Do piano e do medo da morte

Da infância, poucas memórias restam nítidas com o passar dos anos. Uma lembrança viva é o piano preto no canto esquerdo da sala, próximo à mesa de jantar. Em sua mocidade, minha mãe dedicou-se a aprender partituras e a revestir-se de música enquanto os dedos suavemente deslizavam pelas teclas deste mesmo instrumento que, décadas depois, se encontra vivo em minha memória.

Ao casar-se com meu pai, este piano passou a ser caminhante e viajou quilômetros e quilômetros de estradas, habitando diferentes cidades, lares e cantos esquerdos de salas. Acompanhou também a formação de nossa família, minha infância e a de meus irmãos.

Lembro de sua madeira gasta e descascada pelo tempo. Lembro também do papel posto embaixo, que cumpria a nobre função de calço e seu equilíbrio. Lembro, ainda, de como seu pedal se encontrava distante de meus pés quando sentava em seu banquinho – naquela época eu sequer alcançava o chão!

Nos finais de tarde, quando já concluídos os afazeres domésticos, minha mãe sentava-se e colocava-se a tocar – e ficávamos a observar a sensibilidade com que dava vida aos acordes e às partituras, trechos desenhados de sinestesia e de vida.

Quando eu tinha nove anos, uma doença grave acometeu um familiar e minha mãe, como urge em tempos de necessidade, em menos de uma semana anunciou no jornal e vendeu o instrumento que lhe acompanhou durante sua vida inteira ao primeiro interessado que ligou e agendou uma visita.

Lembro do espaço que restou na sala quando o instrumento foi colocado no caminhão. Sobrava tanta falta em minha mãe, que as lágrimas lhe acometeram desenfreadas naquela tarde – e em outras, ainda depois de um tempo. Porém, naquele momento, era necessário tal sacrifício.

Mais de uma década se passou e eu sequer lembrava deste piano. Ontem à noite, contudo, como há anos não acontecia, tive um pesadelo. Dentro de meu quarto, abria os olhos e não estava sozinho. Era uma presença que apenas me olhava, me observava, nada fazia ou dizia. Orei e ela se desfez, dissipou-se no ar, restando apenas a apreensão, o nervosismo, o suor e o receio de seu retorno.

Algo restava inconcluso e o incômodo alojara-se em mim. Não conseguia encará-lo sozinho. Com algum esforço, levantei e dirigi-me ao quarto de meus pais. O rádio estava ligado e meus pais dormiam. Acordei minha mãe, contei-lhe da noite e ela dirigiu-se ao meu quarto, com seu lençol e travesseiro. Ficou no meu quarto até eu voltar a dormir.

Deitado, ela agora me fazia companhia e a sensação de segurança retornou à madrugada. Tive mais uma onda de medo ao pensar que um dia não poderei recorrer aos meus pais quando novas quimeras atormentarem meus sonhos.

Naquela hora, contudo, nada disso importava. Minha mãe ficou comigo, me cobriu com o lençol, rezou uma oração e me fazia carinho no cabelo até a hora em que enfim adormeci. Tamborilava, ainda, com os dedos um ritmo conhecido da minha e da sua infância enquanto seus dedos entrelaçavam-se em meus cabelos.

Foi quando percebi, em meio a tantos medos, que minha mãe nunca esquecera daquele piano. Mesmo agora, sem o tê-lo, ele embalava minha mãe e a mim, curando em um e em outro o medo da vida e o medo da morte, que também a acomete, que lhe é quimera e torna a noite mais longa.

Do piano que trazia vida e que reverberava em toda a sala a essência de sua alma, minha mãe jamais esquecera – nem de seu toque nem da sensação que lhe trazia. Enquanto acariciava meu cabelo, seus dedos tateavam durante a noite em busca de nossa paz, ao ritmo surdo – mas vivo – de Für Elise. Adormecemos, então.

Lucas Sidrim
Enviado por Lucas Sidrim em 10/11/2011
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