Punhal da culpa
“Será culpa dos fracos, se não podem suportar o que sofrem os fortes?”
Dostoiévski
Tempo: vilão do tic-tac. Tento não pensar nele. Controlo minha mente com autoridade. Ou seria ilusão? A mesma que me faz sentir forte frente a culpa.
Punhal envenenado de cólera cravado no peito. Dedos crispados, dentes rangendo, músculos retesados para tentar suportar a dor da carne rasgada, sangrando. Seria mais fácil se meu coração fosse um perfumado campo de flores. Mas a terra é seca, dura, rachada pelo ódio.
Era meu aniversário de vinte anos. Vitória inesquecível chegar inteiro nessa idade. Dia azul, passarinhos cantando.
― Mãe, cadê o pai? ― a resposta foi uma lágrima.
Dando nó nas pernas, vermelhusco, olhar endiabrado, de braços abertos, veio ao meu encontro. Tudo acinzentou. Poderia pelo menos desejar que ele morresse, mas nem isso consegui.
Segurei a vontade de chorar, já era um homem! Um homem forte que não sofre! Desviei dos seus braços ébrios e fui trabalhar ouvindo os morcegos da caverna do sofrimento zombando de mim, com o punhal envenenado cravado no peito.
Abraçado pelos amigos me sentia protegido. Retribui com cara de feliz. Contraste desumano. Por fora bela viola, por dentro pão bolorento.
Ainda ouço minha voz sarcástica perguntar:
― Custava dar um abraço no teu pai?
― Não é meu pai; é um bêbado sem vergonha!
― É teu pai e só você não percebe isso!
E dez anos depois percebi. Pensei que fosse tarde demais, rezei, adubei a terra do meu coração na esperança de brotar pelo menos um matinho qualquer.
Meu pai, num leito de U.T.I., despido de saúde. Mudanças profundas: parte do coração morto e vontade viver. Minha sombra é o medo de perdê-lo.
E o punhal continua cravado no peito, agora envenenado de culpa. Invoco a coragem de mil guerreiros medievais para seguir adiante.
Porque não consigo me lembrar quando foi que ele parou de beber?