Dr. Elsô Castanheiredo Bento – Advogado
A última semana de expediente do advogado, o Dr. Elsô Castanheiredo Bento, profissional experiente, competente e muito prático, tanto é que resolveu abreviar seu extenso nome de “guerra” para Dr. Elsô C. Bento, facilitando a vida dos seus clientes e magistrados, foi triste e penosa, sobretudo com o Judiciário já em recesso.
Nos dias que antecederam o Natal, o Dr. Elsô C. Bento ainda precisava dar cabo de alguns compromissos pendentes, antes das suas merecidas e rápidas férias de fim-de-ano.
Já bastante esgotado física e psiquicamente, por mais um ano repleto de problemas, muito trabalho, e fortes emoções, como a Copa do Mundo na Alemanha e as eleições, nas quais funcionou como mesário, seu estado de estresse aproximava-se do limite.
Na 2ª. Feira, o Dr. C. Bento ficou no escritório o dia todo, organizando processos, confeccionando petições, consultando códigos, jurisprudências, xingando o seu computador que desligava repentinamente a todo instante. Somente ao chegar ao Fórum, lembrou-se do recesso do judiciário, ficando enfurecido. Acalmou-se ao perceber que seu trabalho, pela primeira vez na vida, estava adiantado. Deixou tudo no escritório e foi para casa descansar.
Na 3ª. Feira, novamente no escritório, ficou tentando receber honorários devidos por diversos clientes “esquecidos”, porém sem êxito algum.
Próximo da meia noite, preparando-se para dormir, o Dr. C. Bento recebeu um telefonema, informando o falecimento de sua avó, e, como único advogado da família, o velho e famoso “faz tudo”, saiu entristecido de casa para providenciar o funeral de um ente tão querido.
Era conhecida, na família, a manifestação de última vontade, de sua avó ser cremada. Mas, e o documento hábil, onde estaria ? Recorreu a sua irmã para que procurasse o documento, o mais rápido possível. O tempo foi passando, e pela demora resolveu ir ao escritório e estudar uma forma jurídica para substituir o tal documento.
Quando redigia uma petição para o Juiz de plantão, a autorização feita em vida, por sua avó, foi encontrada pela irmã, depois de numerosas e incansáveis buscas na legislação pertinente. Assim, o Dr. C. Bento saiu do escritório às pressas para resolver a burocracia.
Dia claro, no cartório de registro civil, embora estivesse fartamente documentado, com certidões de óbito do avô e tios, a atendente exigiu a Certidão de casamento da avó, que havia acontecido em 1912, numa fazenda da família, no interior do Piauí, ou seja, o absurdo do impossível. O Dr. C. Bento mostrou os documentos que havia trazido, convencendo a dispensa do “manuscrito” tão longínquo, pois na certidão de óbito do avô constava o casamento com sua avó.
Nos dias de hoje, mesmo com quase tudo “informatizado”, dificuldades ainda surgem, em determinados casos. A atendente do cartório, de posse do atestado de óbito, foi preenchendo, no computador, os campos da certidão de óbito até esbarrar no “estado civil” da finada:
- Eu preciso da certidão de casamento, Dr. C. Bento !
- Mas nós já havíamos resolvido esta questão, retrucou o advogado.
- Acontece que o “programa” pede os números do livro e folha da certidão, senão terei que registrar o estado civil como “ignorado”.
Muito experiente, o Dr. C. Bento disse:
- Então escreva aí, livro “x” e folha “y”, e vá em frente ! Quem poderá contestar isso, se os interessados já faleceram ?
- Não posso fazer isso, o senhor está inventando, e isso não é correto. Marcarei o campo “ignorado”.
Ouvindo isso, o Dr. C. Bento “quase” perdeu a paciência e falou alto:
- Eu só não digo um palavrão aqui, por respeito às pessoas que
aguardam atendimento, como esta senhora que será a próxima ! Apontando para uma anciã sentada próximo dele.
Foi surpreendido quando os que aguardavam disseram em coro:
- Xinga ! Xinga ! Xinga ... ! E a anciã: - pode xingar, doutor, este cartório é uma porcaria mesmo !
Fortalecido pela “torcida”, o Dr. C. Bento acrescentou:
- Caso na certidão conste o estado civil da minha avó como “ignorado”, eu processarei o cartório, o Estado, a União e até a pqp ! Isso é um desrespeito ! O corpo já está sendo velado e terá que descer a Serra, para ser cremado no Rio de Janeiro !
A responsável pelo cartório, que tudo ouvia, chamou a funcionária e disse algo ao seu ouvido. E a certidão de óbito foi impressa, com o estado civil “casada”.
Na 4ª. Feira, já no crematório, o Dr. C. Bento encontrou primos e primas que não via há anos. Após uma rápida cerimônia em homenagem a avó, os familiares estavam se despedindo, quando uma secretária se aproximou, informando gentilmente que o serviço não estava pago.
Todos se entreolharam e em seguida olharam para o primo advogado, que como os demais, desconhecia o fato, tendo que desembolsar uma quantia considerável para transformar a sua avó em cinzas.
De volta ao escritório, pretendendo se isolar no consolo do silêncio, recebeu o telefonema de um colega de São Paulo, solicitando o ingresso de um pedido de liminar em favor de um cliente mútuo, na Vara Federal, cujo plantão era também na capital do Estado. Muito cansado, pensou: “trabalho é trabalho”. Preparou a petição e retornou ao Rio de Janeiro, 40 graus, com o mesmo paletó e gravata, além da pasta que parecia pesar uma tonelada. Foi ao prédio errado, pois o plantão havia sido transferido para a Av. Venezuela. Mais irritado por se lembrar da existência de Hugo Chávez, o Dr. C. Bento encontra uma fila de advogados para despachar com o juiz.
Resolvida a questão, lá pelas 21:45 hs., chegou no prédio, onde estacionara seu carro, sem vigia ou quem pudesse atendê-lo, todo às escuras e trancado. Pensou em tomar um “porre”, mas havia um compromisso social em sua casa naquela noite, com amigos dele e da esposa. Resolveu ir para casa de ônibus.
Chegando na rodoviária, e de posse do bilhete de passagem para as 22:15 hs., ficou sabendo no “guichê” da empresa que o atraso, ainda de “apenas” meia hora, era devido a um acidente na Serra. Ônibus reserva havia, mas motorista não. Dispôs-se a dirigir o veículo, pois possuía habilitação para isso, em função do seu confortável “moto-home”, o que foi negado pelo gerente.
Telefonou para sua mulher avisando sobre o caos particular, maior do que o aéreo em curso, prometendo chegar ainda a tempo de cumprimentar os amigos convidados.
Na 5ª. Feira, o Dr. C. Bento entrou em casa por volta das 01:30 hs., encontrando os filhos dormindo e a esposa ainda acordada, visivelmente aborrecida, passando a escutar poucas e boas, enquanto tirava o paletó encharcado de suor e a gravata que o “enforcava”, e num acesso de ira, jogou tudo em cima dela, dizendo: “- Sinta o fedor do trabalho do seu marido e pense em retratar-se das ofensas”. A situação tendeu para o divórcio imediato.
Levantou-se do sofá da sala ainda bem cedo, e retornou ao “forno” do Rio de Janeiro para buscar o carro, sentindo-se consolado ao lembrar do crematório. Pagou horas de estacionamento e o pernoite, absolutamente desnecessários. Mesmo assim, sentindo-se um homem feliz e realizado, procurou as chaves do veículo que, para sua surpresa, estavam muito bem guardadas na ignição dentro do veículo trancado. Pensou em jogar-se do 13º. Andar do estacionamento, porém, lembrou dos filhos, já que a esposa praticamente já havia perdido.
Na saída da Linha Vermelha, uma bala perdida estilhaçou o pára-brisas atingindo o encosto do banco do carona. Quando conseguiu alcançar a rodovia, parou no acostamento em prantos, esquecendo até o motor ligado.
Repentinamente, teve um acesso de risos, ao olhar o tamanho do buraco no estofado de couro, imaginando se a sua mulher estivesse junto com ele.
Refeito do susto, limpou o excesso de estilhaços de vidro, fechou todas as janelas e prosseguiu. Após o pedágio, foi parado pela Polícia Rodoviária, que além da documentação, verificou todas as lâmpadas do automóvel, embora ainda fosse dia claro e ainda de manhã, afinal a “segurança no fim de ano”, sempre esteve em primeiro lugar pelas autoridades.
Imaginando estar livre, foi “convidado” a registrar ocorrência por causa da bala perdida, apenas para efeitos de estatística.
Saiu do Posto Policial aliviado, tendo apenas que trocar um pneu furado, na entrada da cidade.
Foi direto para o seu escritório, na tentativa de ainda receber honorários devidos, telefonando insistentemente para seus clientes inadimplentes em vão, pois não encontrou ninguém. Já eram 15:00 hs., e seu estômago o lembrou da falta do almoço, além do café da manhã.
Ao chegar em casa, encontrou sobre a mesa um bilhete, no qual estava escrito:
“Querido, fui para Cabo Frio com o seu primo Ricardão. Ele tem habilitação para dirigir o moto-home. Deixei ovos fritos e arroz na geladeira. Feliz Natal e um excelente Ano Novo ! Até 2007.”
Acabei de escrever este texto, após chegar do Hospital, aonde levei novamente, algumas frutas para o Dr. Elsô C. Bento, afinal, ele é o meu advogado também ...
Por Alexandre Boechat,
Em 31 de Dezembro de 2006.