Insensível
Nada mais me assusta. Nem a violência que escorre, escura e viscosa como um óleo queimado, bem defronte de nossos portões, nós que somos prisioneiros nessa cela imensa chamada metrópole. Nem o descaso com nosso belo planeta azul, cada vez menos azul, cada vez menos verde, cada vez mais cinza e pó. Nem a corrupção desenfreada, o egoísmo declarado, o consumismo exagerado, a riqueza encarcerada nas mãos de poucos.
Não me assusta mais a imagem da criança deformada pela fome, os erros evitáveis e as desculpas mais esfarrapadas que as tristes vestes dos despossuídos. Não me assustam a doença, a morte, a incapacidade, a falta de sinceridade. Nem mesmo a injustiça ou a miséria – mais comum que ratos na noite das ruas escuras, cujos bueiros vomitam restos de uma pretensa civilização.
Creio estar blindado para o mundo desde aquela vez... Desde aquele dia do imenso, gigantesco, inenarrável susto que levei, quando fui arrancado por uns braços mecânicos da minha casa. Era tudo quente, úmido, macio; eu ouvia sons familiares pairando leves pela penumbra do meu lar, aquele lar que eu amava e que me ninava num balanço suave de rede. Ninguém me avisou e de repente lá estava eu, num local muito estranho, onde alguns gigantes me agarraram pelos pés. Fui espancado, cutucado, virado do avesso; colocaram-me panos ásperos e uma dura pulseira no braço. Os sons agora eram fortes e a penumbra havia se dissipado para dar lugar à luz - muita luz. Passei a sentir coisas que nunca imaginei que existissem: fome, dor, medo, frio... O susto me fez suspirar tão forte que descobri que tinha pulmões.
Às vezes me deito na rede, no entardecer de um dia de verão, para ter a ilusão de que voltei à minha casa. Assim, descanso da luta diária que travo para que volte a me assustar com todas essas barbaridades. Que não devem ser ignoradas, já que é com sustos que acordamos do torpor e nos indignamos para poder tentar reverter o que nos incomoda. Na rede sonho com um mundo melhor – mas, confesso, também sonho com meu meio líquido, numa alienação compreensível para quem sobrevive entre tantos horrores.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo "Um Susto"
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