O ADIVINHÃO

Gilberto era o terceiro filho de Edgar e Helena. Aos dez anos cursava o primeiro ginasial, destacando-se por sua inteligência. Embora de temperamento um tanto retraído, introvertido, tinha seu pequeno círculo de bons amigos, aos quais não raro surpreendia com atitudes que, embora lhes parecessem estranhas, atribuíam-nas à sua esquisitice. Dias havia em que se ensimesmava, ficando afastado dos colegas. Quando interpelado, era monossilábico, comportamento que seus pais e irmãos foram, com o tempo, aceitando como normal, característico de sua personalidade. Afinal de contas cada pessoa tem o seu modo de ser.

Aos domingos, Edgar costumava ir, com a família, visitar seus pais, moradores de uma casa grande com espaçoso quintal povoado de plantas. Ficava no bairro vizinho e faziam uma razoável e divertida caminhada até lá. Antigo ferroviário aposentado, seu Ernesto dedicava maior parte do seu tempo ao quintal, onde mantinha algumas vacas leiteiras, reservando a tarde para a leitura, pois dispunha de uma boa biblioteca. Até andava rabiscando apontamentos sobre episódios de sua longa permanência na Cia. Estrada de Ferro, ao tempo em que o Cel. Sabóia era seu gerente geral e mesmo depois que a empresa passou para o Governo Federal.

Enquanto Aldo e Luzia, seus outros dois filhos, se divertiam com os primos da mesma idade, Gilberto ia vasculhar a biblioteca do avô à procura de livros de ficção. Já lera várias obras de Julio Verne, os romances indianistas de José de Alencar, conhecera alguns de Humberto de Campos, algumas obras de Machado de Assis e de outros romancistas brasileiros.

Em meio aos autores estrangeiros, encontrou “Judas, o Obscuro”, de Thomas Hardy, que leu e releu em poucos dias. A seguir, viu David Copperfield, de Charles Dickens. Daí passou para as obras de Marcel Proust, encontrando na história dos seus personagens algumas peculiaridades com as quais julgou identificar-se, o que, de certo modo, o intrigava. A esse tempo já cursava o terceiro ano, mas não mudara a natureza do seu temperamento. Seu Ernesto, além de bom leitor, gostava de jogar xadrez e viu em Gilberto um potencial aprendiz. Convidou-o para ir nas noites de sábado tomar umas lições com ele, o que foi aceito com muito prazer.Admirou-se o avô com a rapidez com que o neto aprendia o movimento das peças e a fazer lances surpreendentes; com o tempo, já era capaz de dar cheque mate no padrinho. Todos esses dons eram também razão de reflexão para Gilberto: de onde lhe vieram essas faculdades especiais, que não via nos irmãos nem nos seus muitos colegas e nos amigos? Meditava sobre isso, à noite, ao deitar-se.

Certo dia, à hora do almoço, todos na mesa, súbito ouviu-se uma exclamação que assustou a todos. Partira de Gilberto, que pareceu em transe por alguns segundos, findos os quais afastou o prato e começou a chorar. Aturdido, o pai quis saber o que acontecera e o filho disse que tivera uma estranha visão: um carro atropelara seu avô que, antes de falecer, chamara pelo seu nome, como se lhe quisesse dizer algo. Gilberto era o neto predileto de seu Ernesto, não apenas pela afinidade no gosto literário, também pelo seu temperamento calmo e arredio que lhe agradava.

A revelação causou preocupação na família. Ninguém sabia atinar com o sentido daquela coisa estranha. Ele mesmo, Gilberto, estava transtornado, jamais experimentara sensação tão absurda.

Um pouco mais calmo, sem entender a razão do ocorrido, mesmo assim Edgar decidiu mandar alguém à casa do pai para saber se acontecera alguma coisa. Não precisou. Logo chegou um amigo com a notícia da morte do pai, que se dera nas mesmas circunstâncias da visão de Ernesto. Foi um choque para todos.

Com o decorrer do tempo a vida familiar voltou à normalidade. Mesmo Gilberto parecia haver mudado um pouco, ampliara o número de amigos e até conseguira uma namorada.

Entretanto, numa quarta-feira de agosto, ao acordar, disse ao pai que não queria ir à aula naquele dia; não passara bem à noite, sentindo-se indisposto. Sua mãe, preocupada, perguntou-lhe o que estava acontecendo.

- Nada demais, apenas um pequeno mal estar, mas não desejava ir ao colégio nestas condições.

Mais tarde soube-se que o professor de Matemática, de apenas 38 anos, sentira-se mal e sofrera um enfarte fulminante. Esse fato, aliado ao anterior, voltou a preocupar seus pais, mas não quiseram que o assunto saísse do âmbito familiar; por isso, chamaram os outros dois filhos e recomendaram nada comentar com ninguém, o mesmo fazendo junto aos demais parentes. Consideravam Gilberto talvez dotado de um “sexto sentido”.

Edgar, fanático torcedor do Baraúnas, todo domingo ia ao campo da Liga Desportiva ver o jogo, quaisquer que fossem os contendores. Programada uma partida entre o Fortaleza, do Ceará, e o Humaitá, o fato movimentou a cidade. Mas, no dia, ao preparar-se para sair, Gilberto pediu-lhe que não fosse. Estava com um pressentimento de que alguma confusão iria ocorrer e seria, talvez, coisa grave. Embora não fosse supersticioso, mas pensando nos dois fatos precedentes, decidiu Edgar concordar com o pedido do filho. Ficou em casa numa ansiosa expectativa, nem tanto pelo resultado do jogo, mas para saber se algum conflito sucedera. Mais tarde soube que um torcedor do Humaitá, que perdera o jogo, desentendeu-se com um cearense e o sururu alastrou-se. De repente houve tiros, tendo como resultado um morto, dois feridos e hospitalizados. Quatro pessoas foram presas.

Esse novo episódio aumentou a inquietação de seus pais. Não sabiam a que atribuir o estranho dom do filho, tais visões e sonhos. Não conheciam nenhum caso igual na historia familiar, fosse na de Helena ou na de Edgar. Este se lembrava - e comentou isso com a esposa - que, quando menino, ouvira falar de um homem, um tal de Severino, que era conhecido no bairro como bruxo por ter adivinhado certos acontecimentos com antecedência. Por isso, todos, especialmente os meninos, o temiam, embora fosse um homem trabalhador e pacífico.

Católicos que eram, concordaram em ir conversar com o pároco da igreja do seu bairro, considerado um sacerdote estudioso. O padre ouviu o relato que lhe contaram, motivo de suas preocupações. Na verdade, disse o padre, tratava-se de um fenômeno incomum. Algumas pessoas eram dotadas dessa capacidade que os estudiosos chamavam de para-normalidade, indivíduos capazes de prever a ocorrência de alguns acontecimentos, o que é chamado de premonição. Que isso não afetava a personalidade dessas pessoas, que poderiam ter uma vida comum.

Não obstante todas as precauções da família no sentido de que os acontecimentos não se propalassem, em pouco tempo eles se tornaram públicos. Seus amigos começaram a chamá-lo de “adivinhão”, apelido que logo pegou e passou a ser conhecido na cidade, mas não alterou o comportamento de Gilberto.

Dentre os seus amigos, aquele com quem melhor se identificava e lhe merecia plena confiança era Tobias. Era com quem costumava se abrir e revelar seus problemas, a perturbação que os fenômenos ocorridos com ele e o constrangimento que sentia por ser visto como uma pessoa anormal. Tobias, um jovem inteligente, estudioso e sensível, que sempre tinha palavras de compreensão e conforto, conseguia tirá-lo do desânimo e infundir-lhe confiança em que tais coisas seriam, com o tempo, superadas.

Gilberto já concluíra o curso ginasial, naquele tempo de cinco anos, mas não resolvera ainda que carreira seguir. Iria aproveitar as férias para ler alguns livros que selecionara na biblioteca que o avô lhe deixara e depois decidiria.

Certa vez, Edgar, em conversa com um amigo de sua confiança, que era espírita, narrou todos os acontecimentos que tiveram a previsão do filho. No entender desse amigo, Gilberto teria uma forte mediunidade, o que Helena de pronto, como católica, rejeitou. Ficou, assim, Edgar entre a opinião do padre e a do espírita, mais propenso, porém, a aceitar a do sacerdote que o convencera com fundamentadas explicações que lhe pareceram mais razoáveis. Gilberto decidira estudar para um futuro concurso. A ele próprio intrigava os pressentimentos que o acometiam e chamavam a atenção de todos e até o tornavam alvo da curiosidade geral, o que naturalmente o incomodava muito. A alcunha de “o adivinhão” com que, vez por outra, os amigos jocosamente o tratavam, ele a recebia inteligentemente com um sorriso.

Continuava o namoro com Adelaide, cuja beleza e bons sentimentos o cativaram, mas ultimamente esse relacionamento que até lhe fazia bem, vinha gradativamente esfriando, passando a vê-la com menos freqüência. Andava calado além do normal, parecendo triste. Diante disso, Adelaide, que gostava dele, quis saber o que estava acontecendo. Respondia que não era nada, mas de um modo que não convencia.

O domingo foi um dia alegre para Edgar. Seu time vencera o Humaitá por 3 x 1. Tomou com os amigos algumas cervejas no bar próximo. Toda a família esteve à mesa no jantar. Gilberto fora à casa de Adelaide surpreendê-la com o rompimento do namoro, alegando que seu espírito estava passando por um momento confuso e difícil, sendo melhor para ambos dar um tempo até que pudesse superar seus problemas. Ao sair, antes de ir para casa, caminhou pelas ruas da cidade, que lhe parecia desconhecida. Nessa caminhada foi rememorando todos os fatos de que fora protagonista, sobretudo na primeira ocorrência, a do “aviso” do acidente com o avô, relembrando dos detalhes que lhe contaram, que chamara seu nome antes de falecer.

Uma discreta dor no peito o preocupava. Lembrou-se de Tobias e, apesar da hora, foi à sua casa. Queria, mais uma vez, buscar no amigo palavras de conforto e confiança. Contou-lhe que terminara o namoro com Adelaide. Não se sentia em condições de manter um compromisso e pedira-lhe tempo até que pudesse vencer o estado de espírito em que vivia. Confessou-lhe que, ultimamente, vinha sentindo algumas dores no peito, que atribuía ao seu sofrimento mental. Tobias tinha sempre o poder de tranquilizá-lo com expressões de carinho e encorajamento, mas sentia, naquela noite, que Gilberto estava sob forte emoção, de modo que, ao se despedirem, recolheu-se com um sentimento de tristeza.

Gilberto chegou em casa às onze da noite, encontrando os pais ainda acordados. Deu-lhes boa noite, como costumava fazer ao deitar-se, mas sem o habitual sorriso, o que os pais notaram, mas não estranharam.

No dia seguinte, notaram que o filho estava demorando a aparecer. Ansiosos, foram ao seu quarto e o chamaram. Gilberto, que parecia dormir tranquilamente, estava morto.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 27/10/2011
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