Um dia de Corpus Christi
Um dia de Corpus Christi - por Marconi Ferreira
Fui um menino que freqüentava diariamente a Igreja.
Participava de todas as programações realizadas pela paróquia do Rosário.
O meu sonho era estudar em um seminário.
Tinha e tenho muito respeito pelo sagrado.
As minhas brincadeiras era reunir crianças em torno de um altar. Felizmente sempre conseguia a participação dos mais rebeldes.
No meu quarto havia um altar muito bem cuidado com imagens de santos de devoção da família, ali era o meu local preferido. Passava horas ali meditando.
Por ser filho de uma família numerosa era muita pretensão estudar em um Seminário.
Assim que terminei o quarto ano no Grupo Escolar Emílio Pereira de Magalhães, minha mãe levou-me a casa Paroquial para conversar com o Padre José Lopes dos Santos “Pr. Zé Lopão”. Momento de grande expectativa. Apresentou-me ao vigário assim que iniciou a conversa foi descartada qualquer possibilidade da minha ida para um Seminário.
Conforme o sacerdote, eu poderia servir a Igreja de outra forma.
Juro por Deus! Sai muito triste daquele local.
Fiquei alguns dias sem freqüentar a Igreja.
A decisão do sacerdote não foi justa.
Assim eram as normas da Igreja naquele tempo.
Pobre não tinha vez.
Passado alguns dias, recebi um recado do Padre me convidando a freqüentar aulas de Latim, ministrada por Dona Lourdes, esposa de Sr. Rodilom.
Naquela época toda a liturgia era celebrada em Latim.
Aceitei.
Não interessei com a liturgia de encomendação de defuntos pelo motivo do ritual me causar pavor.
Mesmo triste por não ter realizado o sonho de ir para um Seminário, continuei participando das celebrações.
Assim que terminei o curso, surgiu um novo problema. Como comprar a batina de coroinha? Não havia condições.
Na véspera de uma procissão de Corpus Christi alguém generosamente providenciou uma batina velha e bem surrada.
Naquela noite não conseguia dormir.
Que noite longa meu Deus!
Aquele seria o dia mais importante de minha vida.
Ser um turiferário era tudo que todo coroinha almejava.
Pela primeira vez eu poderia carregar o Turíbio e ficar bem pertinho do Santíssimo Sacramento.
Experimentei a tal batina. A mesma era enorme! Cabia dois de mim.
Minha mãe deu um jeitinho, apertou e embainhou aquela veste.
Percebia claramente que o defunto era bem maior.
A procissão estava marcada para iniciar às 15h00min, era preciso estar na Matriz pelo menos uma hora antes.
A ansiedade era tanta que cheguei às 12h00min.
Fiquei por um bom tempo na sacristia a espera do Senhor Intelecto irmão do Santíssimo, responsável pelas ultimas instruções aos coroinhas.
Assim que ele chegou foi aquele sermão de recomendações.
Não fazer bagunça com o incenso, não deixar o braseiro de o Turíbio apagar, tocar a campainha com moderação.
O incenso que estava na naveta (vasilha usada para armazenar incenso) deveria ser utilizado aos poucos. Poderia usar mais quantidade nos momentos das bênçãos durante o percurso. Eram ordens do Sacerdote.
Enfim teve inicio a procissão. Estava todo garboso, movimentava o Turíbio com muito cuidado.
Padre Lopão gostava de percorrer toda a procissão. Andava de um lado e do outro.
Sua batina preta arrastava nas calçadas de pedras de ferro das ruas. Dava para perceber o barulho.
Ninguém ousava conversar.
Assim que o Santíssimo chegou perto da Casa da Banda Euterpe, percebemos que o Padre estava distante.
Naquele momento um coroinha responsável pela naveta, resolveu derramar incenso no Turíbio. O perfume foi percebido por toda rua.
O Padre mesmo distante entendeu que aquilo era arrumação de algum coroinha moleque. De longe deu um grito quebrando todo silencio antes interrompido somente pelos sinos e campainhas.
Arrancou o Turíbio das minhas mãos, e a naveta, das mãos do outro coroinha.
Ordenou que o Senhor Intelecto nos acompanhasse de volta a Matriz com a seguinte recomendação: coloque estes meninos de joelhos em frente à imagem de São Jorge.
Poderíamos sair daquele local somente com as suas ordens.
A tal imagem era o terror de todos os meninos.
O olho de vidro da imagem era tão real que parecia estar viva.
Aquilo era apavorante.
Os antigos contavam que todos os cavalos que conduziam São Jorge pelas ruas da cidade no dia de sua festa, morriam poucos dias depois.
Imagine o que passou em nossas cabeças de meninos naquelas horas.
Tremíamos como vara verde ao saber que em nossa frente estava aquela coisa horrível.
Mas em momento algum tivemos a coragem de encarar o Santo.
Permanecemos durante três horas com os nossos rostos virados para as paredes, clamando os anjos e santos de nossa devoção.
Clamava a Senhora do Rosário para ter piedade, e nos proteger daquele Santo que nos apavorava.
À medida que as horas iam passando e a Igreja escurecia, o medo aumentava.
Assim que o sino do Santíssimo começou a tocar festivamente anunciando a chegada da procissão tivemos uma sensação de alivio e ao mesmo tempo medo.
Livraríamos do Santo, mas acabaríamos nas mãos do Padre.
Qual seria a atitude do Padre para conosco?
O barulho dos seus sapatos cada vez mais perto. Percebíamos que vinha em nossa direção. O pavor aumentava a cada momento.
Tínhamos certeza que era ele que aproximava.
Suávamos frio.
Assim que ele chegou bem perto de nós, tocou levemente com as mãos em nossos ombros e disse as seguintes palavras: ”Meninos, por favor, me perdoem por tal atitude.” E nos abraçou chorando.
Foi aquele alivio.
Um dia tão esperado por mim, transformou-se em um pesadelo.
Mas ficou na lembrança uma saudade de um homem severo que carregava no peito um coração de criança.
Tinha a humildade de pedir perdão.