ASILO IMACULADA BLUES BAND

O QUE SE PASSA NO ASILO

Depois de um dia difícil e cansativo, peguei a minha bolsa, encerrei o expediente na biblioteca pública onde trabalhava e alcancei a rua estreita na lateral da Igreja, cujas paredes freqüentemente eram utilizadas como mictório. Era mais um fim de tarde na pequena cidade e eu levaria cerca de meia hora de caminhada até chegar no Asilo Imaculada. Na porta já estaria, como de costume e em todos os dias, o amigo Sebastian que me aguardava. Morávamos lá: eu, ele e mais alguns outros deserdados da sorte e com um extenso currículo de decepções nas costas. Havia velhos, doentes, alcoólatras, indigentes e éramos todos expatriados de nós mesmos. Naquele dia eu levava um bolo de confeitaria, porque era seu aniversário.

Houve um período em que eu costumava passar antes por uma venda nas proximidades antes de ir embora. Sentava num canto e bebericava, enquanto ouvia as prosas. Geralmente eu não falava nada, só escutava os casos sem participar da conversa. Ninguém percebia muito, mas acho que sempre fui uma espécie de autista desvirtuado pelas contingências. Naqueles dias, naturalmente, eu me atrasava um pouco e ao chegar, encontrava o meu colega chorando de preocupação pela minha demora. Congratulava-me no íntimo porque nunca tinha tido essa espécie de atenção, mesmo sabendo que a sua idade mental era a de uma criança. Mas nos dávamos bem: ele com a sua infância estacionada no tempo e eu que, apesar de tudo, não havia chegado muito além disso ou retrocedera, depois de tantas e tantas derrotas. Eu estava com 56 anos e a aposentadoria já deveria estar próxima, mas eu não me preocupava com isso porque gostava de trabalhar e ocupar o meu tempo, sobretudo em se tratando dos livros, que eu julgava ser o meu verdadeiro destino.

Chegando ao Asilo naquele dia, fui informado de que uma pessoa estranha havia me procurado para uma entrevista, após o anúncio do prêmio literário em que eu fora contemplado. Não me encontrando, conversou longamente com a diretora do abrigo que lhe passou todas as coordenadas da minha vida: desde a infância na roça até o estágio atual de dissipação e fim de linha a que eu chegara. Não gostei nada disso, sobretudo porque julgava que a minha vida (como de resto a vida de todas as pessoas) não trazia nenhum elemento surpreendente ou digno de nota e não passava de uma seqüência de fastio, de equívocos e pequenos acontecimentos sem importância e mal-resolvidos. Mas a diretora gostava de se gabar dos seus conhecimentos empíricos de psicologia aplicada e tinha na ponta da língua um perfil biográfico de cada um de nós moradores e as justificativas sociológicas de estarmos ali.

Era desnecessária essa análise a que ela se entregava: estávamos ali, na sua grande maioria, porque não nos restava alternativa de vida, e aqui não vai nenhum julgamento sobre a qualidade do atendimento ou o grau de satisfação dos internados. Mesmo porque, quase todos estavam satisfeitos de estar ali e não questionavam ou vislumbravam outras possibilidades, até porque chega-se a um ponto da existência em que quase tudo deixa de ser importante e de fato isso é verdade, se lhe retirarmos a ênfase. O universo só existe porque é considerado com a ênfase do mistério que o envolve: subtraindo isso não sobra muita coisa e um dia segue-se ao outro dia.

Naquela mesma noite o jornalista voltou ao asilo para falar comigo, mas como aqui as visitas noturnas não são permitidas, só pude atendê-lo através das grades do portão. Disse-me que viera de longe, de uma cidade grande e que estava fazendo uma pesquisa sobre a loucura dos poetas com vistas à defesa desta tese junto ao seu curso de mestrado. Fiquei meio ressabiado com aquilo e já tentando despachá-lo de uma vez por todas, falei-lhe que tudo o que eu tinha a dizer estava nos meus livros e que ele poderia então lê-los e extrair o que julgasse de interesse ao desenvolvimento do seu trabalho. Acrescentei que não gostava de conversar sobre questões pessoais e que não me considerava nem mais e nem menos louco que nenhum dos mortais e que, nesse caso, bastava que ele conversasse com qualquer pessoa por mais de 10 minutos que ele já teria elementos confirmativos de sua tese. Mas ele retrucou, rindo, que concordava comigo e éramos todos loucos mesmos, de uma certa forma; mas que pretendia enfocar neste seu trabalho especificamente a loucura atribuída aos poetas. Reportou-se ao pioneirismo de um certo médico que, no século XIX, aplicou um questionário padrão a diversos autores sobre o processo criativo deles. A sua intenção, ele me dizia, era dar seqüência a este trabalho e tentar chegar a algumas conclusões sobre o tema.

Recusei-me a participar da enquete, mas no dia seguinte lá estava ele na porta da biblioteca me aguardando. Mantive a minha disposição de não falar nada e emprestei-lhe um exemplar de cada livro meu para que ele pudesse encontrar os tais “indícios de loucura” a que se referia: ademais por quê eu? se era apenas um autor quase desconhecido do público e residente numa pequena cidade do interior? Respondeu que era sobretudo pelo fato de eu ter meio que me auto-internado num Asilo para velhos e inválidos, sendo que podia, como de fato estava, saudável e trabalhando ainda. Conclui que não adiantaria tentar explicar-lhe a força das circunstâncias em nossas vidas e que estaríamos sempre sob o peso ou o alívio das nossas escolhas equivocadas, e não mais o vi desde aquele dia. Soube depois que o tal jornalista, depois de conversar com mais algumas pessoas do meu pequeno círculo de relacionamentos, deu o fora da cidade e eu achei bom ter-me livrado dele sem sequer ter-lhe sabido o nome.

O quarto que eu ocupava no asilo era simples, mas continha tudo que eu julgava que precisaria àquela altura da vida: uma cama de solteiro com respaldo de madeira na cabeceira para que pudesse ler, um pequeno armário para as roupas, uma escrivaninha com duas cadeiras, um antigo computador com impressora mas sem Internet, pois revoltara-me contra o mundo virtual a partir de certos desencontros. O cômodo era de proporções pequenas e não pôde comportar uma estante, de tal modo que os livros espalhavam-se pelo chão e em caixas de papelão. Um fone de ouvido completava o meu arsenal para que eu pudesse curtir o rock’n’roll sem perturbar os demais asilados sem lar.

Em certas noites de tempestade e saudosismo eu chegava até a janela e observava o fluxo de carros e pessoas sobre o asfalto. A rua era mal iluminada e o movimento era pequeno devido à chuva e também porque estávamos num bairro afastado, logo na divisa com a zona rural. Nesses momentos de confusa nostalgia, abria uma gaveta e pegava um pequeno retrato 3x4, mas já não recordava se era a mãe ou a filha que estava ali representada: tanto tempo e distância me separavam do mundo das sensações que eu já não sabia. Lembrava-me vagamente da figura de uma criança, uma menina, com aproximadamente nove anos de idade, no entanto quase uma eternidade se passara entre essas poucas lembranças e o momento atual. Contudo eu acho que nunca havia sido casado e então aquela fotografia poderia ser tanto de uma conhecida daquela época ou mesmo de sua filha que, naturalmente, havia crescido e já deveria ser agora adulta, se eu mesmo contava com 56 anos mal-vividos.

Segundo o relato da diretora do asilo eu fora encontrado perambulando pela rodoviária, com todas as características de um andarilho perdido, mas trazia uma mala cheia de roupas e de livros e tinha um pouco de dinheiro no bolso. Presume-se que eu tenha chegado então de ônibus e não apresentava características de um louco. Trouxeram-me para cá porque a cidade não dispunha de um abrigo provisório e eu não fazia a figura clássica do mendigo proveniente de alguma cidade vizinha. Meus documentos pessoais que estavam comigo indicavam que eu havia nascido ali mesmo, naquela cidade, embora já não houvessem mais parentes meus conhecidos por ali e em razão disso fui acolhido.

O asilo em si era simples e cinzento, de construção modesta, mas acolhedora: tinha, para além do portão de entrada, um jardim bem cuidado, um pequeno oratório, a secretaria, um refeitório e os quartos dos abrigados. O meu dava para o quintal onde havia uma pequena horta e algumas árvores frutíferas. Nunca fui de ficar circulando muito pelos corredores e áreas comuns e então gostava de ficar observando o terreiro e os muitos pássaros que o freqüentavam, além de ter uma vista parcial da cidade ao longe; já que o asilo fora construído sobre uma pequena elevação do terreno. A rua de acesso era de pedra e havia uma tabuleta na entrada com o nome e o telefone da instituição.

Num belo dia, durante um feriado prolongado, apareceu lá no asilo uma professora de artes. Fora contratada para trabalhar o aspecto lúdico das pessoas internadas: daria aulas de desenho, pintura, artesanato, canto, teatro e até dança, se fosse o caso, disse ela brincando, ao se apresentar: chamava-se Anne, tinha uma filha e deveria ter mais ou menos uns 34 anos. Era uma pessoa simpática e alguns dos internos se entusiasmaram com a coisa, mas a participação no curso não seria obrigatória e cada qual poderia se inscrever ou não. Voltei para o meu quarto.

Ao cabo de poucos meses aquela disposição inicial já se arrefecera, como sempre acontece com tudo que é coletivo, e a professora quase já não tinha alunos para as suas aulas. Começou então a procurar pessoalmente cada um dos recalcitrantes, aqueles que sequer se inscreveram após a sua palestra inaugural. Eu estava tentando entender um livro de filosofia quando ela entrou pela porta, pedindo licença, e sentou-se numa das cadeiras disponíveis. Era educada e quis saber porque eu não me interessara pelo curso, logo eu, que trabalhava numa biblioteca pública e tinha o hábito de ler e escrever, conforme ela havia sido informada pela secretaria do estabelecimento.

Disse-lhe que não levava jeito para a coisa e que, além da literatura, eu só gostava de música, mostrando-lhe a minha pequena coleção de Cds e discos de vinil. Curiosa, ela já foi logo se abaixando para examinar o mostruário e eu pude então contemplar toda a sua beleza. Mas aqui só tem discos de rock, ela falou, sem esconder a sua surpresa. Gosto muito do rock’n’roll, eu disse, e ela voltou a sentar-se na cadeira. Depois de alguns minutos de silêncio ela se levantou e disse que estava tendo uma idéia meio maluca e que depois voltaria a falar comigo.

Nas vésperas do natal tivemos a nossa singela confraternização, com direito a bolo, chocolates, refrigerantes e a presença de alguns parentes. Eu não tinha parentes conhecidos mas participei do evento por algum tempo, depois voltei para o meu quarto e ao abrir a porta, deparei com a Anne remexendo nos meus discos. Antes que eu falasse qualquer coisa ela interrompeu meu pensamento perguntando-me se eu lembrava da nossa última conversa sobre música. Respondi que sim e ela falou: por que a gente não forma uma banda de rock aqui no asilo?

Há períodos que entro assim numa espécie de torpor. Abstenho-me de tudo e tudo ao meu redor perde a sua cor. Não é propriamente tristeza, mas o vazio absoluto. Hoje a diretora veio saber porque eu não saía do quarto nem para alimentar e se eu tinha perdido o meu emprego, pois havia dois dias que não trabalhava. Eu não sabia disso, devo ter tido uma espécie de colapso, um hiato de memória do qual não me dei conta. Levantei correndo e fui para o serviço na biblioteca. No trajeto fui pensando que aquilo talvez explicasse os meus grandes lapsos, pois me lembrava muito pouco da minha vida pregressa e tudo me parecia ter ocorrido num átimo de instante. Procurava me recordar do passado, mas era como se fosse uma estrada vazia. Intrigava-me aquela velha foto na gaveta, sobretudo agora que eu percebia nítida semelhança entre ela e a professora de artes. Na biblioteca disseram que estavam preocupados com a minha ausência e que até pensaram de ir lá para saber o motivo, ao fim do terceiro dia. Disse-lhes que estava doente e ficou tudo por isso mesmo e eu agradeci comovido.

Naquele fim de tarde, voltando ao asilo, dei pela falta do Sebastian ao portão e fui informado de que ele estava doente e caíra de cama com febre alta. Fui vê-lo e ele estava prostrado e bastante debilitado, contudo me deu aquele sorriso largo e sem dentes que lhe era peculiar. Conversamos um pouco sobre o nosso mundo comum e infantil e ele, estendendo o braço, pegou seus soldadinhos de chumbo que estavam sobre o criado-mudo, junto com os remédios. Brincamos um pouco como sempre fazíamos quando estávamos juntos e ele me fez um estranho pedido: “cuide dos meus brinquedos como se fossem do seu filho e saiba que a minha alma estará neles”. Nisto foi chegando o médico, acompanhado da diretora do asilo e eu me retirei encabulado com tudo aquilo.

Uma das poucas amizades que desenvolvi na biblioteca foi com o Sr. Antônio, um velho deficiente físico que, depois de aposentado, interessou-se pela leitura para compensar talvez a sua dificuldade de locomoção terrestre. Indicava-lhe alguns livros de aventura mais simples que ele apreciava muito e sempre voltava para buscar mais. Não adiantava recomendar-lhe outro tipo de leitura porque ele não desenvolvera o hábito de ler desde cedo e então seu entendimento era limitado: uma vez dei-lhe um romance existencialista que ele devolveu na manhã seguinte, irritado e dizendo que lera só algumas páginas e não havia entendido nada...ri-me à socapa, pois ele era bastante sistemático, e fui buscar alguns daqueles livrinhos-de-bolso de que ele gostava. Pegou-os triunfante e disse que aquilo sim, que era leitura para ele. Ficamos amigos e conversávamos bastante, pois o movimento na biblioteca era fraco até então, antes de chegarem os computadores.

Numa dessas conversas ele quis saber como eu conseguira aquele emprego, sendo que morava no asilo para velhos e dementes. Respondi-lhe, meio de brincadeira, que eu também era bastante velho e já meio fraco das faculdades mentais; ao que ele respondeu meio pra si mesmo: não parece, não parece! Contei-lhe então a verdade de eu ter prestado concurso público para o cargo. Já logo ao final do terceiro mês desde a minha chegada na cidade, a minha permanência no asilo estava se tornando insustentável, conforme a diretora veio me dizer. Que todos que estavam ali era devido ao fato de serem inválidos e inviáveis economicamente: desses o Estado cuidava mandando verbas, roupas e alimento. Alguns outros, e eram poucos nessa condição, moravam ali por causa da senilidade e também porque as famílias deles não os queriam mais, de uma certa forma. Então essas famílias ofereciam um donativo mensal ao asilo para que o mesmo pudesse suportar as despesas destes elementos. Eu não me enquadrava em nenhuma daquelas situações e não poderia, portanto, permanecer lá por mais tempo, a menos que eu conseguisse um emprego. Ela era uma boa senhora e eu percebi que não lhe agradava a idéia de me colocar no olho da rua, sabendo que eu não tinha para onde ir. Disse-me então: “está tendo um concurso na prefeitura, por que o senhor não faz a sua inscrição? já que tem condições de trabalho? se passar e obter o emprego, poderá continuar morando aqui, pois temos disponibilidade de quartos, desde que custeando as suas próprias despesas”. Abriu esta exceção para mim e assim foi feito: prestei o concurso, passei, estou trabalhando como auxiliar de biblioteca e moro no asilo, bancando as minhas despesas. O Sr. Antônio ficou satisfeito com a minha explicação e convidou-me para uma pescaria na represa no próximo sábado.

Fomos juntos e ele tinha um carro adaptado às suas deficiências e que ele dirigia com bastante destreza pelas estradas de terra das redondezas, em busca dos melhores pesqueiros que lhe fossem acessíveis: não gostava dos rios por causa dos barrancos e preferia então os tanques e as represas, aonde era mais plaino.

Não tivemos muita sorte aquele dia na pescaria: com os peixes escassos, sobrava tempo para uma conversa monótona, repetitiva, de dois homens sentados à beira de um mistério de águas represadas. O lago que se formou ali era enorme e muito profundo, segundo o Sr. Antônio. Tinha uma canoa de madeira ancorada numa das margens e ficava disponível aos pescadores que quisessem se arriscar mais para o meio do lago. Como a pescaria estava fraca, pensei em utilizar deste dispositivo, mas olhando para as pernas atrofiadas do Sr. Antônio eu logo desisti da idéia. Contudo, ele parece ter desconfiado ou percebido a minha intenção e logo começou a falar dos perigos e da ameaça que aquela represa significava para toda a cidade, estando localizada assim tão próxima, cerca de 2 km.

Contou-me que já vários pescadores haviam morrido naquelas águas, seja tentando atravessá-las a nado ou indo de canoa até perder-se de vista e nunca mais voltaram. Perguntei o que havia acontecido com os pescadores e ele então mencionou duas lendas, entre crédulo e assustado: falou que aquela represa se formara a partir de várias nascentes deste a encosta dos morros, a mais ou menos meio século atrás, quando ele ainda era jovem; e que, desde então, todos os que se aventuravam em suas águas morreram afogados porque as embarcações simplesmente viravam como se fossem barcos de papel e jogavam todos os tripulantes na garganta do diabo. Nunca ninguém havia retornado com vida para dar alguma explicação sobre o fato, e ao cabo de uma semana os seus corpos eram encontrados nas margens, entre canavieiras, e flutuando.

A segunda lenda era ainda mais terrível, conforme ele me disse, e vinha carregada de fortes elementos bíblicos, como se pode perceber: que a cidade fora se expandindo juntamente com o crescimento do lago da represa que lhe fornecia a energia, e que, quanto mais a cidade crescia, maior era o seu consumo de energia e assim o lago foi crescendo também, vertiginosamente, para atender a demanda do povoado que se estabelecera aos seus pés. Então aquele enorme e maravilhoso lago, que se chamava Tanque Grande, era, na verdade, um organismo vivo cheio de vingança e maldade e que mais cedo ou mais tarde, iria se romper com seus tentáculos, braços e garras de líquido ódio para engolfar toda a cidade e destruí-la completamente, sem nenhum rastro de sobreviventes. Que horror, eu pensei, enquanto observava aquele mundo de águas calmas tremeluzindo ao final da tarde. E por que não tem peixe, se é assim tão grande e profundo a perder-se de vista? Peixe tem, falou o Sr. Antônio, e em toneladas. Mas o lago possui vontade própria e esconde as suas crias. Às vezes ele se mostra benevolente e permite excelentes pescarias, noutras se retraí, aborrecido, como as mulheres quando estão naqueles dias, e nada se extrai.

Já voltando para a cidade, dentro do seu carro, sob o aborrecimento da pescaria frustrada e de todas aquelas teorias esquisitas, perguntei ao Sr. Antônio na despedida, quando ele me deixava na encruzilhada que leva ao Asilo logo adiante, o porquê de toda essa animosidade da represa e ele me respondeu, já dando a partida no automóvel: o pecado dos homens!

O Sebastian continuava doente e o médico, acompanhado da enfermeira Sulamita, removeram-no para o quartinho do porão, afastado, sob a alegação de que o vírus era altamente contagioso e as visitas foram proibidas. Não vi mais o meu amigo com vida e dois ou três dias depois veio a notícia de que ele havia falecido.

Após o enterro o médico esteve reunido com a diretora e ordenaram uma desinfecção geral e imediata em todo o asilo. Foi um deus-nos-acuda e não ficou um só centímetro de piso, paredes e telhado que não tenha recebido uma baforada de produtos químicos, numa tentativa de assepsia da morte. A enfermeira Sulamita foi designada a permanecer conosco por mais sete dias, para vigiar, detectar e diagnosticar o aparecimento de qualquer sintoma da peste em algum de nós. Era um doce de pessoa, como se diz, atenta e sempre carinhosa com os internos. Eu fiquei sabendo que ela era viúva e mãe de três filhos já adultos e emancipados. Pedi-lhe uma foto e, para surpresa minha, depois do almoço ela apareceu com várias fotografias com dedicatórias para mim. Fiquei enamorado, configurando-se assim a passagem da razão à epilepsia.

A despeito de todos os cuidados profiláticos, a doença se espalhou pelo asilo e contaminou diversos internos. Sulamita se desdobrava nos cuidados e eu a ajudava como voluntário nas horas em que não estava na biblioteca. Ainda bem que não ocorreram mais óbitos, além do próprio Sebastian que, coitado, nos deixou como legado a disseminação deste vírus esquisito. O médico disse que era uma mutação genética e mais resistente da pneumonia.

Pelos corredores da instituição começou-se a denominá-lo de “o vírus do amor”, numa alusão ao meu envolvimento afetivo com a enfermeira. Era uma forma divertida de se referir a algo que parece ser maior que nós mesmos, quando nos atinge. A diretora nos contou, a mim e à Sulamita, que o pessoal estava dizendo que esta doença era mesmo muito semelhante ao “vírus do amor” e que, “quando não mata, aleija”. Invadindo-nos através dos nossos flancos ilusórios e desguarnecidos e da nossa baixa resistência intrínseca e afetiva. Era tudo verdade, eu já sabia: o amor, quando se instala, produz enormes estragos como uma doença do espírito e que, cada um precisa saber lidar e encontrar remédios paliativos para não sucumbir logo ao suicídio. Não há felicidade na paixão, ao contrário do que comumente se diz, mas tudo que é dito de uma forma comum e genérica, é geralmente ridículo e esvaziado de sentido. Cresci ouvindo o chavão de que “o amor é lindo”, mas essa era mais uma das mentiras que nos contaram desde a infância.

Conforme era da vontade do nosso estimado amigo Sebastian, recebi uma caixa de papelão com todos os seus pertences lúdicos e infantis de uma vida estacionada no tempo e anterior a qualquer tipo de consciência. No fundo, eu o invejava e admirava ao mesmo tempo, por ter permanecido eternamente criança. Poucos conseguem fazê-lo: eu mesmo tive que abrir mão do meu “autismo voluntário e não místico” para poder conviver entre os homens. Sebastian não, sempre foi autêntico e não abriu mão da sua infância estacionária. Há muita poesia nisto, que os governantes não conseguem entender e querem recuperar e incluir na cadeia produtiva. Muitas das políticas públicas deveriam deixar em paz o objeto da sua intervenção. A idéia geral é: “tragam todos para o meio da vida”, “vamos incluir todo mundo”, mas alguns não querem isto absolutamente e preferem dormir à margem do grande sonho coletivo e desenvolvimentista da produção e do consumo.

Coloquei os brinquedos do Sebastian junto com os livros, na minha escrivaninha de autor renomado e pouco lido. Sulamita reprovou a idéia e disse que eu deveria romper com o meu passado, mas ela foi embora logo em seguida, deixando um rastro de dor e a boca seca. Assumiu um cargo na superintendência de ensino e pesquisa, a convite de um pastor religioso casado e mal-intencionado.

Quando se perde algo ou alguém o sobrenatural avança, e isso talvez explique em parte os acontecimentos que vieram logo em seguida. Goya, em suas pinturas, já havia alertado de que o sono da razão gera monstros. Desde que Sulamita me abandonou eu entrei assim numa espécie de transe paranóico: primeiro foram os pesadelos, depois as alucinações e finalmente as sensações táteis e olfativas. Numa noite, após uma terrível insônia e pensamentos conturbados, adormeci finalmente e sonhei que havia debaixo da minha cama, como uma projeção dela e nas mesmas proporções, um aquário de vidro transparente habitado por um peixe pequeno e vermelho. Acordando de manhã para ir para o trabalho, a primeira coisa que fiz foi olhar debaixo da cama: não havia nada ali além de um par de sapatos.

O pesadelo tornou a se repetir na noite seguinte e na outra e também na próxima. Era algo constante e obsedante. O único elemento de diferenciação que pude ir observando ao longo da seqüência de sonhos, é que o peixe ia se desenvolvendo a cada noite, paulatinamente, e mudava de cor constantemente. Já agora ele ocupava toda a extensão do aquário, como um prolongamento sombreado da cama de solteiro sobre a qual eu estava deitado. Era um peixe grande e escamoso, marrom e com guelras parecidas com glandes. A partir de então, em minhas inspeções matinais, encontrava sempre debaixo da cama aquele mesmo par de sapatos e uma pequena poça de líquido viscoso e transparente.

Após um determinado período, que eu não saberia precisar com clareza, aconteceu uma drástica mudança nas características daquele pesadelo: ao invés de peixe, habitava agora no aquário imaginário a figura imponente de um cavalo aquático. Mas era um cavalo mesmo, de verdade, como aqueles cavalos de pastagem terrestre e não um cavalo-marinho. Assustei-me com aquilo a princípio: um cavalo aquático! Já ouvira histórias de cavalos alados, mas aquáticos nunca. Dei-lhe o nome de Figura.

Numa dessas noites de insônia e de sono induzido por medicamentos, sobressaltei-me com um barulho vindo de fora do quarto, no pequeno quintal que divisava com as paredes do asilo. Levantei e abri a janela, que dava para a horta bem cuidada e no meio das hortaliças estavam seis tigres ecológicos e vegetarianos. Ocorreu-me o seguinte pensamento: “são originários das florestas da Malásia, mas se adaptam bem em quintais com pouca luminosidade”. Alimentavam-se das verduras e eram inofensivos, ao que parece.

Domingo de manhã fui fazer uma visita ao Sr. Antônio, para saber dele sobre tudo aquilo que estava acontecendo comigo. Ele tinha conhecimentos sobre as lendas rurais e urbanas, conforme tinha demonstrado aquele dia durante a nossa pescaria. Falara sobre os peixes que pareciam ter vontade própria, dos afogamentos e mortes misteriosas no Tanque Grande, do prognóstico de inundação e destruição da cidade pelas águas da represa, num futuro próximo.

Encontrei-o sentado na varanda da sua casa, pitando um cigarro de palha e observando os transeuntes. Convidou-me a entrar e então contei-lhe tudo sobre as visões e os pesadelos que estava tendo. Ouviu calado, sem nada perguntar e estava sereno, o que me surpreendeu bastante, dada a natureza das confissões. Tanto que eu ainda não tinha tido a coragem de contar pra ninguém antes, temendo virar alvo de chacotas. O Sr. Antônio ponderou bastante antes de me dizer que aquilo então era já o início: que estava previsto de acontecer mais cedo ou mais tarde, só que ninguém sabia como, nem onde ou de que forma. Persignou-se e completou dizendo que começara comigo, mas que logo se alastraria e outras pessoas também poderiam vivenciar fenômenos semelhantes. Só não entendia, ele me disse, porque o epicentro da coisa parecia estar no Asilo Imaculada e não no centro da cidade, como estava previsto. Falou algo sobre a ascensão dos mortos que surgiriam a partir do subsolo da igreja matriz, que fora construída sobre o antigo cemitério do povoado. E não falou mais nada, trancou-se num silêncio obstinado, olhando para o vazio e então eu fui embora.

Tempos depois, no meio da noite, fomos despertados pelos gritos histéricos da secretária do asilo que afirmava ter visto pelos corredores uma figura humana, tipo zumbi, e que ele tinha uma espécie de pinico na cabeça. Desde esse dia a nossa vida nunca mais voltou a ser a mesma. Outros internos também passaram a ver essas assombrações e alguns diziam ter reconhecido as feições de seus parentes ou amigos já falecidos.

Para tentar conter um princípio de pânico que já ia se instalando no asilo, a diretora tratou logo de providenciar um exorcismo no local. Mas para a minha infelicidade futura resolveu, dentro dos princípios da democracia, do politicamente correto e do ecumenismo religioso, convidar um padre católico e um pastor evangélico. Não sei que bobagem foi essa da diretora, afinal a democracia tem lá os seus defeitos como todos os sistemas, o chamado politicamente correto é uma falácia absurda e o ecumenismo religioso um modismo para tentar aplacar os ânimos de “gregos e troianos” na arena de Roma.

Mas assim foi feito e um belo dia aparecerem lá as duas figuras para cumprir o seu ofício. Benzeram, rezaram, excomungaram e entoaram hinos enquanto percorriam cada cômodo do nosso asilo, jogando água e esbaforindo certezas para todos os lados. Seja como for, a partir deste dia tudo cessou como que por encanto e, sendo um trabalho conjunto, não soubemos a quem atribuir os méritos de tão eficaz exorcismo.

O padre católico, talvez por ser um senhor já idoso e sozinho para cuidar de sua paróquia, voltou lá algumas vezes até certificar-se do êxito do procedimento e, uma vez convencido disso, agradeceu a todos pela fé em Deus e deu como encerrada a sua missão em nosso meio. Despediu-se comovido, todos ficaram felizes e cada qual foi cuidar da sua vida.

Já com o pastor evangélico foi diferente. Voltou lá também algumas vezes para confirmar o sucesso do empreendimento e, talvez por ser um senhor mais novo, casado, pai de família e tendo disponibilidade de tempo e de dinheiro; não saiu mais de lá. Visitava o nosso asilo todos os dias, mesmo não tendo a menor necessidade disso, afinal o sobrenatural já havia sido contido. Mas ele não se dava por satisfeito: expulso o demônio, ele parecia agora querer capturar as almas das pessoas que ali viviam e uma delas em particular – a de Sulamita que, mesmo tendo rompido comigo, ainda nos visitava com freqüência.

As assombrações tinham ido embora e, no seu lugar, instalou-se um fantasma religioso entre nós. Fiquei encabulado com aquilo e para não deixar a minha raiva me dominar eu fui plantar árvores, para desanuviar a cabeça. Consegui uma vaga de ajudante num viveiro de mudas nas redondezas e só voltava ao asilo de noite, quando a praga do pastor já deveria ter ido embora para a sua casa. Algumas poucas vezes cruzei com ele pelos corredores, quando eu vinha chegando e ele saindo: entreolhavam-nos cheios de contido ódio e um silêncio soltando chispas pelos olhos.

A reação da Sulamita foi de assombro, no início. Não entendia aquela animosidade e rivalidade entre nós, achando que tudo poderia ser resolvido na base da amizade. Apaixonou-se pelo pastor, optou por ele em meu desfavor e ainda por cima, dizendo também gostar de mim, queria a minha amizade impunemente e reclamava de eu não lhe dar a atenção, o carinho e de como tudo aquilo tinha sido lindo um dia. Mulher é mesmo um bicho esquisito e eu ainda tinha aquela foto misteriosa comigo, que não sabia de quem era ou tinha sido.

Sempre quando a gente perde alguém ou algo que julgamos muito importante, é natural que se busque compensações na arte, sobretudo na literatura, e também em outras pessoas; sobre as quais lançamos as nossas novas esperanças de redenção. Trata-se, na verdade, de projeções ilusórias de nós mesmos. Como se fossem espelhos em que a gente se olha com medo de encarar e enxergar o nosso avesso. No fundo não deixa de ser uma forma de escapismo, mas que nos livra muitas vezes talvez até de uma morte prematura. Geralmente nesses casos os pais se apegam aos filhos, os filhos se aproximam mais dos pais; criando um escudo protetor contra as intempéries da vida.

No meu caso específico, como não tenho filhos conhecidos ou nem sequer sei se os tenho e não me lembro da vida com os meus pais; dediquei-me ao plantio de árvores das espécies nativas e à escrita de livros para mim mesmo. Trabalhava em dois períodos: de manhã na biblioteca, onde escrevia nos intervalos, e à tarde no viveiro de mudas, semeando sementes de um futuro que eu não compartilharia. À noite, no meu pequeno quarto de asilo, era um tormento. A lembrança e as mágoas de Sulamita me assaltavam e eu estava indefeso. Decidi tentar acabar com aquilo ocupando todo o meu tempo e matriculei-me no curso de artes e ofícios da professora Anne.

As aulas noturnas eram dadas no próprio asilo, na sala de reuniões que eu não me lembro de nunca termos tido nenhuma reunião ali, e eram abertas ao público de um modo geral e não somente aos internos e residentes; pois éramos poucos e na sua maioria desinteressados. De modo que a diretora permitiu à Anne que admitisse também outros alunos da cidade, de forma gratuita, como expediente para não encerrar o curso por falta de quorum. E foi assim que conheci algumas pessoas que vieram a ser importantes para mim mais para frente, no período de declínio da minha vida.

A nossa turma, com exceção de mim, era formada apenas por mulheres, a começar pela professora Anne. Falarei um pouco de cada uma das alunas, numa forma de apresentação breve porque breve foi o nosso período de convivência; antes do terrível assassinato que transformou a rotina do asilo e decretou o fim do curso. Tinha as presenças assíduas da Rosana e da Eloísa, respectivamente, divorciada e viúva; ambas funcionárias do Estado. Tinha a freqüência intermitente da Vanessa, com seus ares de cartomante enamorada e mais duas mulheres anfíbias: Marluce e Cristina, que pareciam viver em estado de permanente orgasmo entre si.

Dentre os alunos do próprio asilo, além de mim, escritor fracassado; freqüentavam também as aulas (ainda que de uma forma esporádica) a nossa cozinheira Irenice, ex-companheira de um presidiário, que nos servia a todos, inclusive sexualmente se fosse necessário; e a bonita Débora com seus cabelos iguais àquelas bonecas de espigas de milho e que veio a morrer de aids no próprio asilo, alguns anos depois, conforme fiquei sabendo quando eu já não morava mais entre eles.

Na noite daquele fatídico dia retardei ao máximo a minha volta para o asilo. Fiquei pelos bares fazendo hora, pois não queria encontrar nem falar com ninguém no meu retorno. Provavelmente em função das minhas várias ocupações, consegui com a diretora uma cópia da chave do portão de entrada e assim tinha livre trânsito de ir e vir. Ela confiava em mim: afinal sabia que estava lidando com um misto de gênio e de louco, mas que eu nunca faria mal a ninguém, além de a mim próprio.

Cheguei por volta das 23:34, abri o portão com alguma dificuldade e tentei acender as luzes do corredor, mas duas delas estavam queimadas e era a penumbra que reinava no reino das luzes das comodidades. Fui tateando pelas paredes chapiscadas e encontrei um vulto vindo em retorno. Pensei comigo: os fantasmas voltaram! Procurei esconder-me atrás de algumas prateleiras e armários e tentando identificar algum pinico familiar, para me circunscrever naquilo que, àquela altura, parecia já ser verossímil aos olhos da comunidade multidisciplinar. Na verdade eu estava meio cansado de ouvir falar de paradigmas, de um novo olhar necessário sobre a antiga realidade dos homens; sendo eu um cara da roça e sem nenhum conhecimento científico além daquela minha intuição elementar. Na escola eu não tinha aprendido quase nada e o meu diploma era falso. Contudo, no íntimo, eu sabia que sabia mais do que qualquer doutor acadêmico.

E a sombra avançava sobre mim com uma obstinação feronômica doutrinária e eu já não enxergava mais nada, além do obscurantismo que movia a espécie humana pelos seus corredores com as luzes parcialmente apagadas. Acordei fora de mim, longe do meu quarto no Asilo Imaculada e numa cela de presídio, com a acusação de ter matado um pastor evangélico. Recordo, mas não lembro de nada.

Tenho lapsos de memória com freqüência ou então alguma espécie de amnésia dissociativa. E em função disso, acabei sendo incriminado pela morte do pastor. Eu nada podia fazer para me defender da acusação, já que não me lembrava. Fui sincero com o delegado: “pode ter sido eu como também pode não ter sido. Não sei o que aconteceu naquela noite”. Acrescentei um subterfúgio mentiroso, a título de álibi, que foi a única coisa que me ocorreu naquela hora: “Mas acho que não matei ninguém, pois eu estava sem almoço, sem janta e com duas costelas quebradas”. O delegado retrucou, irritado: “Mas o que isso tem a ver?”. Eu disse: “Devido às minhas condições e compleições físicas eu não poderia tê-lo enfrentado, já que sou um fisguelo e ele era uma cara forte, ao que parece”. O Delegado deu um violento soco na mesa, dizendo: “Você é ou se faz de louco, mas o cara morreu e nós vamos investigar!”.

Com isso, tive a minha prisão preventiva decretada e aguardo julgamento, enquanto a Polícia Civil investiga o crime. Acredito que haja em tudo, uma certa lógica determinativa e pude constatar isso hoje, observando andorinhas cantando nos fios elétricos. Do outro lado da rua, no quintal em frente, tinha um pé de laranja e um bentivi cantava ali, ao mesmo tempo. Olhava para um e para outro e pensava: “Deve haver uma sincronia no universo, pelo menos uma idéia de Deus, já que ele não se apresenta claramente. Mandou-me então estas aves para repassar-me uma mensagem, mas qual?”

Permitiram-me voltar uma vez ao asilo, escoltado, para pegar as minhas coisas. A diretora recebeu-me emocionada, dizendo que lamentava tudo aquilo e que queria muito acreditar na minha inocência. Disse que depois de estar tudo esclarecido e, confirmada a minha absolvição, eu poderia voltar a morar no asilo e no mesmo quarto que, enquanto isso, seria ocupado por um novo hóspede que chegara hoje pela manhã.

Entrei no meu antigo e ex-quarto e o novato estava lá, andando de um lado para o outro, inquieto e de chinelos-de-dedo, meio desorbitado. Pedi licença para entrar e expliquei-lhe que tinha umas coisas minhas ali e que eu fora buscá-las. Só gaguejou monossílabos e eu então olhei para ele. Era um cara gordo e meio calvo, transpirava. Durante os poucos minutos em que eu estive ali ele estacou-se diante de mim, de uma maneira peculiar: tinha o corpo projetado para frente e as mãos cruzadas atrás das costas, balançava como uma gangorra. Os pés cascudos e em perpendicular, formando um ângulo reto.

Peguei os meus poucos pertences rapidamente e disse-lhe tiau, virando as costas e já saindo. Ele então disse: “eu estou sofrendo com as calças e tudo!” Voltei por um momento e perguntei se poderia ajudar, de alguma forma. Só ficou dizendo e repetindo, como para si mesmo: “É tempo de manga, é tempo de manga, é tempo de manga”. Aquele som monocórdio trouxe-me à lembrança toda a pureza da infância, quando ainda éramos felizes.

Percebi que ele era o novo Sebastian do asilo e fiquei muito feliz de ele ocupar o meu quarto, afinal ali estava, na pessoa dele, toda a infância recuperada e as nossas mais belas histórias.

Chegando à prisão, resolvi que iria tentar escrever um romance enquanto estivesse ali, para ocupar o meu tempo ocioso. Já logo na primeira semana estruturei a história e, de uma forma um tanto rudimentar, fiz a sua sinopse, que esperava desenvolver depois com calma, mas não passei daí. A história que imaginei perdeu-se e eu não pude desenvolvê-la.

Logo depois de algum tempo eu fui libertado, numa espécie de concessão, já transcorrido o tempo regulamentar da lei e também por absoluta falta de provas contra mim, mas o inquérito prosseguiria enquanto a minha vida tomava outros rumos.

A VIDA LÁ FORA É ISSO

E então eu fui solto dentro de um programa temerário denominado “Indulto de Natal”, onde alguns presos aproveitam para não mais retornarem ao presídio no prazo estipulado e outros ainda vão além, cometendo novos delitos e assassinatos por aí afora. A justiça é cega por princípio e trabalha em cima de conceitos manejáveis. Mas fui libertado e já não tinha um lugar pra onde ir.

A professora Anne convidou-me a passar as festas de fim de ano em sua companhia e eu agradeci, comovido. Durante esses dias conversamos muito e um dia ela me propôs a criação de uma banda de rock, a partir daquela nossa vivência comum no período do Asilo. Sugeriu que eu e o “Criatura” ficássemos nas guitarras, com ela nos vocais, o “Antares” no baixo elétrico e o “Trovão” na bateria. Todos estes elementos, com exceção de nós dois, ainda eram moradores do Asilo Imaculada e também eram bons instrumentistas. Então, por razões óbvias, escolhemos o nome “Asilo Imaculada Blues Band”.

Deu certo no início e começamos os ensaios num galpão, de uma forma um tanto precária, mas o som rolava genuíno. O rock’n’roll estava em nossos sangues e em nossa formação e assim tocávamos de uma forma espontânea, vibrante e descompromissada. Um tempo depois e já estávamos nos apresentando em bares, clubes e na praça da estação, que era o reduto da boa música. Quando cogitávamos na gravação de um CD, tudo se dissolveu da noite para o dia, afinal tínhamos atrás de nós diferentes e vagos diagnósticos de paranóia, esquizofrenia, transtornos bipolares, alcoolismo e outros sinônimos médicos e psiquiátricos para aquilo que nunca pôde e jamais poderá ser definido ou enquadrado; senão na cabeça de quem está diretamente envolvido e precisa de um rótulo qualquer até para poder se olhar no espelho e, minimamente, se compreender como um ser normal.

Não me dei por vencido após o fim do grupo musical, aluguei um pequeno quarto com banheiro e elaborei um projeto político pessoal. Ainda tinha alguma sagacidade em mim e então pensei: vou candidatar-me a prefeito desta cidade! A causa secreta, como sempre existente no fundo de cada disposição humana, era afinal e no caso, uma busca pela “Imunidade Parlamentar” assegurada aos detentores de mandatos eletivos. No meu caso específico eu estava convencido da minha inocência quanto à morte do pastor evangélico. Mas isso não quer dizer nada, porque todos se dizem inocentes e injustiçados quando se trata de si mesmo ou de alguém da família. Toda transgressão é a dos outros: eu nunca ouvi dizer de alguém que assumisse a culpa de qualquer coisa para si mesmo ou publicamente e, ao final e ao cabo, adoecem para comprovar a sua inocência.

Não pretendo ser diferente ou melhor do que ninguém, mas realmente eu não acredito ter matado a droga deste pastor de merda, que talvez fosse mesmo merecedor de morte violenta ou de algum castigo por existir e atravancar o caminho de quem pretendia ser feliz sem a presença dele. Mas ninguém dificilmente se elege sem ter uma plataforma política a ser cumprida para o caso de serem eleitos. Cuidei então de preparar o meu projeto de governo que consistia, basicamente, num projeto de lei de incentivo à cultura e de reflorestamento. Fui sincero mais uma vez, como talvez não devesse ter sido, e prometi apenas isso, que já não era pouco dada a insuficiência de recursos; mas para quem espera e precisa de soluções urgentes para a área da saúde, habitação, segurança e transportes, realmente eram limitados os meus compromissos; mas eu não podia ir além sem estar mentindo.

Durante a campanha eleitoral, casei-me com a Anne e ela inaugurou uma oficina de pintura em nosso novo apartamento, comprado através de um financiamento e éramos felizes juntos, como geralmente acontece no início de quase todos os casamentos.

Um pouco em função das pesquisas eleitorais que estavam sendo divulgadas, e que me davam um incômodo terceiro colocado nas preferências, e também porque fui tendo mais algumas idéias viáveis, resolvi divulgar o meu programa de governo. A minha plataforma de candidato a prefeito consistia basicamente em quatro eixos temáticos: Educação de qualidade, total apoio à Cultura através de leis de incentivos, Bacias de Contenção no entorno da cidade para o caso de um eventual e temido rompimento da barragem do lago da represa, e um maciço Reflorestamento com árvores de grande porte, desde a Matinha até Santiago, nos arredores da cidade.

Era isso que eu propunha e me dispunha a fazer pelo meu povo, mas não fui eleito.

EPÍLOGO

Reencontrei o meu legendário amigo na figura daquele jornalista citado no início deste relato, e só soube disso por ocasião do lançamento, sob pseudônimo, do “Asilo Imaculada Blues Band”. De alguma forma eu havia conseguido reconstituir partes da minha história de vida a partir dos fragmentos da memória e agora estava ali, eu próprio, diante de uma platéia lotada e autografando um livro com a biografia inventada de mim mesmo – afinal não era, senão esse, o único e verdadeiro papel de todo artista.

Subitamente, todos os presentes se detiveram e se quedaram atentos e estupefatos ante ao estrondoso barulho e tumulto das águas turbilhonantes do Grande Tanque que se rompera e irrompera sobre a cidade dos homens, num átimo.

Milton Rezende, inédito, 2011.

Milton Rezende
Enviado por Milton Rezende em 23/10/2011
Reeditado em 15/04/2012
Código do texto: T3293867
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.