A MULHER DA SOMBRINHA

Ela sempre descia sozinha, fazia sol ou chuva acompanhada de sua sombrinha surrada. Nunca ninguém a acompanhava, exceto sua sombrinha já desbotada, de cor vinho, grande, daquelas com cabo parecendo uma bengala, herança de Dona Aurora, sua mãe falecida há trinta e dois anos. Vitória carrega-a como a companhia que lhe falta. Faz vinte e nove anos que seu marido falecera por causa de complicações cardíacas. Desde então, ela se veste de preto da cabeça aos pés e apenas quebra o negrume com sua sombrinha. Tem os cabelos brancos, já no auge dos seus sessenta e dois anos completados semana passada, usa um óculos antigo, daqueles bifocais e não corta os cabelos desde a viuvez, trazendo-o sempre amarrado em formato de um coque, o que aumenta uns quinze anos na sua idade.

Na cidade, todo mundo conhece essa mulher e ela é sempre vista sozinha. Faz compras discretamente, visita os correios e envia presentes de natal para o único neto que mora longe e para o filho sem irmãos, dos apenas cinco anos de casada. Vitória nunca mais se interessou por homem algum desde que Afonso se fora. Ela visita seu túmulo todo dia dezesseis e reza por seu descanso. Sente-se somente dele e aguarda um dia reencontrá-lo na pátria celeste. Ela sempre tem os olhos marejados à noite, quando vai dormir ocupando apenas o seu lado na velha cama do casal. Mantém sempre um travesseiro ao seu lado, como se o esposo fosse chegar a qualquer momento. Na cozinha, sempre comida para dois, e na mesa não coloca apenas um prato. Recolhe o que seria o dele solenemente e guarda-o para, no dia seguinte retirá-lo de novo.

As pessoas a julgam como louca, a mulher da sombrinha, como todos a chamam, principalmente os mais jovens. As crianças até a temem e saem correndo quando ela aponta na esquina. Mas ela é inofensiva. Nunca fizera mal a ninguém e quase nunca dirigia a palavra ao povo daquela cidade. Apenas fala no momento das compras ou quando precisa de algum favor. Sua figura exótica não deixa de chamar a atenção de todos. As pessoas de sua idade ou que com ela conviveram, sabem que é apenas uma mulher silente e nada mais. Ao cumprimentá-la, dificilmente ouvem uma resposta, mas nunca se vão sem um sorriso simplório e quase sem expressão.

Vitória mora só, na sua casa antiga, próxima à única escola daquela cidade. É um casarão bicentenário, com portas de madeira tão pesadas quanto a fisionomia enrugada de sua dona. As rugas são absurdamente incompatíveis com a idade daquele rosto. Sua vida é um segredo desde a morte do marido. Ninguém sabe explicar ao certo tanto silêncio. Quando Afonso era vivo, eram sempre vistos nas missas e festas da comunidade. Ela conversava bastante, diziam, quando jovem. Hoje, está submersa em seu próprio mundo e, ao entrar na casa, cuja porta fica bem rente à rua, sem varanda ou jardim, abre-a somente o suficiente para entrar. Quase ninguém nunca viu porta ou janelas daquela casa abertas. Ao fundo, vê-se quase sempre uma fumaça que sai numa chaminé, indicando atividade do velho fogão de lenha. Pouquíssimas pessoas entraram naquela casa após a sua viuvez. Somente Maria Elzira, sua velha amiga de infância, que nunca comenta nada sobre a amiga.

Moro a duas casas dela, do lado par da rua e de minha janela, que é um sobrado, posso ver quando ela sai. Todos os dias, às seis e meia ela sai de casa para participar da missa na capelinha das Mercês, um exemplar do barroco, de fachada bem simples e torre central, adornada com o ouro dos mineradores e o trabalho dos escravos. Basta subir três quarteirões para adentrar no templo. Ela sai da capela e passa pela porta do cemitério, anexo à Igreja, mas não entra, exceto no dia dezesseis, dia que seu amado se foi. Ela para diante do portão por uns minutos e se vai. Entra em casa e normalmente não sai mais. Abaixo de sua casa fica a escola, e os meninos sempre passam e jogam pedras na janela, gritam com a senhora, e coisas desse tipo, de menino levado mesmo. Às vezes alguém chama a atenção deles, ou ela mesma sai à janela. Quando ela sai, todos correm com medo da senhora solitária. É praticamente uma rotina.

Hoje o dia amanheceu raivoso. Trovoadas logo pela manhã e mesmo assim ela cumpriu seu ritual. Choveu o dia todo e esfriou bastante. Vi quando a luz de sua casa se acendeu, assim que o sol se pôs. Ela quase nunca acendia a luz do último cômodo da casa, que fica na extremidade esquerda, e como os postes da rua ficam do lado oposto, o clima nostálgico e misterioso paira no ar. Fiquei observando a sombra daquela senhora que se movimentava por detrás da cortina de renda surrada. Vi, apesar da chuva, agora mais serena, que despencava do céu, quando ela se alongava até o alto de algo que parecia um armário e desceu uma caixa. Foi possível perceber que ela observava algo ali guardado. Era muito raro aquele quarto estar com luzes acesas à noite. Foi rápido, alguns minutos e um gesto parecido com um enxugar lágrimas, e novamente as luzes do casarão se apagaram, restando apenas a sala principal e uma luz ao fundo, que suponho ser sua cozinha.

Fiquei parado um bom tempo contemplando aquele lugar em meio à chuva que despencava do céu. O cenário de minha rua é um convite à melancolia já em dias de lua cheia: pedras na rua, casarões antigos e a capelinha no alto. Vitória passou por mim hoje de manhã quando voltava da missa e me sorriu. Era muito raro um sorriso daquela senhora, tão piedosa, tão misteriosa, tão aparentemente amável. Agora ouvindo o barulho da chuva no telhado de casa e nas folhas das árvores, juntamente com aquela canção suave que é o barulho da enxurrada correndo por entre as pedras rumo ao riacho que fica no fim da nossa rua, fico imaginando se não são essas, as lágrimas de Dona Vitória caindo de seu rosto. Quem sabe não seja por causa de suas lágrimas que a sombrinha lhe acompanha todo o tempo. Mesmo sabendo que ela é apenas uma mulher silente, talvez tristonha e vivendo seu luto eterno haja algo naquela casa onde ninguém a pode visitar. Quantos segredos carrega aquela mulher debaixo das roupas escuras como seu semblante, que escondem a meiguice da senhora que não fala, mas sorri amavelmente para as pessoas.

Olhando a chuva da janela eu me calo na noite que vai cedendo lugar à madrugada e ao silêncio absoluto da rua, das casas, dos sinos da igreja, dos corações, das almas... E no meu silêncio, adormeço para amanhã ouvir o ranger daquela porta que se abre para continuar com a existência de tal senhora que povoa a imaginação de quase todos nesta cidade e seguir seu ritual diário, alheio a tudo o que acontece ao seu redor. Cada um com sua vida, seus dilemas, suas falas ou seus silêncios, de acordo com a vontade de cada um em querer simplesmente ser como é. Boa noite.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 09/11/2011
Código do texto: T3327175
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