Final (?)

Escuro. No começo, estava escuro. Todas as pessoas naquela rua, e provavelmente no mundo inteiro, olhavam agora para cima, com os olhos agoniados, procurando uma explicação para o Sol ter se desligado tão repentinamente como se desliga uma lâmpada qualquer. As luzes dos carros que transitavam na rua não conseguiam iluminar praticamente nada daquele breu, e logo elas foram sendo também engolfadas pela escuridão crescente. Todas as luzes, fossem lâmpadas, lanternas, faróis, neons, lampiões, qualquer uma, estavam esmaecendo, como se a escuridão fosse um ser vivente, ávido por engolir tudo que tivesse luz. Como era de se esperar, a balbúrdia começou. Gritos, pragas... Era como se as pessoas tentassem compensar a falta de luz com o barulho, só para terem certeza de que ainda estavam vivas. Logo, a balbúrdia foi se tornando maior. Podia ouvir brigas e gritos de dor e raiva por todos os lados, embora não pudesse ver a mão e a boca que os emitia.

As pessoas reagiram de formas bastante diferentes. Alguns passavam por perto de mim com pedaços de pau ou qualquer coisa pesada o bastante para machucar alguém, talvez ávidos por esta chance de colocarem seus instintos selvagens para fora. Outros se escondiam embaixo do que pudessem, e cobriam o rosto com as mãos, como se isso os fizesse invulneráveis. Alguns levantavam as hipóteses mais absurdas possíveis: implosão solar, guerra nuclear, invasão alienígena, superaquecimento global, carbonização atmosférica... A maioria destas nem mesmo existiam até ali, e eles as espalhavam aos quatro ventos, como se soubessem do que estavam falando. Havia aqueles que simplesmente fechavam os olhos e fingiam que nada daquilo estava acontecendo, como se isso fosse fazer tudo voltar ao normal. Mas não eu. Eu sabia. Sabia o que estava acontecendo, sabia quem estava por trás daquilo, e mais que tudo, sabia o que tinha de fazer.

Minha casa estava às escuras, mas aquilo não me impediu de revirar algumas gavetas e armários e colocar tudo o que iria precisar dentro de uma mochila. Um pouco de comida, algumas roupas, nada mais. Precisava ser rápido, o tempo não era meu amigo, e minha viagem não seria fácil nem pequena. A casa, como sempre, estava vazia, então não precisei esperar mais. Um isqueiro, algumas cortinas juntadas no meio do tapete da sala, e cinco minutos depois, olhava-a arder quase que por completo, da rua. Não haveria volta.

De novo na rua, não conseguia enxergar muito mais que alguns palmos à minha frente. Percebi que minha casa não era o único incêndio por ali. Vários carros e casas também eram consumidos pelo fogo, e formavam fracas fontes de iluminação. Talvez elas pudessem me guiar por alguma parte do caminho. A escuridão estava presente, mas o silêncio não. Gritos, xingamentos, tiros, explosões, tudo se misturava numa sinfonia medonha. A humanidade, mais uma vez, mostrava a sua forma de responder ao caos: mais caos. Não precisei andar muito para avistar os primeiros desordeiros. Ocultando-me por trás dos carros e passando rente à parede, consegui evitá-los, mas sabia que não teria a mesma sorte tantas vezes.

Após uns vinte minutos de tatear às cegas pela rua, percebi que chegara à avenida principal da cidade. Ali, o barulho era algo mais que ensurdecedor. As buzinas dos carros enchiam o ar, junto ao som da guerra fora deles. Pobres tolos. Na ilusão de fugir. Mas eu sabia. Sabia que era só uma questão de tempo.

Sempre me escondendo o melhor que podia, fui avançando até o final da avenida. Não era fácil, pois o que não faltava ali eram pessoas desvairadas, que não se importavam com quem acertariam com suas mãos, pés, facas ou armas. Por algum milagre, consegui chegar ao pórtico de saída da cidade. Ali, procurei o mais rapidamente que pude por um veículo qualquer, que não me embaraçasse naquele maldito engarrafamento cheio de desesperados. Consegui encontrar uma moto, com a lanterna de trás quebrada, mas para minha alegria, com o farol dianteiro ainda funcionando. A luz era fraca, mas já ajudava. O piloto jazia a uns 2 metros, com sangue saindo pela abertura do capacete e um furo na nuca. Pelo jeito, ele não precisaria mais dela. Apressei-me em sair dali, e dois minutos depois, estava numa estrada de terra, rumo à interestadual. Minha sorte me aguardava.

Aos trancos e barrancos, consegui chegar à interestadual antes que a gasolina acabasse. Avancei por ela, trabalho nada fácil, devido à enorme quantidade de carros que ali se emaranhavam. Para encurtar a história, tive que roubar gasolina de um carro acidentado, para poder chegar a um posto de gasolina ainda naquele dia. Não tinha tempo a perder.

Ao chegar ao posto, encontrei-o abandonado, como já era de se esperar. Os frentistas deviam ter corrido para casa, ou morrido no caminho, e o patrão devia estar se escondendo embaixo da cama, ou talvez aproveitando o tempo que lhe restava com sua esposa ou outra qualquer, encima da cama. Isso não vinha ao caso. Afortunadamente, as mangueiras ainda estavam funcionando, e eu já me preparava para encher o tanque da moto, quando olhei de lado. Lá estava ele: um Camaro 78, abandonado ali, sem ninguém por perto. É muita sorte, pensei comigo mesmo, enquanto fazia ligação direta no motor e enchia o tanque deste. Agora a viagem seria mais fácil. Os faróis do carro, diferente dos da moto, iluminavam como dois pequenos sóis aquela escuridão.

Fiz meus cálculos: aproximadamente 800 km ainda me separavam do meu destino final, e o tempo corria solto na ampulheta. Eu sabia que não tardaria agora, estava para acontecer, mas mesmo assim não estava pronto quando aconteceu.

Talvez duas horas depois de colocar o carro na estrada, com o pé embaixo, começou. O céu, como se fosse um livro, abriu-se ao meio num espetáculo de luz. Se antes havia apenas breu, agora era como se mil sóis tivessem se juntado ao primeiro, para compensar o tempo perdido. Sabia que não devia olhar, mas mesmo assim, olhei.

Para meu espanto, não me ceguei. Em meio a toda aquela luz, podia ver uma forma delineando-se. Várias formas, para ser mais exato. Foram aparecendo até que o Trono Sagrado fosse visível em todos os seus detalhes, e Aquele nele sentado aparecesse pela primeira e última vez perante sua criação. O Grande Livro foi-Lhe apresentado, e o Dia do Juízo teve início. Mas aquilo pouco importava para mim.

Acelerei, e por mais três horas, viajei em meio àquela luz cegante, com o som das harpas dos anjos e a voz de Deus a ler o Grande Livro, mas nada de Suas palavras chegava aos meus ouvidos. Meus olhos estavam postos adiante, e meu coração já chegara a muito aonde eu agora me dirigia. As pessoas saíam dos carros, a guerra parara, ninguém se movia, todos com os olhos postos no alto, esperando por seu destino. Mas eu não deixaria que o destino viesse ao meu encontro. Eu o enfrentaria, e o venceria, se preciso fosse.

Por fim, eu cheguei. A cidade estava quieta, como eu já esperava, e todos tinham os olhos postos no alto, como eu também esperava. Agora chegara a parte mais difícil. Desci do carro, e comecei minha procura.

Bairro por bairro, rua por rua, eu procurei. Rosto por rosto, eu vasculhei. Quantos dias se passaram, não sei dizer, mas não foram poucos. Mas eu havia de encontrar. Por vezes, levantava os olhos e via a Face d’Ele. Inescrutável. Por vezes, senti Seus olhos me seguindo. Talvez Se perguntando porque aquele mero mortal não se aquietava, como todos os outros, e esperava pacientemente por seu nome no Livro, e seu veredito final. Eu não esperaria. Sabia que, entre aquelas almas, havia uma que encaixava à minha, e não descansaria enquanto não a encontrasse. Que Ele me chamasse, me repreendesse... A menos que me fulminasse, não me impediria de encontrá-la.

E a encontrei. Após muito tempo de procura, encontrei-a. Ela não tinha os olhos no céu. Olhava para o chão, sentada em um banco da calçada da praia, como que a esperar... Sabe-se lá pelo quê. Aproximei-me... Olhei-a nos olhos, e aquele momento disse o que precisava ser dito. Eu não podia esperar mais. Apertei-a em meus braços, e não estava disposto a largá-la nunca mais.

Agora eu podia realmente sentir os olhos d’Ele em mim. Em nós, melhor dizendo. Seu rosto ainda estava impassível, e eu não saberia dizer se aprovava aquilo. Para minha surpresa, Ele disse:

- Que seja, então.

E subitamente, senti que não me encontrava mais ali. Pisava num chão de nuvens, e sentia minhas mãos ainda nas dela. Olhei ao redor. Não havia ninguém mais. Seria aquilo o Paraíso? Foi então que, ao nosso lado, materializou-se o próprio Criador. Trajado como um homem, mas Sua presença não deixava dúvidas. Com uma voz que era como a de mil trompas celestiais, perguntou:

- É ela a quem você tanto buscou?

- Sim – eu respondi.

- Então, se ela o desejar, Eu mesmo os abençoarei.

E o resto? Ainda depende dela.

Jhonata Luís
Enviado por Jhonata Luís em 30/10/2011
Código do texto: T3306646
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