Uma ultima vez

“Eu vou dar uma coisa pra essa porra sentar em cima!”

Eu movo minha mão lentamente em direção a bainha da Bowie, oculta pelo meu blusão. Larissa segura meu braço direito com delicadeza e impede que eu continue com o movimento. Ela me conhece muito bem.

“Não, por favor”.

Ela tem razão, a praça de eventos do pequeno shopping perto da praia está lotada, é a quinta-feira que antecede o carnaval, Rio das Ostras está abarrotada de pessoas de outras cidades, em meio a sua migração natural dos feriados. Eu afago seus cabelos, beijo sua bochecha e tomo mais uma golada de meu chope.

“É foda! Só tem filho da puta nessa porra!”

Mesmo na cacofonia reinante no ambiente, o sujeito faz questão de falar em altura suficiente para que eu pudesse o ouvir com clareza. Eu olhei para o balcão do quiosque, só idiotas e inseguros encaram, olhei em volta, abracei Larissa e lhe passei uma nota de cinqüenta reais.

“Vai pra casa, pega um táxi”.

“Peixoto, não, por favor, não faz isso não”.

“Não vou fazer nada”.

Larissa é uma boa menina, tem idade para ser minha neta, mas foi a única namorada que eu tive que, quando percebeu o que eu fazia para viver, nem ficou histérica, nem tentou tirar proveito. Estamos juntos a coisa de quatro anos, a um ano atrás ela descobriu o que eu fazia e começou a pressionar para que eu largasse.

“Isso é perigoso pra garotão, imagina pra você”.

“Sou melhor que muito garotão que tá por ai”.

“Mas isso não se discute” – sempre rebatia ela cheia de lascívia.

O fato é que Larissa tinha razão, eu não tinha mais idade para viver como um faxineiro freelancer, eu já tinha apagado muita gente na vida e tava com as mãos cheias de sangue e, realmente, não queria mergulhá-las em mais ainda.

“Chega uma hora em que um faxineiro mata tanta gente, que as almas dos mortos voltam para te pentelhar o juízo e, depois, você acaba ficando broxa” – costumava me falar o coronel Severino.

A seis meses atrás, aceitei meu último contrato, um tão bom que pode financiar minha aposentadoria na casinha que, a alguns anos, eu havia construído em Rio das Ostras. A seis meses eu morava junto com a Larissa e juntos tocávamos uma loja de informática e, principalmente, a seis meses eu não mato ninguém.

Até esse cretino começar a insultar minha mulher por causa de um banco de bar que ele havia deixado vago, em um quiosque lotado, numa noite de pré carnaval.

“Vai” – disse irredutível. Resignada ela baixou os olhos, se levantou partiu sem dizer mais nada.

Assim que ela se levantou, o cretino, um tipinho bombado vestindo uma camiseta com o desenho de um Pitt Bull e os dizeres “jiu jitsu” estampados nela, lançou suas duas mãos sobre o banco e o arrastou para o outro lado do balcão do quiosque.

“É essa porra mesmo, é assim que eu gosto!”

Instintivamente minha mão deslizou novamente por sobre a bainha da Bowie de novo mas dessa vez, eu me contive sozinho. Tomei mais um chope e me levantei, atravessei a rua e fiquei parado, oculto na esquina pela sombra de uma árvore, observando o que o tipinho marombado fazia.

Ao longo das duas horas seguintes, o boçal tomou cerca de catorze chopes, cantou todas as garçonetes de forma ofensiva e grosseira além de qualquer mulher que lhe passasse ao alcance dos braços, sendo sistematicamente repelido por todas elas. Após uma quantidade grande demais para se contar de mãos e uns dois ou três safanões, ele fez sinal para o dono do quiosque, um gordo de braços fortes que jamais saía do caixa, indicando o fechamento da conta com um confuso gesto simulando o rabiscar de um bloco. Hora de agir.

Sai de meu esconderijo e comecei a perambular pelas ruas próximas, sem tirar os olhos da presa, até encontrar o que eu procurava numa rua escura; uma menina com seus dezesseis anos, vestindo uma micro saia branca de pano e um soutien de biquíni fio dental, apoiada em um muro de uma casa próxima, completamente bêbada, vomitando o que me pareceu serem os almoços e jantas dos últimos dias. Esperei que ela terminasse e cheguei perto.

“Quer ganhar uma grana fácil?”

Ela me olhou com os olhos semicerrados, pareceu confusa por um instante e, em seguida, sentou-se em um pedaço limpo da calçada e abriu bem as pernas. Ela estava sem calcinha.

“Pode ser aqui? Não to me sentindo muito bem pra sair de carro agora”.

A cena me encheu de asco.

“Não é nada disso” – disse agarrando seus braços com força e levando-a para a esquina e apontei para o marombado – “Leva aquele cara ali até uma praia vazia e eu te dou cem pratas”.

Ela tentou dizer alguma coisa mas teve que tampar a boca para impedir um novo jato de vômito, aquiescendo com um sinal afirmativo de cabeça e um gesto de positivo com a mão livre. Assim que o marombado do jiu jitsu saiu do shopping, ela foi a seu encontro, trocou meia dúzia de palavras incompreensíveis e com a voz engrolada e, á seguir, começou a andar com ele pela praça onde uma banda animava os foliões locais alternando novas e velhas músicas carnavalescas.

O centro da cidade estava muito bem policiado, andando pelas ruas você facilmente encontrava policiais militares andando em duplas, e guardas municipais formando quartetos, mas, afastando-se poucos quarteirões para fora do centro da agitação, o que existia era um completo vácuo sem a presença da lei em parte alguma. Andamos por cerca de meia hora, chegamos a uma praia especialmente propícia para a realização do servicinho que eu queria fazer pois, além da completa ausência da lei, as obras de modernização da orla ainda não estavam completas ali de modo que o local tinha péssima iluminação o que facilitava muito o que eu tinha em mente.

Isca e peixe iam a alguns passos a minha frente e eu os seguia em silêncio com um cigarro aceso pendurado no canto esquerdo da boca, fiapos esfumaçados se perdiam nas trevas noturnas e me conservavam atento. Bêbados, os dois mantinham uma conversa confusa e que não fazia sentido nem para os dois. Depois de coisa de mais quinze minutos, os dois finalmente haviam chegado a um banco numa parte escura á beira do mar, eles se sentaram e começaram a se bolinar. Apaguei meu cigarro, me aproximei por trás dele silenciosamente e, bem próximo, saquei a Bowie de seu coldre.

Tinha seis meses que a Bowie não provava sangue ou saia de sua proteção, uma corrente de eletricidade percorreu o meu braço em toda a sua extensão e eu me senti como um amputado que, repentinamente, descobre que seu membro perdido encontra-se novamente no local em que deveria ter estado sempre. Seu cabo de osso se adaptou perfeitamente com suas reentrâncias e ranhuras na curvatura de meus dedos, tornando-se uma extensão de minha mão.

Eu estava completo novamente.

Lutando contra a própria embriaguez, o Pitt Boy lutava para desatar o laço de sua bermuda com a mão direita, enquanto, com a esquerda, bolinava a intimidade da garota, sugando os seus seios ao mesmo tempo. Enquanto estava com a cara enfiada no busto da garota, eu me aproximei por trás e rasguei seu pescoço com a faca, abrindo um corte profundo da esquerda para a direita, fazendo jorrar um jato escarlate sobre o colo da mulher que, devido a rapidez de meu movimento, me ocultando nas sombras logo após a ação e, principalmente, ao seu altíssimo estado de embriaguez, não compreendeu o que havia acontecido.

“Seu viado! Nojento! Vai vomitar no cú da tua mãe!” – gritou escandalosa, empurrando o garotão que, sem forças, caiu do banco, enquanto resmungando ia se lavar no mar revolto.

“Filho da puta! Manchou minha saia!” – reclamava enquanto jogava a saia fora, ficando completamente nua, coberta apenas pelo soutien torto de um biquíni fio dental que mal servia para ocultar parte de um de seus seios. Eu a vi se afastar por um tempo, cambaleando pela noite, sem dar sinal que compreendia o que havia acontecido.

No chão, o rapaz agonizava, cobrindo a própria garganta com as mãos, lutando para sobreviver, lutando para respirar, conseguindo, apenas, emitir sons desconexos e borbulhantes por sua garganta lacerada.

“Da próxima vez, seja mais educado quando, sem intenção, uma moça pegar o banco em que você estava sentado” – disse enquanto guardava a Bowie em sua bainha, baixava a braguilha da calça, botava o pau pra fora e urinava em sua garganta exposta, parcialmente coberta por mãos trêmulas.

Fui caminhando tranquilamente para o meu carro, assoviava uma música de minha época. Foi bom relembrar os velhos e sangrentos tempos, mas Larissa tem razão, isso realmente não é mais para mim, é um jogo de jovens.

Cruzei com uma florista que voltava para casa com o que restava de seu estoque, após uma noite inteira abordando casais apaixonados. Comprei uma dúzia de margaridas, as flores preferidas de Larissa. Ela vai ter uma bela surpresa.

Fabio Campello
Enviado por Fabio Campello em 01/11/2011
Código do texto: T3311884
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