Questão de Profissão
I
Quando nos reunimos, eu e alguns amigos de infância, sempre surgem assuntos relacionados àquela época. Lembranças que fazemos questão de reavivá-las na memória para não esquecer. Ah! Que tempo bom aquele. Recentemente, estávamos reunidos, e alguém lembrou de como ficávamos assustados, e admirados até, com a frieza com que eram cometidos alguns assassinatos em nossa região. Lembrei-me então de algo que aconteceu quando ainda era adolescente, lá pelos meados da década de setenta, que vou relatar aqui para vocês. Foi num lugarejo chamado Bandeira Branca, hoje Estado de Tocantins. Naquela época era ocupada por todo tipo de pessoas, vindas de diversas regiões do país. Por ser uma região afastada dos grandes centros, a lei não era muito respeitada por lá. Era comum as brigas com facas e tiroteios. Dizia-se que um atirava no outro “só” pra ver de que lado elas iam cair. Uma região inóspita. Os forasteiros eram vistos com desconfiança, tanto pelas pessoas de bem, por não saber o que esperar delas, como pelos pistoleiros, pois qualquer um representava uma ameaça à sua pessoa.
Mas o meu relato aqui é sobre dois habitantes deste pequeno vilarejo: Vicente e Ronaldo. Vicente, já na casa dos trinta anos, estatura mediana, magro, olhos escuros e caídos, em suas andanças pelo sul do Pará, certa vez retornara acompanhado de um rapazola já com quatorze anos: Ronaldo. Rapaz franzino, olhos miúdos, pele morena, e com jeito meio arredio. Havia quem jurasse que era filho de Vicente. Filho bastardo dele com Maria Doceira, que morava em São Félix. Vicente não se incomodava muito com os comentários, que aliás, nunca eram feitos em sua presença. Sabia deles através de compadres e pessoas de confiança. Nem mesmo sua mulher, Joaquina, dava muita atenção aos fuchicos do povo. Aliás, ela o tratava como se fosse seu filho legítimo. Um filho que nunca pudera ter. Tinha o “útero seco”, como se diz por lá. Apesar do jeito rude e brabo de Joaquina, que adquirira na convivência com seu marido, se afeiçoara ao garoto assim que o viu.
Ronaldo nunca se interessara em estudar e também não obtivera muito incentivo por parte de seus pais postiços. Passava o tempo arrumando confusões, com rapazes e garotas de sua idade; aí sim, recebia total incentivo.
Já com dezesseis anos, é chamado por Vicente para acompanhá-lo na execução de um trabalho.
- Vicente, será que não é muito cedo pra levar o menino junto com você?
- Que nada, Joaquina, isso já é homem feito. Já está passando da hora de aprender a se virar.
- Mas podia começar com um serviço de menor importância. Pode ser que ele amarele e não se controle.
- Ele tem que aprender desde já a não vacilar. Não pode ficar esperando aparecer um serviço pequeno. É o que aparecer. E depois ele vai estar comigo, só observando. Aprendendo como se faz.
Aprontam tudo, limpam as armas, pegam a munição e partem de madrugada para a execução do serviço. A “quebra de milho”. É como, na gíria local, se chama o serviço de matador de aluguel; a profissão de Vicente.
II
Viajaram cinco léguas para o norte, a um lugarejo chamado Boa Vista. Chegam a ela quando o sol apenas ameaça despontar no horizonte e a atravessam devagar, de ponta a ponta, em seu maverick vermelho, indo se acoitar na chácara de um conhecido. Quanto menos pessoas tivessem conhecimento de sua presença na região melhor para a execução do seu trabalho.
- A surpresa é uma arma poderosa que deverá ser usada sempre que puder, dizia Vicente. Você tem a chance de analisar todas as probabilidades e fechar o cerco, sem deixar saída para o infeliz. A surpresa garante cinqüenta por cento de sucesso na empreitada.
Chegam à chácara de Raimundo, conhecido de longa data e companheiro de farra de juventude; e às vezes, quando se encontram, saem juntos aprontando naqueles cabarés. Apesar de se considerarem “cabras-macho”, tanto um como outro se borram de medo de suas mulheres.
Raimundo acabara de tirar o leite e estava libertando o gado para o pasto do fundo.
- Bom dia, Raimundo.
- ‘Dia. Rapaz, faz tempo que ‘cê num aparece pr’essas bandas. Vai fazê alguém pro aqui ou veio caçar? É época de caititu aí nas roças. Tá bom de fazer espera.
- É, Raimundo. Quem sabe a gente não saia pra caçar, enquanto espera.
- E esse menino? É aquele seu filho?
- É. Mas sabe que não é meu filho. Só peguei ele pra criar. Veio comigo pra ir aprendendo a profissão.
- Sei...
- Ele é que vai executar o serviço. Se Joaquina sabe disso, não tinha deixado ele vir. Mas ele vai se sair muito bem.
Raimundo se vira para Ronaldo e diz:
- Mas e aí, já está bom no tiro igual o Vicente? Vê se num vai medrar na hora, senão o cabra te pega primeiro.
- Qualquer coisa eu estou aqui pra garantir, disse Vicente.
- Sei que num é da minha conta e num se deve perguntar, mas quem é o “disinfiliz” desta vez?
- Genivaldo.
- ‘Cê ta é doido! – se espanta Raimundo. Vai deixá o garoto fazê o serviço? O cabra é esperto que só... E também sabe atirar. Desde que chego aqui já despacho bem uns quatro. Se bobeá ele escapa e “oceis” é que vão sê a caça.
- Isso não vai acontecer. Precisa ver Ronaldo atirando. Tem a mão firme. Ainda vai ser o melhor destas bandas.
- Bem, vamo entrá pra tomá café, disse Raimundo, e adispois vô levá ocêis pra vê minha roça de milho.
Tomaram café, Raimundo pegou sua espingarda de dois canos, alguns cartuchos e saíram. Vicente levava consigo apenas dois revólveres e Ronaldo uma carabina.
Faltando uns cem metros pra chegar no milharal, Raimundo acusa algo numa moita de capim à sua frente. Vicente pega uma pedra e pergunta:
- Querem ver como se caça perdiz?
Joga a pedra na moita de capim, a perdiz alça vôo, ele atira com o revólver e a derruba. Raimundo se admira do tiro dado, mesmo que por várias vezes já tenha presenciado fato igual.
- O almoço está garantido, diz Ronaldo.
Passam o dia na propriedade de Raimundo. Quando o relógio marca três horas, Vicente chama Ronaldo.
- Já está na hora de ir. Genivaldo vai receber o dinheiro na Fazenda de Ipê às quatro e por volta das quatro e meia deverá estar chegando à ponte do córrego cascavel.
Verificaram o armamento, tomam café e partem.
Já eram quase quatro horas quando chagam ao local da emboscada. Verificam o local. Escolhida a melhor posição e discutido a maneira de agir, sentam-se e, sempre de olho na estrada, aguardam. Haviam combinado que Genivaldo passaria por Vicente e Ronaldo atiraria de uma posição cinqüenta metros mais adiante. Vicente daria cobertura se Genivaldo tentasse voltar ou qualquer coisa saísse errado.
O tempo parece passar muito devagar. Quatro e meia e Genivaldo não aparece. Ronaldo parece estar inquieto. Vicente acena para ele se acalmar, mas Ronaldo vai se sentindo cada vez mais nervoso. Sente um vazio no estômago e um arrepio que percorre toda sua coluna. O Suor frio escorre em sua fronte. É seu primeiro serviço. “Eu vou conseguir. Vai ser moleza. Calma” – diz Ronaldo a si mesmo. Vicente sente a inquietação de Ronaldo e pressente que ai ter que intervir.
Mais vinte minutos e surge na curva da estrada a figura de Genivaldo sobre o cavalo. Vem em uma marcha rápida, pois tinha consciência de que muita gente sabia que receberia dinheiro naquele dia. Vai aproximando-se do Córrego Cascavel. Só se ouve o barulho do trote do cavalo. Ronaldo sente um tremor percorrer seu corpo, o suor aumentar, mas se prepara colocando Genivaldo na alça de mira de sua carabina. Vicente, escondido atrás de um tronco de jatobá caído, sente o cavalo passando na estrada diante de si. “É agora”, pensa. Genivaldo percorre por mais uns vinte metros. Ronaldo, um pouco trêmulo, dispara. Naquele demorado segundo. Genivaldo ouve o silvo da bala passando próximo de sua cabeça seguido do som do disparo, seu coração dispara. Todos os sentidos em alerta. Leva a mão à cintura. Vicente dispara atingindo as costas de Genivaldo que ainda consegue sacar a arma e jogar o cavalo na direção do primeiro disparo. Mesmo ferido consegue efetuar um disparo ao mesmo tempo em que Ronaldo atira novamente e desta vez acertando o alvo no peito. Genivaldo cai no chão e o cavalo sai em disparada. Ronaldo mesmo ferido na perna se aproxima. Dispara mais duas vezes para garantir.
III
Aos dezoito anos, Ronaldo já ganhara bastante experiência em sua profissão, sempre orientado por Vicente. Às vezes executava serviços sozinho, mas geralmente acompanhava seu pai.
Desta vez quem sai sozinho foi Vicente. Chega ele à Fazenda Pedra Molhada, a convite de seu proprietário, Marcondes Lopes, sujeito corpulento, alto, já na casa dos cinqüenta anos. Vicente já sabia que ele queria encomendar um serviço. Cumprimentaram-se e se dirigiram para o pomar, ao fundo da casa, para que ninguém ouvisse a conversa.
- Quando cheguei por aqui, a mais ou menos trinta anos atrás, só se via mato e cobra. Era uma “quiçassa” danada. Hoje é tudo isso aí que você está vendo. Tudo limpinho, com lavoura e pasto pro gado. Tudo isso eu consegui com meu suor.
- É “seu” Marcondes, o senhor chegou aqui numa época boa. Hoje já é bem mais difícil. E pelo que estou ouvindo, o senhor está investindo na preparação da terra para o plantio.
Ouvia-se os motores dos tratores trabalhando na baixada, desterroando a terra. Na região, ele era um dos poucos que utilizavam esse sistema. Os demais, pequenos proprietários, utilizavam foice, machado, fogo e enchadão no preparo da terra.
- Mas não é fácil, diz Marcondes. Tudo isso custa uma fortuna. Eles levam todo meu dinheiro e meu lucro fica reduzido.
Vicente sorri, entendendo onde Marcondes quer chegar. Fica em silêncio, esperando que ele entre no assunto.
- Precisava dar um jeito de recuperar meu dinheiro. Foi onde pensei em lhe chamar. Esse pessoal não precisa dessa dinheirama toda – diz Marcondes, sinicamente – Eles não vão saber lidar com tudo isso. Esse dinheiro vai ficar bem melhor no meu bolso. É aí que entra você, Vicente.
- O senhor vai me desculpar, mas o roubo não é minha especialidade.
- Ora, você bem que podia dar um jeito de contornar esse problema e abrir uma excessão.
- É, mas meu tipo de serviço é outro. Tenho princípios.
- Façamos o seguinte: Você faz valer sua especialidade, como você diz, e como não vão ter como gastar meu dinheiro, você faz o favor de me trazê-lo. E, como pagamento, dez por cento dele vai pro seu bolso. O que me diz?
Vicente pensa por um instante e diz:
- cinqüenta por cento.
- Metade? É muito, Vicente. O serviço não vale tudo isso. É gente miúda. Sem riscos.
- Mas são três; o dono dos tratores e dois peões.
Marcondes reflete, já era tarde pra procurar outro que fizesse o serviço. O pagamento ao dono dos tratores seria feito dali a pouco, pois já estavam terminando. Questão de uma, duas horas no máximo.
- Vicente, vamos fazer o seguinte: trinta por cento e ficamos acertados.
Vicente acena positivamente com a cabeça. Acertam os detalhes, previsão de saída dos tratoristas, quando Vicente deveria trazer sua parte... Tudo acertado, Vicente sai.
Cinco horas da tarde, Marcondes está efetuando o pagamento aos tratoristas. Tomam café e se despedem. “Eles chegarão ao mata-burro em mais ou menos trinta minutos. Vicente despacha os três... Ele deverá chegar aqui às seis horas. Seis e mais no máximo”. Marcondes aguarda impaciente.
Seis e meia e nada. Sete horas. “Diacho! Será que alguma coisa saiu errado? Não... não creio”. Oito horas. Marcondes ouve o tropel de um cavalo. De olho na estrada ele aguarda. “Quem poderá ser? Vicente estava de carro”. O cavaleiro se aproxima da casa e assustado diz:
- Seu Marcondes... Seu Marcondes...
Era Manoel, proprietário de um sítio vizinho ao de Marcondes. E antes que Marcondes pudesse dizer qualquer coisa:
- Seu Marcondes, se sucedeu uma desgraça.
- O que foi Manoel, parece que viu assombração. Você está branco que nem um lençol.
E virando-se para o lado grita para a empregada:
- Lourdes, traga um esquenta tripa aqui pro seu Manoel. – e voltando-se para Manoel – Calma e me conte o que foi que aconteceu.
- Lá no primeiro mata-burro da estrada das Posses. Os tratoristas que trabalharam aqui pro senhor. Estão todos mortos.
IV
Dois meses depois, Ronaldo está sentado num tamborete, em frente a sua casa. Acende um cigarro e observa o movimento. Sente alguém se aproximar de bicicleta e muda de posição, caso represente alguma ameaça. O ciclista se aproxima. Ronaldo o reconhece logo, é um empregado da Fazenda Pedra Molhada.
- “Seu” Ronaldo, vim a mando de meu patrão. Ele que falar com o sinhô.
Ronaldo pensa por um instante, olha para os lados com o canto dos olhos e responde:
- Diz a seu patrão que estarei lá no início da tarde, logo depois do almoço.
O empregado sai sem dizer nada e retorna à fazenda.
“Humm! Algo me diz que tem a ver com aquela história dos tratoristas. Vicente não voltou pra entregar o dinheiro... e o que é pior: me tirou dessa jogada”. Ronaldo fica pensativo a manhã toda. E logo depois do almoço sai, dizendo que iria ver uns bezerros pra comprar.
Chegou à Fazenda quando Marcondes ainda estava almoçando.
- Ronaldo, meu rapaz, chegou na hora. Puxa a cadeira e senta – e virando-se para a empregada – Lourdes, traga um prato pro rapaz.
- Desculpa “seu” Marcondes, mas eu vou enjeitar. É que eu acabei de almoçar. Mas eu lhe acompanho no café, quando terminar seu almoço.
Ronaldo permanece na Fazenda Pedra Molhada por mais duas horas. Retorna a Bandeira Branca. Toma banho e prepara sua mochila de viagem.
- Vai viajar, Ronaldo? – pergunta Joaquina.
- Vou. Peguei um serviço pra fazer e não sei quanto tempo vou ficar fora.
- Não vai esperar o Vicente? Ele já deve estar voltando.
- Se ele não demorar. Vou sair no início da noite.
Ronaldo prepara tudo e aguarda.
Final da tarde, o Sol já começa a se esconder, quando Vicente chega. Ronaldo repete a história que contou pra Joaquina, e em seguida convida Vicente para um trago de cachaça, na porta de sua casa. Saem os dois, Joaquina fica preparando o jantar. Lá fora alguns conhecidos estavam por ali e Vicente os convida para lhes acompanharem na cachaça.
- Hoje vocês vão beber por minha conta.
E serve a todos.
- Um brinde a todos. Os que estão vivos e os que já foram desta pra melhor.
Terminado, Ronaldo serve novamente a todos e diz:
- Agora eu gostaria de fazer um brinde.
Ergue o copo de cachaça à altura da cabeça. “A surpresa. Com ela garanto metade da empreitada”. Pela cabeça de Ronaldo passa todos os ensinamentos de Vicente.
- Nada pessoal, continua dizendo como se falasse a todos, mas negócios são negócios.
Enquanto estão com os copos erguidos, enfia a mão no bolso da calça. Empunha um revólver calibre 38, e sem tirá-lo do bolso, dispara duas vezes, atingindo o peito de Vicente. Todos se afastam assustados. Ronaldo retira a arma do bolso e a descarrega no corpo de Vicente. Vai até o carro pega outra arma e dispara mais dois tiros pra garantir que um dia não voltem a se encontrar. Joaquina que ouvira os tiros, passara a mão na carabina a vem saindo de casa pra ajudar o marido.
- Você?! Seu desgraçado!
Dispara atingindo Ronaldo no peito e na barriga. Este cai e mesmo caído consegue disparar mais duas vezes, atingindo a cabeça de Joaquina. Ao final, os três estão caídos juntos, todos mortos.