A Ressurreição de um Anjo
A Ressurreição de um Anjo
“Anjo - Ponha suas tristes asas sobre mim
Me proteja deste mundo de pecados
Então assim poderemos recomeçar novamente
Oh, Anjo - Nós podemos, de algum modo, encontrar nosso caminho
Escapando deste mundo
Para o lugar onde tudo começou
E eu sei que encontraremos
Um lugar melhor para a paz da consciência
Diga-me, é tudo que você quer - para você e eu
Anjo por que você não me liberta”
Judas Priest
As árvores do bosque eram altas. Muitos pinheiros, carvalhos. O verde da relva, as sombras, o ar fresco das tardes e a escuridão da noite, além dos pássaros e insetos, eram suas fiéis e únicas companhias.
O velho construíra sua casa sobre uma pedra no coração do bosque. Toda em madeira. Dois quartos. Banheiro, cozinha, varanda. Tudo incrivelmente aconchegante. Suas mãos, experientes, adquiriram certas habilidades. De vez em quando acompanhava os pássaros ao som da flauta doce que aprendera a manusear na infância.
Atrás da casa a horta, farta, descansava ao som dos cantos selvagens e do sol. Seu sustento. A aposentadoria não era ruim, apenas a vida e a solidão. Quinzenalmente fazia compras na cidade. Coisas básicas como remédios, arroz e farinha. Fazia seus pães e, não raro, caçava para ter carne fresca que, quando salgadas, duravam semanas.
Acima das mais altas nuvens, no infinito, além da compreensão humana, a emanação do Poder, em seu trono dourado sobre o piso de diamante, ponderava. Observava sua obra prima, os humanos. O incrível salão, imenso como o próprio universo, era iluminado pela glória de Ellion. Distribuídos em formato de meia lua ao lado do trono do soberano, vinte e quatro assentos talhados em bronze puro polido, refletiam intensamente a glória do onipotente como vários sóis. Acima de tudo isso um fabuloso arco-íris prateado fulgurava constantemente.
À direita, o gigante oriental Kaleo expressou:
- Estás muito calado Ellion... – Os outros se entreolharam. Relâmpagos explodiram por trás do trono e serpentearam o aposento.
- Apenas observo bravo Kaleo, apenas observo.
Kaleo ajeitou-se no assento e comentou:
- O setor dos Amaquins necessitará de substituição. Era uma Hystari...
- Entendo e admiro sua preocupação, prezado amigo. Cada coisa a seu tempo. – Pronunciou com um olhar pesado, grave, a mão no queixo. - Ela foi insolente e insubordinada.
- Às vezes indago-me se a onipotência e a onisciência são dons ou maldições.
- São atributos complementares. Sem sabedoria não há poder. Sem poder não há vida.
- Entendo. Os humanos que criastes não o entendem.
- Nunca entenderão a plenitude dos meus atos, mas permito algumas vezes um vislumbre dos meus propósitos.
Kaleo calou-se. Ellion voltou para suas reflexões.
Sete da manhã, céu límpido, sol brilhante. As copas balançavam docemente sobre a brisa matutina como um balé ao som do canto das aves. O velho saiu da sua casa e respirou fundo. Esticou os braços, olhou para cima. Cerrou os olhos, fixou a vista ainda impressionantemente sã.
- Mas o quê...?!
O azul estava sendo cortado por um raio dourado brilhante fosco manchado de negro. Algo estava caindo dos céus num velocidade vertiginosa.
Desceu os degraus sem tirar os olhos do céu. Ouviu.
- Nãããããããããããoooooooooooooooooooo...
Um arrepio lhe percorreu a espinha espalhando-se pelo corpo.
Catabuuumm!!
O cometa vivo caíra ali próximo.
O velho firmou-se em seu cajado, que nada mais era que um galho envelhecido e trabalhado, nem precisava dele, mas gostava da companhia. Depois de uma breve catatonia e uma, nem tão breve, incredulidade, decidiu investigar.
Nas regiões celestes Ellion sorriu.
O velho encheu-se de coragem e um novo vigor lhe subiu ao peito. Não sabia o porquê, mas estava feliz.
Andou pela trilha do bosque. Passou pela clareira ao lado do riacho, depois adentrou à mata mais densa. Ao longe avistou um filete dourado subindo e evanescendo nas alturas. É ali! - Caminhou mais depressa.
Ao redor da cratera algumas árvores fumegavam, as flores murcharam e a relva queimou, dentro,uma forma humana alada jazia. Cabelos castanhos claros e brilhantes como fios de bronze polido, finos, lisos, fartos, escorriam pela bela face angelical. O corpo estava nu e emanava um fraco brilho dourado. As asas, que mais pareciam uma escultura em uma enorme pérola, estavam abertas numa envergadura de mais de três metros. O corpo era perfeito, nenhuma mancha, macio, forte, rijo emanava um tênue brilho dourado. Mas abatido, recompunha as forças.
Estarrecido o velho tentou compreender.
Abaixo das árvores chamuscadas a imagem era aterradora e bela. Maravilhosa e assustadora. Desconhecida. Incompreensível. Mas perfeitamente aceitável.
Kaleo olhou para Ellion. Olhar devolvido. Ambos se concentraram.
O cajado caiu. O velho desceu. Com a voz e as mãos trêmulas:
- Olá...
Nada.
- Você está bem? Consegue me entender?
Um fraco movimento nos dedos e asas.
- Oi... posso ajudar?
O velho empurrou a asa esquerda para conseguir chegar mais perto. A outra se fechou. O ser apoiou-se nas duas mãos empurrando o tronco para cima, os cabelos escorriam para baixo. O velho estacou.
O angélico virou-se. Encontraram-se num olhar firme. Uma brisa acariciou as faces e as finas madeixas balançaram suavemente. O rosto era de uma beleza não humana. Os olhos amendoados eram verde-claros, incríveis como duas pequenas lagoas cristalinas numa ilha paradisíaca, como esmeraldas diamantadas brilhavam. Profundos, perscrutadores, os cílios grandes e negros realçavam incrível beleza dos olhos que emanavam uma inteligência assombrosa. A pele branca opaca emanava uma pequena luminosidade dourada sob a lisura e maciez. Lábios perfeitos, carmesins, selavam uma dentição igualmente perfeita e branca como marfim.
- Sou Aysar. Vim do Reino Celestial, casta dos Hystaris, setor dos Amaquins. Banida por Ellion, amparada por Zyon, senhor da Terra. Agradeço seu interesse. Diga-me, quem és? – Um timbre celestial e suave o acolheu.
Com certeza acordaria suado e esfregando os olhos. Mas isso não aconteceu. Incrivelmente percebeu-se mais forte, mais saudável. De repente uma pontada na alma, uma voz que há muito não o atormentava. Sua razão insistiu para que se calasse. Mas ao ver o que viu a voz interior o atormentou ainda mais.
- Eh... Oi... Meu nome é Andros. Moro na floresta. Vi você caindo e gritando. Está ferida? Precisa de ajuda? Minha casa é aqui próxima, ofereço abrigo, água, algo para comer...
Aysar apenas sorriu.
Andros aproximou-se ajudando-a a se levantar. Trêmulos caminharam.
Na mesa, colocou pães e queijo caseiros, manteiga, geleia, leite, ovos, suco e café. No fogo um espeto com carne fresca dourava.
Conversaram sobre os reinos celestiais e sobre a vida na Terra.
- ...vim de um lugar dourado e muito iluminado. Meu criador e senhor chama-se Ellion. Amoroso, mas justo e correto demais. Por eu ser a mais inquiridora das suas criaturas zangou-se. Discutimos. Baniu-me. Zyon, seu irmão, senhor e mantenedor da Terra me aceitou e propôs a minha morada. Nós, os Hystaris, somos uma casta nobre de poucos, o banimento é o maior castigo para nós. Mas Ellion é o senhor e a decisão dele jamais é contestada. Aceitei. Zyon, por misericórdia me aceitou...
- Triste... Mas para mim... uma incrível experiência... um anjo na minha casa!?
- Para mim, um tanto diferente, percebo o mundo de outra forma. - O velho sorriu. A voz voltara. Insistente.
Ela olhou-o com profundo interesse. Lendo sua aura. Percebeu muita angústia. Muita dor acumulada, desprazer, lembranças extremamente pesadas. Desejava esquecê-las. Mas persistiam. Ela não sabia, mas houve negros momentos num velho orfanato; tristeza; angústia. Sentia que havia algo mais. Indefinível e pesado.
Decidiu se calar para respeitá-lo.
- É muito bom ter companhia Aysar. Muito bom...
Sorriram.
Ellion não se agradou muito das atitudes do seu irmão, senhor da Terra.
Andros preparou para ela o quarto que estava vago. Trocou as roupas de cama, limpou tudo. Aysar acompanhou todo o processo com muito interesse.
Alguns dias se passaram e Andros percebia que sua força estava aumentando, um novo vigor se apoderava de seu corpo cansado e solitário. A presença do ser angélico estava rejuvenescendo-o aos poucos. “Isso é bom não é meu amigo?” - O duplo de novo. “- Podemos fazer alguma coisa juntos desta vez...” - Sorriu.
Ela era perfeita! Linda, interessada, meiga, amiga, diferente. De uma feminilidade impressionante. Conversavam sobre tudo. Aprendeu rapidamente a cuidar da horta, jogar xadrez, fazer comida, caçar. Tudo com muita presteza.
Um raio de sol aconchegante e suave brilhando no velho coração acostumado a ficar só.
- Zyon, irmão! Aceitaste a banida hystari em seus domínios. Vês o que está acontecendo?
- Sim Ellion, meu irmão. Vejo e aceitei-a sim.
- Com autorização de quem? Eu sou o onipotente não você!
- Ellion, no meu reino eu comando. O domínio celestial é seu e ninguém contesta. O terrestre é meu e lá o onipotente sou eu!
- Você deve bani-la de lá. Enviá-la ao limbo. Lugar dos insubordinados e arrogantes!
- Ellion, eu o respeito como a um príncipe, mas discordarei de ti. Jamais a banirei, a ela dei abrigo e cumprirei minha palavra.
Ellion levantou-se ardendo em fúria e a sala do trono foi engolida por uma luminosidade intensa e ardente. Vários seres celestes foram arremessados como fogos de artifício explodindo no azul-dourado. O Reino Celeste e todo o Universo tremeram ante a voz trovejante e irada do onipotente contrariado.
- COMO OUSA DESAFIAR-ME, INFAME?!!
Zyon não se abalou. Conhecia o temperamento do irmão. As vestes de ambos esvoaçavam como cortinas vivas. O vento iluminado jogava os longos cabelos de Zyon para trás. Teve de firmar os pés ante a brilhante onda de choque.
- Ellion, entenda, assim como você, eu nunca volto atrás em uma decisão. Honrarei minha palavra.
- BANILO-EI PARA FORA DO REINO CELESTE ZYON!! AQUI VOCÊ NÃO É MAIS BEM-VINDO! VOLTE PARA SEUS DOMÍNIOS E NUNCA MAIS ENTRE NOS MEUS E NEM NOS SETE REINOS!! A PARTIR DE AGORA ISOLADO ESTÁS NO SEU REINO!
Uma explosão atômica ocorreu. Os céus se abalaram. Zyon voltou à Terra.
Aysar parou. Sua pele brilhou, a nuca eriçou. Arremessou-se para fora como um raio branco e prateado. Pairando no ar com as asas abertas olhou os céus. Contemplou a explosão da fúria do onipotente como pesados trovões numa enorme tempestade. Seu interior tremeu como o restante do universo.
Zyon era mais ponderado que o irmão, mas zangou-se pela injustiça do aclamado como justo e reto. Já em seus domínios permaneceu calado. Cerrou os punhos, seus olhos fumegaram, a Terra tremeu. Placas tectônicas se moveram, o núcleo da Terra parou por uns instantes, instrumentos de navegação enlouqueceram, a camada protetora do planeta abalou-se. O satélite terrestre escureceu. Explosões solares se intensificaram. Os mares se agitaram. Várias criaturas correram, voaram, esconderam-se. Em vários lugares houve tremores, furacões, erupções vulcânicas, tempestades e ventanias assustadoras. O planeta se abalou. Os sete reinos sentiram a fúria dos grandes. Manthas, em seu trono de gelo, apenas sorriu olhando para cima.
Andros sentiu um vento muito frio adentrar. Olhou pela janela e percebeu a mudança climática, esfriava rápido demais. Há anos não nevava. “O frio virá sem piedade dessa vez.” – Pensou.
Pairando, quieta, contemplava o céu.
- Aysar? Você está bem?
Silêncio.
- Aysar...!? – Nada. Permaneceu do mesmo jeito.
Andros, voltando para dentro, colocou carne para assar.
Momentos depois ela entrou calada. Jantaram calados. Foram dormir calados.
O frio aumentou de madrugada. Ouviu-a gemer. Decidiu ir ver se precisava de alguma coisa. Passava frio e encolhera-se. Ao olhá-la seu peito ferveu. Algo quente, saboroso, amedrontador. Um prazer surgiu na alma formoseando o rosto. Aqueles cabelos bronzeados, aquela pele branca brilhante, aquela boca perfeita, aqueles olhos verde-água, o corpo escultural. Uma deusa, uma rainha dos céus. Permaneceu parado ali por alguns minutos tentando compreender o significado de tudo aquilo. Algumas rugas desapareceram. Não tinha mais cabelos brancos. Mas, castanhos como seus olhos, e longos, preso por um rabo-de-cavalo. “Que coisinha hein chapa! Maravilhosa cara!...” - A voz de novo. - Uma oportunidade única não é camarada? Como será hein?! Uau! Deve ser fabuloso, não acha?”
Ignorou. Estava com um sentimento maravilhoso! Que emoção fantástica! Impulsionado deitou-se ao lado dela. Abraçou-a. Ela abriu os olhos e sorrindo o enlaçou.
As respirações profundas, rostos se acariciando. O aroma angélico, inebriante. Único. Até a respiração era aromática. Ofegantes. Mãos fumegantes nos corpos em chamas. Corações latejando. Lábios se tocando, línguas, corpos intensos, arquejantes... .
Andros acordou primeiro. Olhou-a. Inacreditável. Estava ali mesmo. Dormia como um anjo! E ele com um!
“Uau! Chapa, ... você é o cara!!” - A voz novamente - “Num minuto, sozinho, no outro... Há! Você é o cara!! Tem que me soltar bicho! Imagine nós dois unidos nessa empreitada?! Hein, Hein?” – “Ora! Cale-se! Deixe-me em paz! Com ela não! Com ela... não...” - Sorriu - “Por que... não?” – É Andros, por que não? Hein camarada? ... Solte-me ...” - A última palavra foi sussurrada pausadamente.
Acima das mais altas nuvens, no trono celestial, um arco-íris multicolorido estendia-se fabulosamente e, sem parcimônia, despejava gumes prateados. Tudo extraordinariamente iluminado.
Embaixo, nas regiões inferiores, no seu trono de gelo perolado e límpido como diamante, Manthas, o senhor das sombras e do medo, príncipe do Abyssos olhou para cima. Acompanhava tudo em silêncio. Não podia sair dali, pelo menos ainda não. Lá em cima, seu primo, sentado no trono, estava pensativo e não queria ser incomodado. Zyon estava em seus aposentos cristalinos e também pensava entronado em diamante puro em cima de um piso do mais sublime ouro. Os grandes estavam rodeados por seres angelicais magníficos, poderosos, firmes; guerreiros; mensageiros; sábios; anciãos.
Aysar nunca pensou que abalaria tanto os reinos etéreos e o dos homens. Algo inédito acontecera.
A ave planava como os flocos de neve que começaram a cair. Seu voo era silencioso como o brilho das pedras preciosas. As penas brancas balançavam graciosamente ao vento. Pousou silenciosamente na árvore em frente à casa de Andros. Geralmente entrava, mas estava tudo fechado. Ficou ali. Arrulhou algumas vezes para chamar a atenção de seu amigo. Nada.
O silêncio foi quebrado na mesa do café.
- Adorei ontem. – Cantou Aysar olhando-o. Olhar profundo, magnífico. Jamais ele recebera um olhar como aquele em toda sua vida.
Andros apenas sorriu. A voz voltara - Cale-se! - Disse para si mesmo – Não farei isso! Com ela não!! – Ainda não... – Revidou profeticamente.
Depois da pequena peleja interna conseguiu responder:
- Eu também. A única mulher que saiu comigo... meu Deus, foi há trinta anos!... - Levantou-se lentamente sem tirar os olhos dela. Seguiu-o com os olhos - Deixe-me tocá-la... Preciso verificar se você é real! Sinto-me como um menino depois de ganhar um brinquedo novo. Ainda não acredito... – Agora era a vez dela sorrir.
Para mim Andros, a experiência foi fabulosa. Nunca senti nada parecido. Não imaginava que o ser humano, pelo que estudei, podia sentir e dar tanto prazer. Admiro a sabedoria de Ellion. Tenho conhecimentos profundos sobre muita coisa, mas nunca me aprofundei nesse tema. Nesse momento uma sombra cobriu o rosto de Andros, ficou taciturno, quase calado. Expectorou gravemente.
- Temo uma coisa Aysar...
- O que temes?
- Você partir. Você não é deste mundo! - Olhou-a gelidamente. O duplo sorriu. A jaula em que estava aprisionado rachou. Ela sentiu a aura de Andros tremer e ficar negra. Sem abalar-se soltou:
- A Terra agora é o meu lar Andros. Você me socorreu, por que eu simplesmente iria embora? Sou um anjo, penso, ajo e sinto diferente dos humanos. Não deixei de notar, Andros, percebi que sua pele está mais jovem. Fico feliz em estar te fazendo bem. Bem, eu sairei sim, visitarei Zyon, Manthas e Kleffon, mas voltarei. - Levantou-se da mesa e caminhou devagar em direção a Andros que estava encostado na pia. Chegou bem perto do rosto, reparou que a aura alaranjava-se novamente. - Depois que me abraçou ontem na cama, fizemos algo com a boca que gostaria de fazer novamente. Como este gesto se chama?
- Beijo... - Aquela respiração aromática era irresistível, a pele de brilho dourado... “Cara! Imagine só eu solto ao seu lado... Seria a glória Andros, a glória meu chapa!!”
- Beijo - Aysar sussurrou abaixando a cabeça. - Então, quero te dar um beijo.
Beijaram-se demoradamente.
Lá fora abriu as asas. Iluminou-se mais. Olhou para ele e sorriu. Subiu como um cometa deixando um rastro prateado entre os flocos finos de neve.
Olhando-a se afastar ouviu um arrulho.
- Oh! Olá Lamya! Você voltou! - Esticou o braço para a coruja da cor da neve pousar. – Venha, vamos comer algo. Tenho carne fresca para você minha cara. Aliás, fazia tempo que não vinha hein? Por onde andou?
“Idiota! Deixou-a ir embora! Ela jamais voltará imbecil! Você é um fraco, deixe-me sair! Controlarei melhor as coisas...” - Não! - “Ah! Você permitirá, cedo ou tarde sempre venço...” – A luta estava grande. Durante anos prendeu-o dentro de si. Ele era mais forte, mais seguro, mais maligno, mais feroz, vingativo e sedento de sangue. Uma fera aprisionada se enfurece e quando se solta...
O primeiro dia sem a presença dela. Sentiu.
“Vá até a cidade imbecil, na livraria há algo sobre anjos. Use o que tem de melhor, a minha inteligência! Ô Satã dos infernos!!!”
No ano passado o duplo se desprendeu. Torturou e matou vários animais, nunca pessoas. Um resquício de misericórdia o fez salvar e cuidar de um filhote de mocho, hoje crescido e belo. Chamava-a de Lamya. Outros morreram cruel e friamente. Apreciava o sabor do sangue quente, fresco. Usando uma vasilha colhia-o dos animas abatidos. Regularmente apreciava a bebida. Sua ambição: experimentar o sabor humano. Ah! Seria a glória... A voz tinha sumido, mas quando conheceu Aysar... Emergiu como um raio diabólico.
Foi até a cidade. Na biblioteca leu sobre anjos e descobriu coisas muito úteis.
Ellion agora sorria.
Zyon permanecia calado como Manthas.
Andros lacrou todas as janelas do quarto de Aysar. Desenhou símbolos angélicos e escondeu-os com panos. Talhou em sete gomos da corrente e no cadeado o nome dela. Selou tudo com sangue. “Nunca mais irá me deixar novamente...”
Tomava vinho curtindo o crepitar na lareira. Lá fora o meigo farfalhar de asas. Seu coração disparou. Ela voltara. O prazer em vê-la novamente. Tê-la em seus braços. Aprisioná-la. Tê-la somente para si! Um troféu e tanto! Valeu a pena esperar... “Como valeu hein chapa!” - A jaula rompeu-se – “Quem diria?! Que presente dos deuses! Sinto-me o próprio Perseu! Há! Deve ser saborosíssima cara! Quente... Como será a textura hein? E a cor?...”
Levantou-se e foi lá fora. Encontraram-se. Sorriram. Beijaram-se intensamente.
- Você está bem?
- Sim estou, e você?
- Melhor agora, com seu retorno. - Disfarçou. Ela percebeu que sua aura estava fora de lugar. Nunca vira algo semelhante e não compreendera de imediato. Decidiu pensar nisso depois.
- Senti uma emoção estranha. Inexplicável. Era como se fosse algo corroendo meu ser. O que acha que é Andros?
- Você sentiu saudade Aysar. Chama-se saudade.
- Saudade... – Sussurrou e sorriu. – Senti saudade então... de você, de sua comida, deste lugar, da nossa cama, do seu calor. Desejo comer contigo perto da lareira, depois... você sabe.
Andros apenas sorriu.
Ela dormia profundamente. Estava exausta. Viajara muito.
Andros levantou-se bem devagar. Desenhou os símbolos angélicos no umbral da porta com seu próprio sangue. Talvez não precisasse das correntes. Mesmo assim deixou-as à mão.
Zyon poderia intervir, mas decidiu manter-se neutro. Por enquanto. Sabia que seu irmão estava adorando tudo aquilo. Punir aquela inconsequente era a glória para ele. Manthas manteve sua postura gélida como sempre. Apenas observava. Sem dar opinião ou se meter. Era senhor das almas perdidas, dos anjos caídos, das sombras, das doenças e da morte. Dominava as regiões inferiores e raramente interferia nas atividades humanas. Havia séculos que não falava com seus parentes.
Andros foi caçar. Antes que a neve não o permitisse.
Aysar acordou. Ainda deitada viu e sentiu mais sombras que o normal. Algo estava errado, terrivelmente errado. Um aperto no coração, um frio no âmago do seu ser, outrora iluminado e cálido. Atmosfera, gelada, silenciosa. Demais. Levantou-se devagar olhando para os lados. Estremeceu. Abriu as asas de pérola, ergueu a cabeça, fechou os olhos, respirou profundamente. Concentrou-se. Nada. Total silêncio. - “Não pode ser...” – Abriu os olhos. As asas fecharam-se lentamente enquanto a cabeça olhava ao redor. “Não ouço, não sinto mais... os reinos... os meus... o universo”. Algo cresceu em seu peito. Subia lentamente até a garganta, algo sufocante, a respiração profusa, os pensamentos atropelavam-se numa confusão medonha. Sentiu-se como se fosse rasgada como uma folha de papel. Olhou os punhos cerrados através das pesadas e salgadas lágrimas. O brilho dos hystaris estava opaco. Era como se a vida mexera no botão de contraste, nublando. Abriu as asas novamente. Flutuou alguns centímetros e desabou como se estivesse caído no escuro, gélido e podre Tártaro. Chorou. Ajoelhada com as mãos segurando o peito, asas abertas e trêmulas... clamou...
Ellion a ouviu em silêncio.
Aysar levantou-se ofegante. Foi aí que reparou.
Andros abatera um alce. Belo animal. Caçava com entorpecentes. Assim a caça estaria bem viva quando começasse a prazerosa tortura. Gostava de usar a faca. Lamber os ferimentos infligidos. Amava o aroma e sabor de sangue fresco, quase pulsante e quente de vez em quando. Em uma caçada anterior abateu um lobo. Usou uma chave de fenda e um martelo para abrir, aos poucos, a cabeça do infeliz animal que uivava e chorava.
A presença angélica em sua casa era uma benção, seu rejuvenescimento veio a calhar. Sua força aumentara. Bem como sua destreza. Estava adorando tudo aquilo. Ellion também. Zyon nem tanto.
“Você não fez isso Andros... não fez...”
Aquilo não podia estar acontecendo. Realmente o ser humano era a pior espécie. Capaz de ferir até quem o auxilia, capaz de enganar a quem lhe abençoa, capaz de matar os amigos, família, todos. Capaz de tudo por interesse, orgulho e prazer! Olhou para cima e duvidou se Ellion tivera uma boa ideia oferecendo à raça humana o livre arbítrio! Dirigiu-se até a porta. Estava aberta. Ao tentar atravessar, catablam! Uma descarga elétrica a atingiu arremessando-a para trás como uma boneca de pano. Bateu contra a parede oposta. Não se machucara, mas, como Pedro depois de negar Cristo, chorou amargamente encolhida.
Assobiando, Andros retornava para casa arrastando sua inconsciente presa. Imaginou que ela já estaria acordada. Levou o alce para o pequeno celeiro ao lado da casa. Aysar ouviu-o chegar. Ficou em silêncio.
A porta da frente abriu-se.
- O que fizeste? Por quê? Qual sua intenção?! - Soluçou.
Ele a fitou sem alterar a fisionomia. A fera estava solta novamente.
Ela o fitou transtornada. Havia algo errado com a aura dele. O olhar também não era o mesmo. Aquele não era Andros, não o homem que que a acolhera depois da sua queda no bosque há algumas semanas.
O brilho dourado de sua pela estava agora avermelhado e com sombras negras. As lágrimas prateadas não alcançavam o chão, evanesciam no ar. Como todo o sentimento que nutriu por ele. Ele ainda a olhava. Gélido. Seco. Insensível.
- Não posso permitir que se vá. - Pronunciou calmamente.
- Andros, um ser angélico não pode ser preso assim... você... você não precisa me prender! não irei embora, quero e gosto daqui... de você... - Lamentou.
- Não a soltarei Aysar.
Ela respirava profusamente. Encarava-o. Fechou os olhos, concentrou-se e tentou ouvir a voz de Zyon. Até mesmo a de Manthas. Não conseguiu. Abriu os olhos incrivelmente verdes. Agora com a íris avermelhada com pontos negros ao redor. Outras emoções estavam emergindo. A fúria. O desgosto. O sabor amargo da decepção.
Ele saiu. Foi ao celeiro. O alce deveria acordar em breve. Amarrara-o firmemente em cima da mesa de madeira maciça coberta por um plástico. Apanhou uma enorme faca. Afiou-a ainda mais. Assobiava. Lambeu a lâmina. A ideia lhe ocorreu quando pegou a caneca. “Por que não...?!” - Sorriu maldosamente. “Uau! Seria interessante...” - Tamborilou os dedos na caneca de alumínio. Como faria? Precisava raciocinar um pouco. Mas a ideia era fascinante! Sua alma jubilava.
Ellion já não sorria. Zyon muito menos. Manthas deixou um sorriso enviesado escapar. “Seres humanos, nunca mudam...” - Pensou.
Ela estava sentada no centro do aposento de costas para a porta. Com a cabeça encostada nos joelhos segurados pelos brilhantes braços. As asas abertas pareciam cortinas velhas e soltas. Estava triste. Muito. Ouviu um estampido seguido de uma picada nas costas. Virou-se. Viu Andros alvejando-a com uma arma. Mais um tiro. Sua visão turvou. Seus sentidos estavam indo embora. Mais um tiro. Desabou.
Na cintura a faca reluzia como o alumínio da caneca nas mãos. Dentro de si algo também brilhava. Bem como seus frios olhos. Chegando perto do ser inerte se ajoelhou. Empunhou a faca. Brilhou mais ao se aproximar da luminosidade angélica. Brilho ofuscado pela mancha rubra que escorreu do corte profundo na coxa esquerda. Encaixou a caneca abaixo do ferimento e apertou. Sorriu. A caneca foi erguida com mãos trêmulas. Com as mãos trêmulas ergueu a caneca. O líquido tocou os lábios seu corpo todo recebeu uma espécie de choque elétrico. Impressionante o sabor, textura, calor. Magnífico! Surreal... Bebeu tudo sentindo cada gota de prazer. Queria mais. O ferimento cicatrizou. Abaixou-se para cortar novamente.
Repetiu o ritual três vezes. O líquido sendo absorvido pelo metabolismo em erupção. As pupilas se dilataram. As veias ferveram, o coração acelerou. A mente se abriu. Os músculos rejuvenesceram e cresceram. A pele deixou as rugas e a fraqueza. Cicatrizes desapareceram. Êxtase. Sorriu. Gargalhou.
Aysar ainda estava desacordada, a glória dos hystaris havia diminuído drasticamente. O corpo outrora maciço e rijo estava flácido, magro e acinzentando-se aos poucos.
Zyon olhava tudo aquilo com tristeza. Fez o coração do alce parar e sua carne apodrecer. Queria fazer isso com Andros, mas não podia. Ainda.
A nevasca aumentou.
O soberano da Terra se ergueu. Seu manto de magma explodiu em chamas prateadas. Olhou para cima e subiu como um raio, fez um arco precipitando-se para baixo como um míssil. A explosão foi nuclear quando o chão de cristal foi atingido. Os seres eternos cobriram o rosto ante a energia desprendida pelo golpe. O palácio todo tremeu. Lava prateada explodiu por todas as janelas, paredes e piso, desaparecendo em segundos. Depois o silêncio dos olhares trocados.
Um majestoso cometa prateado explodiu na entrada do mundo inferior. A escuridão correu para longe ante a glória de Zyon. Seu manto do tamanho de um 747 esvoaçava salpicando magma prateado por todos os lados. Criaturas negras se escondiam. Bastava uma gota para desintegrá-los. A entrada do palácio de Manthas era fortemente guardada por enormes criaturas dos infernos. Em cada mão um machado. Nas costas, espinhos do tamanho de postes, pingavam ácido peçonhento. O cometa prateado atingiu o chão enegrecido da ponte na entrada do castelo de gelo negro. O impacto seguido de outra explosão arremessou os quatro guardiões contra as rochas limosas.
As paredes escorriam veneno e sombras. O chão era liso e preto brilhante. Embaixo criaturas nadavam num mar apodrecido e escuro. A cada pisada de Zyon o ambiente se iluminava. As criaturas das sombras se escondiam ante a luminosidade prateada das passadas do deus. Manthas estava em seu trono escuro rodeado por tochas com fogo enegrecido. Aguardava pacientemente seu primo.
Um exército de gigantes alados pousou ao lado do senhor da escuridão. Zyon não parou.
Bylos, uma criatura maior que um prédio de quatro andares, saiu das sombras, pousou com um baque alguns metros na frente do ilustre visitante, nas mãos uma imensa cimitarra fumegante. Sorrindo a jogava de uma mão à outra. Levantou a arma, correu a passos largos e fortes. As pisadas estremeciam o ambiente. Manthas sorria. Zyon continuou seu caminho, incólume. Bylos estava pronto para partir o oponente ao meio. A um olhar de Zyon a espada se dissolveu no ar como vapor. O senhor da Terra e dos mares, sem diminuir os passos, ergueu a mão direita e agarrou o demônio pela garganta. A mão do deus parecia um aríete de aço. Bylos debatia-se como uma ave sendo estrangulada. Foi arrastado como um saco de lixo. Zyon nem diminuiu o passo. Jogou-o aos pés de Manthas. Bylos tossia, cuspia enxofre segurando a garganta queimada. No centro do seu ser um fogo o consumiu, guinchou, urrou enquanto seu corpo se dissolvia em fumaça enegrecida e fétida. Caíra no esquecimento...
- A hospitalidade dos seus domínios parece ter diminuído Manthas! – Bradou Zyon parando na frente do gigante senhor daquele lugar. - Da próxima vez, poupe a vida dos seus lacaios.
- Desobedeces Ellion Zyon... Está proibido de visitar os Reinos... Quanto a Bylos, diversão primo, apenas diversão. Sei o que queres senhor da Terra. Agora, pergunto-te, qual será minha recompensa? –
- Não o desobedeço. O onipotente não tem o direito de me proibir de nada, Manthas. Diga-me, o que querereis em troca de um favor, senhor da escuridão?
- Uma saborosa taça de um bom vinho vermelho!
- Desabarei os céus sobre os filhos de Ellion. Cuspirei fumaça e enxofre sobre suas cidades!
- Enviarei seis arautos meus, o pagamento é pouco.
- Servirão. Envie-os.
Manthas olhou para baixo e chamou um dos seus líderes:
- Kaykron! Convoque Zaphyron! - A lesma pegajosa fez uma mesura e desapareceu. Em segundos um ser com corpo de serpente apareceu e curvou-se ante aos deuses.
- Zaphyron, reúna cinco dos seus e obedeça a Zyon, meu primo. Vá!
A serpente de Manthas meneou a cabeça e fez uma mesura aos dois, esgueirou-se para baixo desaparecendo numa névoa esverdeada e podre. Convocou outras criaturas negras, aladas como morcegos, peludas, com garras, chifres e presas, babavam. Um deles, Chidd, tinha espinhos gosmentos por todo o corpo, meio amarelado, meio verde, cores da doença e da morte, parecia um verme grotesco, deformado e nojento. Inclinaram-se ante a presença aterradora de Manthas. Era enorme, um gigante com cara de leão, cabeleira farta e negra como a noite, olhos sem pálpebras, sem pupilas, dois rubis bulbosos, corpo maciço como um gladiador dos infernos, seu manto, com vida própria, negro e escarlate, ocupava grande parte do aposento esvoaçando o tempo todo. Imponência e orgulho eram seus maiores atributos. Ninguém o desafiava. Não em seus domínios.
Zyon cumprimentou o primo com um aceno de cabeça. Virando-se explodiu em raios prateados. Voltara para seu palácio
Os seis agora estavam na presença dele.
- Essas são suas ordens Zaphyron. Agora vá.
- Sim, meu senhor. - Sibilou. – Vamos chacais! Temos uma missão a cumprir. - Zaycran, Meyphos, Apolyon, Shaygra e Chidd o seguiram deixando um rastro gosmento e negro. Logo absorvidos pelo cristal reluzente da sala do trono.
Aysar acordou. Ainda debilitada.
- Aqui está seu almoço querida. Alimente-se. Precisará. - Trouxera carne, ovos, arroz, legumes e vinho.
Ela o encarou com olhos tristes. Faminta, comeu. “O que fizeste?” – Pensou – “Por que ages assim Andros? Por quê?” - Tentava digerir a realidade.
Lá fora a neve e o frio castigavam a região. Andros percebeu que algo estava errado. Sua visão começou a pregar-lhe peças ou realmente estava vendo coisas? Ao longe avistou , o que a princípio, pareciam urubus. Mas esses bichos não voam na neve. Eram grandes demais para serem pássaros. Forçou a visão. Viu a cara das criaturas que investiam planavam em direção ao bosque, à sua casa. A velocidade era assombrosa. Preocupou-se. Um a um os mensageiros de Manthas pousaram nas árvores logo na entrada da residência. Permaneceram ali. Quietos. Fitando-o com interesse. Entreolhavam-se, menearam as cabeças em concordância. Fitaram-no novamente. Babaram. Lamberam os lábios, sorriram. Eriçaram os lombos, abriram as asas. Andros, paralisado, só olhava.
Aysar levantou-se. Emagrecera. O brilho de sua pele a deixou. Olhou suas mãos. Estavam quase ossudas. Sua pele enrugara um pouco. Estava adquirindo um tom acizentado. No centro do seu corpo algo ardia, sem incômodo, apenas estava quente. Suspirou. Refletiu.
Os signos angélicos limitavam não somente seus movimentos, mas sua força, habilidades e poderes. Sugavam-na. Vampirizavam-na aos poucos e constantemente. Em sua essência ainda era um anjo. Aquilo não lhe podia ser tirado. Olhou sua coxa. Curada, mas sabia o que ocorrera.
Chorou.
Andros andando de costas bem devagar entrou em casa. Trancou a grossa porta colocando a trave. Ela olhou-o preocupada. A passos lentos aproximou-se da porta. Ele a encarou.
- O que houve Andros?!
- Parece que alguns amigos seus estão lá fora.
- Como eles são?
- Negros, peludos, alados, presas e olhos ameaçadores...
Olhando para o chão sussurrou:
- ... Manthas ...”
- O quê? – Expectorou aproximando-se da porta.
Olhou-o.
- Arautos de Manthas. ... Ainda não atacaram... Deve ser Zyon... Você mexeu com forças além da sua compreensão Andros... - disse aproximando-se da porta - São perigosos. Nunca atacariam um Hystari como eu, mas estou em outros domínios agora e, presa aqui... Andros, deves libertar-me...
- NÃO! Não a libertarei! Você é minha!
- Você não pode com eles, com nenhum deles. Ainda não atacaram, acredito que por intermédio de Zyon. Manthas é o senhor dos infernos, mestre da escuridão e do mal. E eles são seus arautos, o senhor deles os soltou por algum motivo, pois não faz nada sem planejar. É um estrategista por natureza e sua inteligência é notável. Liberte-me Andros...
- Eu não a libertarei, Aysar, não a libertarei. Você é minha...
- Andros, você não precisa fazer isso. Faria tudo que me pedisse ou desejasse. Sem a necessidade de me ferir ou me aprisionar...
Ele entrou no quarto e beijou-a intensamente.
Os arautos ainda estavam lá. Parados, olhavam. Apolyon entrou e pousou em cima do porta-panelas. Ficou parado observando a porta do quarto, asas abertas, baba pingando sem atingir o chão. Olhos pingando labaredas roxas.
Andros sentiu um cheiro horrível no ar. Ao passar pela porta deparou-se com o Apolyon encarando-o.
- O que faz aqui criatura dos infernos? Sai imediatamente! – Bradou.
Apolyon continuou incólume. Encarava-o friamente.
Aysar apareceu na porta. Os pelos do arauto se eriçaram. Os chifres de bode fumegaram.
- Henna akybion Apolyon? – Ela perguntou na linguagem angélica. Andros olhava-os espantado e começando a se irritar.
- Uka den hir maelak, Hystari, glen akybion suli ar den, ha. Agu bend or, atnem buli kirr bali den. Bali den. Zyon agra culi baal Manthas. Glen abika hir den. Bali den. – Rosnou o monstro com uma voz gorgolejante e grave.
- Adi ben dir. - Ela respondeu. - Adi ben dir Apolyon.
- Que porra é essa Aysar?! O que... o que vocês falaram?
Ela apenas o olhou. Enfurecido saiu. Fora ao celeiro, precisava de sua arma. Fora averiguar se o mau cheiro vinha de lá. Quando entrou deparou-se com uma massa quase líquida em cima da mesa. O fedor era insuportável. Incrédulo, viu que o alce já não existia mais. Pegou o plástico pelas pontas e tentou embrulhar a podridão que escorria para o chão. Com muito esforço conseguiu. Arrastou aquilo para longe e atirou no penhasco. Estava escurecendo. Incrivelmente estava sem fome. Sentia-se muito bem. Mas estava com sede. Sede do sangue angélico. Queria mais...
Ela sabia.
Entrou no quarto com a faca nas mãos. Os seis estavam no telhado.
- Andros, continuo sendo um Hystari, mesmo banida do meu reino. Os da minha casta não temem nada e nem a ninguém. Não precisa atirar em mim de novo. Darei meu sangue a você. Estenda a jarra, sirva-se. - Com a unha da mão direita cortou o pulso esquerdo.
Ele sorriu.
Não conseguia odiá-lo.
De madrugada Aysar emagrecera ainda mais. Novamente olhou as mãos, estavam mais secas, menos firmes. Manchas negras começaram a aparecer. Mesmo sem poder sentir o mundo espiritual sabia que seria ouvida. Que seu pedido não seria negado.
O chão do quarto explodiu em diamantes. Uma luz branca ofuscante brilhou. No meio uma figura reluzente em prata apareceu.
- Zyon! - Alegrou-se.
- Olá Aysar. Você foi acolhida por um humano. Infelizmente não por um bom representante da raça. O que aconteceu é inédito. Ninguém fez nada igual em toda a eternidade. As leis espirituais não podem ser desafiadas, as consequências são inevitáveis. Mesmo banida por Ellion, você continua imortal, mas dividiu alguns atributos angélicos com um ser mortal. Dar seu próprio sangue para outro beber deveria aniquilar sua eternidade e sua memória cairia no esquecimento límbico. Mas, a intenção, a motivação que encontraste para fazer o que fez, causou outro efeito. Ficará deformada, definhará, mas não morrerá.
Ajoelhada, só ouvia seu senhor.
- Os arautos estão aqui por ordem minha. Não é a eles que deves temer. Tema a si mesma Aysar. A si mesma. Quando estiver pronta eu a ajudarei, você ainda tem tempo.
Outra explosão. Zyon foi embora. Ela ficou ali parada, com um sentimento de abandono, entristecida. Sentou no chão e chorou, chorou, chorou.
Andros voltou.
Sua pele estava totalmente restaurada da velhice. Seus longos cabelos castanhos e brilhantes, corpo musculoso, semblante bonito, sentia-se muito bem, muito forte. Olhou para Ela. Estava deitada na cama. Quieta.
O brilho dourado se foi. Semblante caído, olhar vago e triste. Suas asas não estavam mais peroladas, mas cinzas.
Andros foi até a lareira e pôs um pedaço de carne para assar.
Nesse momento Zaphyron, Apolyon, Shaygra, Chidd e Meyphos traspassaram o telhado pousando no aposento da Hystari.
- Zaphyron! - Ela soltou – Akur dir bem dash uluk?
- Kor banir kam shi, Aysar, Ubi dem gart alikien. Alikien to.
- Alikien ben? Garsht Zaphyron? Garstt?
A serpente de Manthas não respondeu. Olhou para os outros. Abriram as asas espinhentas. Os rabos peçonhentos serpenteavam. Cercaram-na.
Andros percebeu que algo estava errado.
- ...Aysar... - Foi até o quarto.
Deparou-se com Shaygra, grande como um urso. Seus chifres fumegavam, olhos pingavam labaredas, presas a mostra. O corpo maciço era coberto de um couro negro, o bicho era extremamente musculoso. Punhos cerrados, arquejava em fúria assassina.
- Saia da minha frente animal dos infernos!! - Sacou a adaga sagrada. Era uma faca comum, mas talhou palavras que aprendera nas leituras sobre anjos. Podia feri-los. Os olhos do demônio se estreitaram. As asas membranosas se abriram. Abaixou-se e rosnando saltou para as vigas do telhado.
Os cinco cobriam Aysar. O negror a escondeu. Era um emaranhado sinistro de asas membranosas, pelos negros, chifres, caudas, labaredas por todos os lados. Não se podia vê-la. Andros olhava sem ação, a adaga nas mãos trêmulas. Um vulto enorme disparou em sua direção como um cometa escuro de cauda rubra. O golpe o arremessou contra a parede oposta. Desabou como uma fruta apodrecida caindo da árvore. Shaygra pousou, o enorme peito se estufava com as lufadas de hálito podre e enegrecido; mãos prontas para esmigalhar; babava; chiava; rosnava; labaredas nos olhos fumarentos deixavam cinzas no chão. Fitava o oponente inerte e fraco. Não era um desafio e sim um brinquedo.
No aposento um tufão negro se formava. Aysar estava no centro. Fora levada para fora. Os símbolos angélicos não funcionavam contra os oficiais de Manthas. Ela estava livre.
Lá fora eles a soltaram. Os cinco pairavam ao lado dela. Shaygra ainda estava lá dentro. Andros acordou. Ainda zonzo se levantou segurando nas paredes.
- Alikien das Aysar. Alikien das... - Babou a serpente negra reluzente.
- Agur Zaphyron, agur dizien. Fikien das. Bayt gonzer din barash. Bereshit bara ha shamaim. Agur, agur to Manthas, Zyon, domer dim. – Respondeu ela curvando-se como um oriental. Zaphyron fez o mesmo.
Shaygra uniu-se aos companheiros. Os seis partiram numa explosão escura. Parecia que a luz era absorvida pelo negror sinistro. Se foram.
Andros estava em pé nos degraus da entrada da casa.
Aysar abriu as asas peroladas novamente. Seu brilho retornara. Respirou fundo. Pairou no ar. Subiu uns dois metros. Olhou para cima e sentiu todo o universo. Um sorriso agarrou-lhe a face, o prazer da liberdade.
Ellion sorria.
Zyon também.
Manthas apenas olhava.
- Vai me deixar não vai? Sua vagabunda... – A faca tremia nas mãos.
- Não posso mais ficar aqui Andros, nem com você.
Ele deu dois passos.
- Aprendi muitas coisas contigo, mas agora partirei.
Mais dois passos. Carregava as correntes.
Abriu a boca e sussurrou: “Egnola van der vinka Aysar...”
Ela estremeceu.
- Egnola van der vinka Aysar, avidya dem bir dasken dubion mesh...”
O corpo alado enrijeceu. Não podia mais voar.
- Não vai embora tão fácil minha cara! - Sua aura estava negra como o couro de Shaygra. Não era Andros. Não o que conheceu há dias atrás. Era outra pessoa. O olhar sinistro, selvagem.
Mais dois passos. Estava bem perto agora.
- Egnola van der vinka Aysar, avidya dem bir dasken dubion mesh, dali naykobyn sedio bander!” – Ela desceu até tocar o chão. A faca reluzia. Não tremia mais.
- Assadium bella kirb dela van dir.
Estavam cara a cara.
Os olhos verdes estavam assustados. O punho investiu e a lâmina cravou o abdômen do anjo. Abriu a boca para gritar, mas não saiu som algum. As mãos seguravam o ferimento que borbulhava sangue. Olhando incrédula, desabou. Uma mancha vermelha escura manchou a neve. Ele em pé a olhava com desdém. Pegou-a pelos cabelos puxando a cabeça para trás com violência. Aysar apenas o olhava com tristeza. Duas lágrimas prateadas escorreram dos seus olhos. A vida a estava deixando aos borbotões. O brilho esmaeceu. Seus olhos, aos poucos, cerraram-se. Mãos trêmulas pararam e descansaram ao lado do corpo inerte. A respiração era apenas um tênue resquício de vida. Também parou. Ela se fora.
Assistiu a tudo com muito prazer. Por alguns momentos ficou ali parado olhando. De repente abaixou-se. Cortou um pedaço da carne angélica. Um bife de anjo mal passado. Cheirou, lambeu, comeu.
Nas regiões celestes, no reino de Ellion todos pararam. Contemplaram a cena. No reluzente trono o onipotente apenas olhava. Zyon também. Manthas sorria.
Ellion levantou-se. Seus olhos muito azuis brilharam como chamas vivas. Seu corpo, já reluzente, explodiu em glória iluminando os sete reinos. Manthas, com as possantes asas negras, cobriu-se.
Na Terra o corpo de Aysar ergueu-se do chão como se amparado por braços invisíveis. As asas estendidas, braços abertos, inertes. O brilho dourado começou a voltar. Intensificou-se como a luz do sol fazendo Andros cair e proteger os olhos. Os céus se abriram e uma forte luz branca carregou-a para as regiões superiores.
A sala do trono de Ellion era do tamanho de uma galáxia. O corpo, carinhosamente, foi colocado no chão de cristal dourado no centro do majestoso salão, aos pés do onipotente. Olhou-a com compaixão. Inclinou-se um pouco sobre ela. Abriu os lábios e libertou o ruash, o fôlego da vida, ressuscitando-a. O corpo arquejou levemente. Os olhos se abriram.
- Erga-se hystari. – Trovejou o soberano. Em todos os sete reinos eternos todos se ajoelharam.
Abrindo as asas reluzentes e sorrindo levantou-se. Cabeça baixa. A mão direita de Ellion tocou seu queixo e os olhos se encontraram.
- Seja bem-vinda de volta filha. Aprendestes muito. Manteve a humildade e respeito. A partir de agora será da casta Thoraym, a sublime casta angélica.
- Agradeço meu senhor. Não mereço. Mas aceito de bom coração. - Aysar respondeu ajoelhando-se.
Zyon a abraçou. Todos festejaram ao som de trombetas douradas e harpas luminosas.
Na Terra...
A floresta estava silenciosa e vazia. Nenhum animal era visto ou ouvido. O único som que alcançava os ouvidos eternos era um lamento.
- Nãããooo! Nããão! - Ajoelhado, Andros soluçava socando a neve...
Estava mais velho do que antes. A cada lágrima envelhecia ainda mais. Arrastou-se para dentro de casa. Caiu ao pé da lareira. Sua respiração estava fraca como seu corpo.
Pecisou mais do que nunca de seu cajado. O duplo nunca mais voltara.
Permaneceu ali por muitos anos ainda. Magro, doente e completamente só.
Aos poucos foi enlouquecendo.
Passaram-se gerações e na região ainda fala-se de um velho que habita no coração da floresta e que gosta de beber sangue de animais vivos. Um homem extremamente idoso, curvado, cheio de feridas, apoiado por um cajado, sua única companhia.
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Breve: Alma Dividida