TODA SEXTA

Hoje trabalhei menos. Amanhã é sábado e o movimento aqui no escritório está bem menor que o normal. Houve tempo de eu ficar observando uma cena que sempre vejo, mas nunca havia me chamado a atenção como hoje. Vejo sempre involuntariamente, e apenas em relances rápidos, sempre atarefado com meu trabalho.

Trabalho num prédio que fica em frente ao cemitério central da cidade. A rua é sempre muito movimentada e ninguém nunca para com a intenção de ficar observando o que se passa ao seu redor. Aliás, um cemitério dentro de uma área movimentada quase não chama a atenção de ninguém, parece que perde seu poder místico e sagrado, está morto como todos os que ali repousam. Neste mundo ninguém mais tem tempo para os mortos, e na verdade, nem estamos tendo tempo para os vivos. O cemitério é antigo e possui ainda aqueles túmulos que parecem obras de arte, com estátuas e bustos feitos em cobre e luxuosamente adornados. Há, na segunda rua interna, um túmulo ainda inacabado, sem pintura e sem estátua de luxo. Mas está sempre com uma flor branca em cima dele. Toda sexta é assim.

A noite de quinta feira estava fria. Afrânio contemplava de sua janela a noite de céu limpo e repleto de estrelas. Seus braços já estão acostumados com a condição de dar suporte ao rosto naquela janela que guarda silêncio e segredos tantos, choros vários e alegrias poucas. A casa fica localizada longe do centro da cidade, quase no fim dela. Ele já se aposentou e passa os dias naquele lugar repleto de nada. Uma rua bastante comum, calçada de pedra e com árvores nas portas de todas as casas, fazendo a sombra que abriga os vizinhos toda tarde a conversar, depois de um dia de trabalho. Ele fica solitário naquela pequena casa que fica junto à rua, sem varanda ou jardim. É branca, pintura antiga, gasta pelo tempo e cheio de marcas de chuva. Uma porta do lado esquerdo e quatro janelas de madeira igualmente gasta pelo passar dos anos, num azul claro que hoje já quase desbotado e ao longe se confunde com a cor da casa. Mora com Francisca, sua filha mais velha que dele cuida, já com tantos problemas de saúde.

Afrânio era lavrador e trabalhava na sua terra natal. Viúvo de Dona Eustáquia, que morrera ainda jovem, quando os filhos eram pequenos, ele trabalhou duro para dar a melhor educação que pudesse oferecer aos meninos, como ainda carinhosamente se dirige a eles. Sua irmã assumira o lugar da mãe assim que esta lhe faltou. Afrânio saia de casa ainda no escuro, ocupava-se num assento na carroceria de um velho caminhão que levava seus companheiros e ele para o trabalho duro, ao sol escaldante e constante, nas fazendas da pequena Vila de Santo Antônio dos Milagres. É com saudade que, mesmo apesar de tantos sofrimentos ele se lembra da sua terra natal. Após a aposentadoria, mudou-se para Divinópolis, onde os filhos estudavam. Veio viver com Eduardo, que morava com os amigos até que o pai se mudara e comprara, com as poucas economias que possuía, uma casa na cidade. O filho não se importava da vida simples. Era acostumado a ela. Francisca é enfermeira na e está acostumada a cuidar de idosos doentes.

Eduardo era um menino bonito, simpático e alegre, cheio de vida e estudava na faculdade de medicina. Passara no vestibular, e com muito sacrifício trabalhava com fotografia para ajudar o pai em casa. Afrânio sentia muita falta de sua esposa, mas vivia feliz com os filhos que o cercavam de carinho.

Hoje o dia amanheceu com uma chuva fina e fria. Talvez por isso o movimento no escritório pela manhã esteja bem menor. Parei-me diante da janela a contemplar a cidade que cresce a cada dia um pouco mais. Foi quando vi aquele senhor chegando e entrando no cemitério e fiquei observando. Aquele velhinho encurvado fazia seu caminho da sexta feira, sua via sacra semanal. Ontem, da sua janela ele havia chorado bastante. Foi deitar-se já tarde da noite e revirou-se na cama por muito tempo ainda. Penso que assim deve ser todas as quintas-feiras. Em seus pensamentos sempre vem o rosto do futuro médico, que sonhava em dedicar-se ao tratamento de crianças com câncer. Sonhava, como todo jovem, em poder mudar o mundo, em poder curar pessoas e descobrir curas de doenças tantas... E quanto mais se afundava nos seus pensamentos, Afrânio mais chorava...

A chuva fina e fria não interrompera aquele homem. Com um casaco preto e uma calça jeans desbotada, um guarda chuva surrado, ele se encaminhava para aquele túmulo simples. Ficou mais de uma hora ali estático, parecendo inerte. Numa mão, um terço no qual rezava copiosamente, nos olhos, lágrimas de dor e de consternação, e na mão esquerda uma rosa branca, tal qual sonhava ser o uniforme de trabalho do filho.

Esse ritual já completa um ano e meio. Eduardo saiu numa quinta-feira, feriado prolongado para participar de uma festa com os amigos do segundo ano de faculdade. Seria uma confraternização próxima ao fim do ano. Sorriu seu largo sorriso, de menino feliz e sonhador, deu um longo abraço no pai e na irmã e saiu daquela casa branca, de quatro janelas rumo ao clube. Já na sexta-feira, madrugada adentro, na volta junto com os amigos, Eduardo teve interrompida sua vida quando um carro desgovernado e em alta velocidade colidiu exatamente no lado do banco em que o jovem estava. Seus amigos também ainda não se conformaram com o acontecido, mas o pai sofreu no coração o mais duro golpe de sua vida. Sofre o dobro do que sofreu pela esposa. De repente viu seu mundo ruir e sua vida findar. É um luto que não desaparece, é um membro cortado de seu corpo sem regeneração possível.

Afrânio todos os dias visita a capela de sua comunidade, e toda sexta, ônibus lotado, pela manhã vai ao cemitério e cumpre seu ritual. Vai visitar seu filho que ali repousa o sono dos santos e, com ele sepultado ali também sua vivacidade. Ao final, guarda seu terço, beija solenemente sua rosa e a deposita ali, embebida de suas lágrimas de amor e saudade. Afasta-se lentamente, de costas para a rua, como quem não quer sair daquele lugar, e no portão do cemitério enxuga as lágrimas e desaparece em meio à multidão alheia à sua dor. Segue seu caminho para sua casa branca, onde encontra Francisca e depara-se com a foto de Eduardo sorrindo, que fica em destaque na sua sala. E dirige-se ao seu quarto e sustenta o rosto com seus braços cansados e contempla o céu escuro daquele dia e cala-se no silêncio de sua idade avançada e de sua dor inconsolável.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 24/10/2011
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