apenas alguns primos distantes. Nenhum deles se interessou em me adotar. Fui entregue a um orfanato. O lugar era muito visitado por casais que queriam adotar uma criança. Nunca fui a escolhida. Apesar disso, consegui estudar e completar o 1º grau. Sai com dezoito anos, batalhei um emprego e, estudando à noite completei o segundo grau. Nesse meu emprego, sempre me esforçando muito, consegui chegar à gerencia da loja. Minha vida foi melhorando. Esta conseguindo levar a vida mais tranqüila. E passei a pensar: Mesmo sem qualquer ajuda consegui chegar até aqui. E vou conseguir muito mais... De repente, a pouco mais de um ao, tudo começou a mudar. Nada do que eu fazia dava certo. Perdi tudo. Até os amigos se afastaram de mim. Perdi meu emprego há oito meses. Vendi o carro para pagar algumas dívidas e desde então tenho vivido do que sobrou. Estou sendo despejada do meu apartamento. Não tenho para onde ir.

- E decidiu se entregar. Você que passou por tudo isso que acaba de me contar, está me dizendo que desistiu?! Que graça tem em desistir? O mérito está na luta, no seu empenho, na sua vontade de conseguir. Mesmo que Você não chegue aonde pretendia, terá valido a pena. Você lutou. Conquistou seu lugar no universo. A felicidade, a sua paz, você encontrará primeiramente em seu interior. É só procurar, achar e compartilhar. Esse é o segredo.

Aquelas palavras emitidas serenamente, foi mexendo com Cecília. Sua mente foi se acalmando. Toda aquela aflição foi desaparecendo, ao mesmo tempo em que sentia uma força interior crescendo.

- Você tem razão. Acho que devo ir à luta e não me lamentar por que o destino colocou alguns obstáculos em meu caminho. Sabe, foi muito bom conversar com você. Se eu o tivesse procurado antes não teria pensado tanta bobagem.

Tirando o vidro de veneno de sua bolsa, colocou-o sobre o banco, entre eles.

- Creio que não preciso mais disso. O senhor não imagina o bem que me fez essa conversa. Parecia tão complicado, mas essa conversa me iluminou... Preciso ir. Vou à luta. Obrigada por me ouvir.

- Sempre que desejar, me procure. Sempre ouvirei o que tem a me contar.

- Eu virei sempre. Obrigada mesmo... Tchau.

O homem emitiu um sorriso que parecia vir do fundo da alma, franco e terno. Acenou com a cabeça.

Cecília se virou e começou a caminhar. Renovada, cheia de vida. Na saída esbarrou-se com o rapaz que trabalhava na restauração da porta principal.

- Desculpe! – disse ela.

- Não foi nada... Estamos em reforma e a capela está fechada...

Cecília não ouviu direito. Estava tão entusiasmada em começar sua vida. Saiu sem olhar para trás.

O restaurador resolveu entrar para ver se estava tudo em ordem. Parecia tudo normal. Observou o teto meio corroído pelo tempo, os andaimes, o altar desmontado. Os bancos empoeirados, alguns deles amontoados em um canto. Ninguém por ali. Tudo normal, como vira antes, exceto pelo brilho do sol que entrava por uma fresta e refletia na superfície de um pequeno frasco repousado sobre um dos bancos.

Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 15/11/2011
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