FEDRA
® Lílian Maial
Olhava-se longamente todas as manhãs, ao espelho, procurando motivos para não gostar de si. E não os encontrava. Na verdade, admirava-se, não só pela beleza, mas pela intensa capacidade de atração, dissimulação (um tanto nervosa), embora assustadoramente convincente.
Fedra sentia-se poderosa, mas não deixava transparecer seu poder. Ao contrário, assumia postura tímida, submissa, encantadoramente feminina, apesar de ostentar idéias politizadas e bem saber sua posição no mundo.
Acariciava-se com freqüência, talvez fruto de uma sensualidade inata, ou, quem sabe, pelo vazio de uma relação desgastada com um homem mais velho e ocupado.
Diferentemente dele, Fedra adorava as novidades, a natureza, o burburinho das ruas, dos aglomerados, as festas, a música, quando sentia-se viva, jovem, pulsante.
E foi graças a essa sede de juventude e vida, que reparou em Hipólito, um jovem e belo assistente de seu esposo Teseu, de características algo delicadas, provavelmente advindas da pouca idade e experiência. No entanto, a brancura da pele, o frescor virginal, a beleza intocável, tornavam-no por demais atraente aos olhos e à imaginação de Fedra.
Seu desejo aumentava a cada dia. Reprimiu-o o quanto pôde, mas a aparente indiferença de Teseu, sua dedicação à profissão, ao desempenho, suas manias pseudo-aristocráticas e sua velhice precoce, a atiravam mais e mais à sensualidade dos encontros oportunos com Hipólito, mesmo que em fantasias.
E não havia mulher que não percebesse a fome nos olhos de Fedra.
Sua empregada já havia reparado que os patrões não dormiam juntos, ou, se dormiam, nada além de sonhos acontecia naquela cama fria e branca. E foi ela, a doméstica fiel à patroa, quem insinuava que o jovem Hipólito a queria, instigando-a.
Fedra não via desejo em Hipólito, ao contrário, sentia-o muito distante dela ou de qualquer mulher. Parecia mais um monge tibetano, coisa muito rara nesses dias. Contudo, não seria aquele comportamento um disfarce, uma forma de driblar a vigilância de Teseu?
Após um longo período de conflito entre certo e errado, moral e imoral, justo e injusto, Fedra não suportava mais guardar seu amor, e declarou-se a Hipólito, cuja reação lançou-a num mar de medo, rejeição e ódio, em antagonismo a tão belo sentimento de amor.
Imediatamente notou a lealdade de Hipólito a Teseu, e preferiu acreditar que Hipólito, jovem e inexperiente, assustara-se com a possibilidade da descoberta do patrão, e as conseqüências de tal traição.
Porém, depois de várias horas confabulando com seus pensamentos, sabia que corria o risco de ser desmascarada por ele, tal fora sua expressão de horror ao entender-se alvo de tão desmedida paixão.
Naquela noite, ao sentir o hálito do esposo a beijar-lhe a face e expor-lhe as conquistas do dia, Fedra sabia o que teria de fazer.
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Dias após o funeral de Teseu, Fedra reaproxima-se de Hipólito, desolada, toda de negro, num decote profundo e provocante, mas este novamente a repele, quase que a acusando da morte do patrão, com o olhar.
Fedra insiste, suplica-lhe por um beijo, atira-se a seus pés, desnuda os seios, abraça-o, alisa suas calças, oferece-lhe segurança financeira, cargo elevado na empresa, mas só obtém a ojeriza de Hipólito, estampada em seus lindos e oblíquos olhos.
Ele a atira ao sofá, trata-a como a mais vil das criaturas, como se fora portadora de doença contagiosa, e a deixa em lágrimas, solitária com suas lacunas e seu desejo torpe.
Como ele pôde desdenhar de amor tão puro? Como pôde jogar fora a felicidade? Não via a beleza desse amor quase adolescente? Não enxergava a grandeza, a entrega, tudo o que seria capaz de fazer em nome daquele amor?
Não, ele era bom demais, puro demais, elevado demais para aceitar um amor maduro, vítima do destino, fora de hora, mas ainda assim intenso, verdadeiro, profundo e belo.
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Nada pior que uma mulher rejeitada. Nada mais cruel que um olhar de desdém, em quem se sabe linda e decadente.
Aquilo não ficaria daquele jeito. Ela não teria a posse de Hipólito, seu louco amor, e ainda seria obrigada a conviver com o remorso, a culpa, a vergonha e os espelhos? Passar por ele, num futuro imaginário, de braços dados com uma esposa mais jovem, ladeado por dois lindos e rosados rebentos? Nunca! Se não fosse seu, não seria de mais ninguém.
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Assumiu a direção da empresa, mas todas as medidas necessárias e decisões de cunho prático ela delegava a Januário, o braço direito de seu falecido marido.
Januário era pouco mais jovem que ela, vinha de família humilde, mas havia estudado e conseguido vencer na vida por esforço próprio. Chegara aonde chegara com muito sacrifício, inclusive da vida pessoal, dos amores e dos prazeres.
Fedra já havia reparado nos diversos olhares ciosos por parte de Januário, mas nunca havia antes se interessado, insana que estava de paixão por Hipólito.
Entretanto agora, depois de tanto tempo de solidão, e da clara rejeição de seu amado, a amarga Fedra, convivendo com o homem que a devorava com os olhos, e consumindo-se em desejo, raiva e uma necessidade de se sentir mulher, entrega-se a um tórrido romance com Januário, que passa a idolatrá-la e a amá-la com devoção.
A ele, Fedra confidencia, como que escandalizada e algo desconfiada, a ousadia de Hipólito e suas supostas intenções de torná-la amásia, isso com Teseu ainda vivo. Insinua que a estranha e inexplicável morte de Teseu poderia ter sido intencional. Deixa Januário atônito, e inicia uma trama diabólica, declarando-se vítima de chantagem.
A cada dia, Fedra engendrava uma forma de fazer com que Januário se apaixonasse mais, a ponto de manipulá-lo totalmente, não só com seus atributos físicos e seus conhecimentos na arte do amor e do sexo, mas com presentes caros e inesperados, com viagens de finais de semana paradisíacas, com pequenas surpresas que tanto agradam aos homens.
E também a cada dia, Fedra transparecia seu medo de Hipólito e sua chantagem, além de colocar na cabeça de Januário, paulatinamente, que ele, seu intempestivo e verdadeiro amor, seria o único que poderia livrá-la da danação.
Não precisou de muito tempo para que Januário começasse a tramar um jeito de desaparecer com Hipólito. Nada que dinheiro, poder e conhecimento das pessoas certas não resolvesse.
Algum tempo depois, por defeito de fábrica, o carro de Hipólito envolve-se num acidente fatal.
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Fedra não conseguia mais dormir. Não comia. Não saía. Não era mais a mesma. O remorso a consumia. Tudo o que queria era ser feliz, conhecer o amor, viver intensamente o sentimento mais primitivo, mais puro, mais lindo que o ser humano pode possuir.
Não desejava a morte de seu amor, embora soubesse que não suportaria vê-lo com outra.
E por que Januário teve de facilitar tudo? Por que Januário não a dissuadiu do intento? Por que tudo não pôde ser diferente?
Maldito Teseu! Maldito Januário! Maldito Hipólito! Malditos todos os homens!
Hipólito, ah, Hipólito! Não, maldito não, bendito! Doce segredo!
Se soubesse quanto amor estava reservado para ele... se soubesse das noites de sonhos loucos, desvairados, de lutas de corpos na cama, de apaziguamento de amor depois de cada gozo...
Agora a dor, incomensurável dor de ter de olhar-se todos os dias, de ver as olheiras, as rugas, a maldade toda, tão claras nos espelhos, esses abutres, aguardando os dias, à espreita de mais dias, dos anos, da solidão e da velhice. Os espelhos, que sabiam de tudo, como seu travesseiro.
E vinham os calmantes, os soníferos, os sedativos, Valiuns, Lexotans, Loraxes, Dalmadorm não dorme. Tantos e de nada adiantam. Não funcionam! Talvez se somados... se bem tomados... dois ou três de cada, ou mais, jamais... nunca mais...
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Assim que o féretro seguiu, Januário tira a garrafa do bolso, garrafa de expiação de sua culpa, sua saudade, sua ingenuidade. E bebe mais um gole de solidão, de desamor, de dor. Lá longe, ainda vê Fedra gargalhando, suas costas sedutoras, suas coxas fortes, sua boca carnuda. Ela acena e sorri . Ela era sua, estava ali, tão ao seu alcance... sempre soubera que havia uma Fedra no caminho...
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