SEM PÉS DE FEIJÃO
João deve ter sido concebido num dia inusitado, desses em que tudo foge à normalidade, quando haviam no céu bem umas cinco filas para se colocar energia em criança e bem outras cinco filas de “pinta sete”... Resultado: desavisado, o nosso menino meteu-se a passar nas bem dez filas. E tome energia! E tome “pinta sete”! Nasceu “pilhado”... De pilha auto-recarregável. Garanto, de antemão, que não há ser vivente nesse mundo para dar cabo das peraltices do amiguinho.
O que ninguém sabia, de fato, é que no fundo, no fundo, o que o menino mais desejava era plantar ao lado da janela do seu quarto um lindo e mágico pé de feijão. Nele, haveria muitos sonhos de vida tranquila, normal, sonhos de casa com mãe, pai, irmãos, mimos e até mesmo os castigos merecidos por suas danações...
Mas a vida tem lá seus designios e não nos cabe compreendê-los... João nasceu e se pôs a correr pelo mundo, revirando tudo à sua volta, especulando o destino que a vida lhe garantiu à contra gosto, porque nenhuma criatura poderia escolher viver à revelia, errante, sem aconchego, amargurando ainda infante, sofrimentos que são estranhos até para quem já viveu uma existência inteira.
Outro dia, o menino chegou à escola com o olho roxinho, tingido à anil. Pôs todo o pessoal em alvoroço...
_ Mas João, o que lhe aconteceu?
_ Caso de polícia!
_ Violência infantil?!
A despeito da gravidade do tema, com a expressão mais matreira desse mundo, prontamente respondeu:
_ Foi nada não, tia... – a língua presa, cheia de chiados – Eu briguei com quatro meninos! Eu sozinho contra os quatro! – todo gabola...
_ E ninguém viu isso, menino?! – indignação.
_ Meu irmão viu, ele me defendeu... – e apresentou, orgulhoso, o outro infante também com o olho rajado de roxo...
Distinguia-se entre os dois meninos ares de malandragem e inocência. Nenhum dos dois convencia, entretanto...
Assim era o menino João, o chefe! Andava pela escola, desfilando imponente e malemolengo o seu corpinho parrudo, braços cruzados ao peito, olhos verdes desafiadores gritando em bom tom: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo!” Os confrades cismavam todos encolhidos, temendo algum confronto.
Haviam dias em que Deus nos acudisse! Eram de arrepiar! Quando surgiam pelo pátio os impasses corriqueiros... brigas de “bafo”, lutas intermináveis, coisas de natureza relevante para crianças... Lá estava o chefe, defensor, procurador, desembargador Dr. João Sem o Pé de Feijão! Empostava a voz travada e chiada e ia logo falando, importante:
_ Pode deixar que eu resolvo pra senhora, tia... – Tava decretado! Eram necessários argumentos sofísticos para demovê-lo da ideia de advogar.
Dia desses João me surpreendeu, e já não fora a primeira vez, enquanto em uma de nossas conversas, me revelava os segredos da sua alminha infantil já tão curtida nas reedições de sua vida. Resolveu falar-me dessa vez sobre a sua mãe... Assunto do qual eu teria me esquivado, não fosse a obrigação do labor e a vaidade de experimentar os sentimentos que nos aproximam dos Céus, que nos fazem imagem e semelhança de Algo verdadeiramente bom!
_ Tia, a minha mãe está livre...
_ Que bom, meu filho! Quanto tempo ela vai ficar desta vez?
_ Para sempre, se comportar-se direito...
_ Bem, fico feliz! Ela agora vai cuidar de vocês...
_ É... Já falei pra ela: se aprontar outra vez, não quero mais saber de pai, nem de mãe... vou ser sozinho no mundo!
Surpresa! Choque! Uma lâmina gelada dilacerou meu coração e partiu-o em mil pedaços. Tamanha resolução e excesso de desencanto! Talvez tudo se resolvesse se algum dia ganhasse de presente o seu pé de feijão, em cada folha mágica pendurada, um de seus sonhos coloridos de menino, para assim poder construir um futuro melhor.