SINOPSE DE UM ROMANCE NÃO ESCRITO
Corria o ano de 19... e já fazia cinco que mudara para a nossa cidade um enigma em forma de pessoa. Atendia pelo nome de Dr. Águia. Viera de não sei onde, ninguém sabia. E quando perguntado pelas senhoras da cidade sobre sua procedência, esquivava-se e limitava-se a dizer que veio do norte. Um norte que nunca foi explicado, a despeito da perspicácia de nossas madames.
Vivia num casarão afastado da cidade em 10 minutos, percorridos de carro a uma velocidade de 40 km/h (o máximo permitido pelos cães que pelo seu número serviam de sinal de trânsito, quando não de barreira). Possuir um cão naquela cidade era um costume sagrado e muitos o faziam sem se darem conta de que não gostavam de cães. Quando o percebiam já estavam para a morte e a casa já estava cheia de cães que, via de regra, acompanhavam seus donos até o cemitério e de lá esperavam a benevolência de algum da família para adotá-los.
Muitos diziam que o apego a esses animais se dava devido ao fato de não haver cinemas na cidade e outras formas de diversões modernas. Outros relacionavam esse estranho hábito com o fato de não haver mulheres disponíveis e que cultivando a amizade (em alguns casos a subserviência) com esses animaizinhos, levava-se a vida sem grandes frustrações.
O certo é que aquela cidade era um equívoco da civilização. Trabalhava-se muito e como não havia formas de se gastar dinheiro, o melhor negócio era investir em cães ou então investigar a vida alheia. Tal como se deu com o nosso distinto Dr. Águia.
O casarão que ele ocupava, dizia-se, era mal-assombrado, além de estar em péssimo estado de conservação. Mas nada disso impediu que o nosso homem nele se instalasse. Disseram que ele era um excêntrico, mas depois foi apurado que o verdadeiro motivo da escolha era de ordem financeira.
O Dr. Águia era um homem aparentemente normal. Devia ter seus 30 anos. Alto e magro e com um leve (intensificado pela manhã) tremor nas mãos. Quase não falava com seus supostos semelhantes e quando o fazia era no bar da esquina onde, vez ou outra, se embriagava. E mesmo nessas ocasiões de convívio social, ele nada revelava de si mesmo e nem procurava fazê-lo em relação aos outros. Tudo o que dizia era de maneira a dar a entender que era um profundo conhecedor da alma humana (isso porque ninguém entendia bem o que ele dizia e daí passaram a achar que ele realmente era um sábio).
Morava sozinho no casarão e de lá não saía facilmente. Nem mesmo quando houve o escândalo de se encontrar em flagrante o Antônio de Paula às voltas com sua cachorrinha no matagal atrás da igreja. Podia-se dizer que o nosso amigo era alheio a toda a comunidade e a tudo que a ela se referisse. Vivia para os seus livros e discos conforme se deduzia devido ao intenso volume deles que chegavam pelo correio.
O prefeito da cidade, Sr. Pedroso, percebendo tal fato cuidou de inaugurar logo uma biblioteca pública e pensava em convidar o nosso fantasma para lecionar na escola para adultos que funcionaria no prédio da prefeitura. Pensava o prefeito que com isso ele conseguiria resgatar de vez o Dr. Águia para a vida comunitária, além de que os habitantes precisavam aprender um pouco mais do que receitas de bolos, pontos de crochê e bordado e de como manter seu galinheiro livre das pulgas. Os homens precisam aprender (dizia o prefeito ao Dr. Águia quando foi visitá-lo e fazer o convite) algo além de se aglomerarem nos bancos da praça e ficar implicando com todas as mulheres que passam. Precisam aprender algo mais do que jogar sinuca e tomar cachaça. Precisam se interessar pelo trabalho nas lavouras e aprender a matemática, bem como os estudos sociais e o ensino religioso. Aprender enfim tudo o que o professor e eu, dizia o prefeito com seu primário incompleto, sabemos.
Todo o empenho do prefeito resultou inútil. O Dr. Águia alegou precário estado de saúde e convenceu o Sr. Pedroso que tal idéia era inviável, posto que com seus donos na escola, os cães se sentiriam desamparados e poderiam talvez invadir a prefeitura para por um fim ao aprendizado. – Também Sr. Pedroso, se todos aprenderem o que o senhor sabe, eles provavelmente não o elegerão mais, se farão candidatos. Disse-lhe o Dr. Águia e com tal explicação ganhou para sempre a simpatia do prefeito. – Permitir que eles se igualem a mim em conhecimento e poder, isso nunca. Acrescentou o Sr. Pedroso convencido de sua sabedoria e força.
Essa vida singular do Dr. Águia eu poderia ilustrar com muitos outros detalhes do cotidiano, dele e de sua cidade. Mas prefiro passar logo aos acontecimentos que tanto impacto causaram na comunidade científica de Riacho Fundo (metrópole daquela região e distante de Várzea do Carmo – cidade ambiente do ocorrido – em 2.000 km, tomando-se o menor caminho).
Como se comentava pela cidade, o casarão em que morava o Dr. Águia era mal-assombrado e sobre ele existiam as mais estranhas histórias. Limito-me à de maior aceitação que era a de que naquele casarão se reuniam à noite todos os mortos de Várzea do Carmo para a celebração do ritual conhecido como “descanizar a cidade para as pessoas que nela vivem”. Achavam os mortos que os cães enganavam as pessoas durante toda a vida e que só depois de irem para o cemitério é que puderam constatar tal fato. Os cães estavam tomando o lugar dos habitantes de Várzea do Carmo, fazendo com que estes vivessem na futilidade e no obscurantismo de uma inteligência interceptada em seu estágio pós-concepção do feto. – “Precisamos acabar com os cães”, bradavam os defuntos no casarão do Dr. Águia, enquanto que este, provavelmente, servia aos mortos suculentos pratos de sangue, vômito, fezes ou o que parecer propício à dieta de além-túmulo.
Isso era o que diziam os habitantes vivos de Várzea do Carmo. E iam mais longe ao descrever o ritual dos mortos em sua “descanização”. Segundo se comentava na câmara municipal, o ritual consistia na saída dos defuntos de seus respectivos túmulos aos domingos à noite e posterior enfileiramento de todos eles, quando então partiam para o casarão apanhando todos os cães que fosse possível capturar na escuridão. Havia quem dizia já ter visto essa macabra procissão de formas descompostas e de bundas podres à mostra, a uma distância considerável. O cheiro, acrescentavam esses olheiros, era insuportável.
Chegando ao casarão, todos se acomodavam e começavam então a flagelar os cães como forma de protesto e extermínio. Faziam o que bem entendiam num verdadeiro festival de gritos e latidos. A superstição termina aí, porque ninguém nunca pôde explicar de maneira detalhada o flagelo dos cães.
Mas Várzea do Carmo era uma cidade boa e com o progresso as coisas se ajeitaram. Acabaram-se os cães e com eles a superstição sobre o ritual dos mortos (embora nunca se soube se foram os mortos que descanizaram a cidade ou se foi o progresso).
A cidade cresceu e já não havia falta de mulheres nem de lugares para onde levá-las. A Universidade Universal de Várzea do Carmo (UUVC) espalhou o conhecimento e a cultura a toda a população, tal como imaginara o Sr. Pedroso, de quem tanto nos honramos. As madames se acomodaram quando naquele dia de abril de 19... o Dr. Águia se casou com uma das mulheres mais bonitas de que se têm notícias. Chamava-se Lindaura. Era uma morena de 25 anos, recém-formada em datilografia pela UUVC. Tinha um corpo esbelto, olhos muito vivos e um cabelo igual ao do Dr. Águia (foi o ponto comum que os uniram no matrimônio).
Os dois se conheceram numa festa beneficente no clube 56, numa das poucas vezes em que o Dr. Águia deixou seu refúgio. A festa era para arrecadar fundos para a confecção do busto do Sr. Pedroso, ele que tinha sido eleito, recentemente, patrono da gloriosa UUVC em reconhecimento ao “seu esforço em implantar a cultura nessas terras remotas de Ilhas Gerais, ele que foi um baluarte da expressão artística e filosófica de que hoje desfrutamos, graças ao seu conhecimento empírico e intuitivo. Ele que transcendeu seu próprio tempo e vislumbrou o futuro de nossa gente. O nobre colega, Dr. Águia, que o diga, quando naquela tarde o Sr. Pedroso o propunha a fundação de uma escola noturna para os adultos, oferecendo para tanto o prédio da prefeitura” (trecho do discurso do reitor da UUVC, Sr. Astrogildo, pronunciado na festa beneficente).
Não é preciso dizer que o Dr. Águia, a despeito de todas as mudanças ocorridas, continuava o mesmo. Alheio e imune a toda a transformação da cidade nos últimos anos, desde a superstição do ritual dos mortos até essa festa (na qual veio única e exclusivamente porque não havia o que comer no casarão). Na verdade ele repudiava tanto a festa como o discurso e até mesmo as pessoas que ali estavam a fazer apologia a um burro como o Sr. Pedroso. Isso foi o que ele pensou, mas que não disse quando foi apresentado a Lindaura, moça encantadora.
Uma vez perguntaram a ele o que achava da superstição sobre o ritual dos mortos (pergunta essa que foi feita pelos estudantes de comunicação da UUVC em pesquisa sobre o folclore da cidade), ao que o Dr. Águia respondeu: “isso nunca foi verdade. Pensando bem até que poderia ter sido, pois nas condições em que eu vivia teria ao menos o que comer – cães e defuntos”. Manchete no jornal “Diário da Várzea” no dia seguinte: “ESCRITOR EMINENTE ADMITE A VERACIDADE DO EPISÓDIO DOS MORTOS...” “em entrevista dada ontem aos estudantes de comunicação, o escritor Dr. Águia admitiu que...” e blábláblá.
O Dr. Águia, personagem deste escrito, continuava o mesmo (já disse). Um pouco mais velho e já agora de óculos e bigodes. Tinha engordado meio quilo desde a última vez em que foi visto, bêbado, a caminho do casarão. E ali estava ele na festa, comendo e bebendo junto com “seus dessemelhantes que faziam um espetáculo inútil e grosseiro perante uma vida que por si mesma já carecia de um sentido intrínseco” (nota de seu caderno de bolso encontrado após sua misteriosa morte). Já estava disposto a se retirar quando dona Hercília apresentou a ele sua sobrinha Lindaura. Como já se encontrava meio influenciado pelo álcool, achou (embora não o dissesse) que aquela aura que ele via em Lindaura completava o seu nome de maneira perfeita. Segundo ele, LINDA – AURA e isso foi o bastante para se apaixonar.
Lindaura era o que se chama de moça prendada. Sua tia Hercília era uma burguesa abastada e a que mais sofria com a descanização, julgando-se privada daquilo que achava ser seu dom mais natural: cuidar de animais de estimação. Os motivos pelos quais ela se encarregou de casá-los foi uma incógnita até o momento em que, vendo a sobrinha louca, confessou a ela o seu erro. Disse que tudo o que queria ao entregá-la ao estranho indivíduo era conseguir com isso descobrir o mistério que o envolvia. Devo acrescentar que embora sua confissão fosse sincera e carregada de lágrimas ensaiadas, de nada adiantou, pois sua sobrinha ao vê-la chorando exclamou: “Pare de ficar rindo desse jeito. Não vê que estamos numa igreja?” Estavam no hospício.
O casamento se deu três meses depois de serem apresentados, com Lindaura grávida. Também pudera, disse ela à sua confidente Beatriz, tantos anos na solidão era natural que ele estivesse impaciente. Casaram-se e o Dr. Águia não abriu mão de sair do casarão. Foram para lá e a partir de então o enigma do Dr. Águia começou a ser desvendado (segundo informações que Lindaura passava à sua tia graças ao suborno a que se viu obrigada a submeter-se). Precisavam de dinheiro para alimentar e viver. O marido não trabalhava e o filho Lindouro era o motivo pelo qual se sujeitava a esse tipo de coisa, justificava-se. E dona Hercília pagava e dona Hercília recebia as informações e dona Hercília divulgava a todos e dona Hercília era benquista por todos. “Manter o casamento de uma sobrinha ingrata com um lunático, pelo filho deles, é coisa de se admirar”, disseram em uníssono os jurados naquele dia em que concederam à tia Hercília o Prêmio Varzel da Paz.
E o mistério do Dr. Águia foi sendo apurado. Nome: Tibúrcio Soledade. Idade: 45 anos. Nascido em Pinheirais, estado do Mato Dentro. Antecedentes: filho de uma família rica, Tibúrcio se viu desde pequeno envolvido com o tráfico de drogas que enriqueceu a família Soledade. Rebelou-se e antes de dizer a verdade, por manobra familiar, foi internado como louco e suas palavras não tiveram crédito. Após dois anos de sanatório, Tibúrcio conseguiu fugir e matou todos da família e os queimou. Esteve depois envolvido com revolucionários e foi preso como tal. Posto em liberdade sofreu um acidente de automóvel e na ocasião foi dado como morto. Sabendo-se morto, Tibúrcio veio para Várzea do Carmo e passou a ser o Dr. Águia. O crime familiar nunca foi desvendado (julgaram que fosse uma competição entre quadrilhas e não interessou a ninguém mexer no ninho de vespas). Em Várzea do Carmo aprofundou seus estudos eruditos e se dedicou a escrever. O caráter taciturno é resultado da esquizofrenia: acredita que seus familiares saíram das cinzas e o estão perseguindo.
Dois anos depois do casamento, morria tia Hercília de ataque cardíaco. O menino Lindouro foi encontrado no Rio das Pedras com a cabeça decepada (logo após a morte do Dr. Águia é que se descobriu que foi ele quem matou o filho, por acreditar que ele era a reencarnação dos seus, mortos na fogueira). Antes, porém, foi preso como assassino o barbeiro Tonico pelo fato de este possuir uma navalha que, além de fazer barbas, pode muito bem servir para degolar crianças (única e contundente evidência que não deixou dúvidas ao júri).
Do hospital Sossego, onde era tratada a base de eletro-choques, Lindaura só saiu semanas depois da morte da tia e de seu filho Lindouro. É bastante provável que o impacto dessas perdas a levassem de volta ao hospital, se já não estivesse completamente dopada e um tanto fora de si graças ao atendimento que a ela foi dispensado na já famosa “Colônia de Repouso”.
Com a morte da velha, Lindaura herdou toda sua fortuna e apaixonada que estava pelo marido, não objetou quando ele insistiu em continuar morando no casarão e com o dinheiro herdado promover uma enorme fogueira que seria o batismo de uma nova vida. Onde as culpas e os erros do passado de cada um seriam purificados pelas chamas. “Uma fogueira criminosa só é redimida por uma outra que queime, senão o motivo do crime, pelo menos o instrumento primeiro que o causou”, disse o Dr. Águia com os olhos em brasa, personificando a lembrança, que Lindaura não teve sequer um argumento para tentar demovê-lo dessa idéia. E assim foi feito.
Depois de todos esses acontecimentos, a vida foi-se restabelecendo à normalidade diária a que chamamos rotina. O tempo se encarregou de sepultar os escândalos e a tragédia que envolvera o casal, o que foi possível devido à ausência da tia que já agora não poderia ressuscitar outros episódios talvez mais escabrosos. Com a volta da monotonia e da insipidez que caracterizava a sua vida, o Dr. Águia pôde retomar os seus escritos. Limpou o porão e nele instalou uma escrivaninha e luz elétrica. Passava quase a totalidade das horas imerso em seu livro de sonhos, deixando o velho casarão à mercê dos suspiros solitários e dementes de sua esposa.
Esse estágio marcou em definitivo a desgraça do casal. Descrever qual fosse essa desgraça é matéria para um romance que o Dr. Águia escreveria se ainda procurasse a verdade pelo que ela tem de externo, se já não julgasse tê-la encontrado de súbito e em profundidade quando, numa tarde cinzenta, sepultou-se a si mesmo no quintal dizendo que o cerne da vida que ele tanto procurara descrever em seus livros, jamais seria atingido dentro da própria vida. O aspecto central de tudo estava em sua negação de superfície e causa. Estava no fundo. Num mundo sem nome ou características onde ele iria encontrar a razão. Não em estado puro, mas misturada a tal ponto que uma família queimada na fogueira forma com sua fumaça o esboço de seu próprio prolongamento. E uma criança precisou ser decepada justamente porque o parâmetro genético é o princípio de tudo aquilo que deve ser sepultado para sempre.
O Dr. Águia disse isso com extrema calma e sem alterar o seu semblante de lenha carcomida, se jogou numa vala profunda que Lindaura se encarregou de cobrir com terra.
Milton Rezende
(inédito, 1983).