A Grande Cisão (Coração de papel)

“Qual é a característica da atenção concentrada e a da

sabedoria?

– Uma defini-se pela reunião outra pela cisão.

– Como é isso? Dá um exemplo.

– Já tens visto os ceifadores, Maharajá?

– Sim.

– Como eles ceifam a cevada?

– Com a mão esquerda agarram um feixe de talos e

com a foice na mão direita cortam o feixe.

– Maharajá, mediante a atenção concentrada, o asceta

reúne os processos da inteligência e mediante a

sabedoria, ele corta as paixões. Por isso uma é

figurada pela reunião e outra pela cisão.”

Milinda Panha

O que começa termina: neste mundo onde as coisas possuem causa e efeito.

Eu reuni, agora separo. Este livro é um separador do meu joio e do meu trigo,

do que sou e que serei e da minha permanência. Esta é a história final e com

ela encerro uma jornada, enterrando meus entes queridos (egos) debaixo da

terra onde possam flores ser...

Era uma vez um eu. Um eu que possuía um coração flamejante como o Sol.

Carregava no peito uma chama tão forte e suficiente para incendiar todo o

planeta. Não que isso seja muita coisa, pois para por fogo no mundo basta uma

faísca no lugar correto...

Assim ele achava-se sempre crepitante, envolvido em espalhar suas brasas e

alcançar mais lenhas para seu coração sedento de paixões e acalentos...

O que ele não sabia era que as brasas do seu coração queimavam tudo à sua

volta, e por mais bela que fosse aquela chama: ela consumia-o por inteiro,

transformando dias em noites, florestas em deserto e semanas em anos.

Sua busca por lenha era incessante e nada saciava este fogo perpétuo.

Movido por esta busca, e por esta frustração: ele decidiu buscar respostas.

Ao sair de dentro de si um pouco, logo encontrou um rio: “Você está

sentindo-se só? Talvez esteja sendo muito seletivo, deixe as coisas fluírem mais

naturalmente... Veja, eu corro para o mar sem me preocupar com as terras que

terei de atravessar, recolhendo gravetos, lama: eu fluo apenas.” “Penso que

não me sinto só, respondeu ele. Procuro não apenas dividir meu fogo, mas que

alguém o alimente e toque uma música em volta da minha fogueira para que

ela possa brilhar mais bela... Talvez isto seja uma forma de sentir-se só... Mas

também não acredito que simplesmente deixar fluir seja a resposta. Aprendi

que nem tudo queima bem: umas produzem muita fumaça, outras queimam

muito rápido, outras podem ser tóxicas e até apagarem meu fogo... Agora já

possuo menos lenha de quando saí à procura das respostas... Ainda não

encontrei o que procuro, assim prosseguirei a jornada. Mas agradeço meu

querido rio por suas palavras...”

Mais adiante encontrou uma flor sobre uma pedra, uma flor querida que

sempre lhe agradou pelo seu cheiro: “Vocês flores são estranhas. Projetam e

procuram o ser ideal e unem-se ao oposto do que almejam... Seria uma sandice

das flores? Ou algo que ainda não compreendi?” A flor que encontrava-se em

botão abriu-se em gargalhada: “É verdade, somos loucas. As flores tem uma

certa queda pela morte: fazem-se belas e perfumadas, atraem para si toda a

atenção. Os homens então, fascinados pelos nossos feitiços, nos arrancam para

adornarem seus vasos e sermos deles... Já sem a terra que nos sustenta

acabamos por murchar, mas enquanto estamos ali nos achamos únicas... É

uma ilusão fugaz que nos atrai... Mas você é diferente, não o vejo como o rio

que carrega o que encontra e flui sem se preocupar com o que vai levar. Passas

por mim e sempre sente meu cheiro, acaricia minhas pétalas e me faz sorrir,

mas nunca pensaste em me arrancar. Eu te compreendo, sinto-me um pouco

como você: sou a companheira desta pedra há anos e ela nunca olhou pra

cima... No entanto sempre que ela precisa, apazíguo seu sofrimento com meu

perfume...” “Esta constatação me ajuda a entender porque vocês são assim,

mas é como o sal na boca: dá-me sede de saber. Agora já possuo menos lenha

de quando saí à procura das respostas... Ainda não encontrei o que procuro,

assim prosseguirei a jornada. Mas agradeço minha querida flor por suas

palavras...”

Mais adiante encontrou uma raposa com quem aprendeu a correr sem

encostar os pés no chão. “Está tudo bem? Você parece um pouco apagado...”

“É verdade minha amiga, meu coração não encontra lenha nesta floresta. Nada

além de alguns gravetos que eu mesmo recolho caídos das árvores... Mas meu

coração clama por mais que a simples amizade das árvores... Deseja consumir

toda uma floresta, deseja possuir um fogo que perdure...” “Ora, você devia agir

como nós as raposas... Quando caçamos fingimos que não damos atenção à

presa e quando ela se dá conta já está em nossa garganta. Te garanto que

assim não faltarão presas, ou melhor, lenha.” “Talvez você estivesse certa se

eu desejasse possuir muitas presas. Mas assim como a flor murcha no vaso, a

presa apodrece na boca. Talvez você conserve sua presa numa brincadeira

durante muito tempo em sua garganta antes de consumi-la, mas no final ela se

esvai. Eu procuro uma floresta que renasça no meu coração e não apenas

lenha... Agora já possuo menos lenha de quando saí à procura das respostas...

Ainda não encontrei o que procuro, assim prosseguirei a jornada. Mas agradeço

minha querida raposa por suas palavras...”

Agora a lenha já era pouca. E coração ardia em dor... Mais adiante encontrou

uma pequena índia com quem aprendeu a escutar o som da floresta. Ao vê-lo a

índia sorriu de saudades, mas logo percebeu que aquela chama tão vistosa se

esvaia... ”O que acontece Txai? Seu coração já não flameja como antes, podia

ver nele o sol radiante, agora não passa de pequena centelha.” “Minha

querida. Minhas flechas não acertam o alvo, por mais zeloso e cuidadoso que

eu seja, por mais que eu calcule o vento e a distância: minhas flechas sempre

caem no chão... Eu escuto os animais, firmo o pé com força e me entrego à

caçada, mas meu coração chora apenas perdas e meu peito queima em dor...”

“Talvez esteja sendo caloroso demais e a floresta tema ser destruída. Seja a

floresta enquanto caça e a caça abaixará a cabeça esperando sua flecha. Se a

floresta te ver como perigo se afastará de ti. Se o calor que propicias aos

animais for calor apaziguador eles não se enxergarão como presas e não se

entregarão a ti. A floresta é uma troca e na caçada você sempre deixa algo.

Observe o que deixa no caminho...” “Talvez você estivesse certa se eu não

deixasse nada em troca. Mas ofereço todo o meu fogo, e neste ponto você está

certa: os animais se aproximam e se afeiçoam e minhas flechas não surtem

efeito... Todos os seres possuem seus pares, e eu prossigo só, apesar de tanto

buscar. Agora já possuo menos lenha de quando saí à procura das respostas...

Ainda não encontrei o que procuro, assim prosseguirei a jornada. Mas agradeço

minha querida índia por suas palavras...”

Agora com apenas poucas brasas no peito cansado de adquirir novas dúvidas

e não encontrar a resposta flamejante, ele resolveu parar para descansar.

Nisso parou uma joaninha no seu ouvido: “Oi querido, entendo sua dor. Já fui

rio, flor, raposa e índia. Aprendi a ser o que tenho que ser quando tenho que

ser. Hoje sou mais leve... Sei que o que te incomoda não é a decepção da

última noite, pois todas as noites são as últimas. Talvez devesse ser um

pouquinho de cada uma de nós e um dia será todas... Mas quero te dizer que

este é o seu inferno. Sua própria luz que te consome... um beijo, conte

comigo...” E se foi.

Ali no vazio gritei pro vento. Nem um sopro: ausência. Nada.

Então ouvi uma gargalhada e quando olhei, já cansado e combalido vi meu

velho companheiro se esbaldando de rir. Apesar de toda dor e fraqueza não

pude deixar de achar graça enquanto ele rolava no chão.

“Eu aqui sofrendo e você rindo. Raziel, meu mestre querido, do que você

tanto ri?” Ele me pediu pra me aproximar e me entregou um papel: “Leia o que

você escreveu.” No papel estava escrito assim:

“Hoje eu vou desabafar com o papel e chorar nas vírgulas e conectivos

até o ponto final ... daí vou espremer e transmutar cada bocadinho do

meu ser até que esta argila vire algo mais próximo de um cadinho ...

Quando isso acontecer vou colocar dentro dele meu coração flamejante e

deixar ele lá até que vire um coração de papel: onde eu possa escrever

uma nova história e onde eu não sinta mais nada além de uma página em

branco e vazia ... Onde eu possa trocar ou rasgar tudo e onde as pessoas

possam olhar e dizer: 'Olha, ali eu posso escrever algo novo!' E não algo

onde as pessoas olhem e já vejam algo escrito....

Estou cansado de escrever apenas sobre sentimentos intangíveis: quero

ser o papel e a caneta e não possuí-los somente em minhas mãos...”

Ele olhou pra mim sério e disse: “Agora vai meu pequeno alquimista. Pode

começar com esse barro sob os seu pés. Você tem toda a chama que precisa.

Transforme seu coração e se livre destas paixões. Comece aonde termina: faça a cisão...

obs. A palavra Nirvana significa: nir=não + vana=madeira.

Raziel Megisto
Enviado por Raziel Megisto em 05/11/2011
Código do texto: T3318624
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