Heart of a Lion

"You fight for your life because the fighter never quits" - Dropkick Murphys

Durante a semana, por dia, todos os dias, você se alonga por dez minutos, corre seis quilômetros, pula corda por quinze minutos, corre mais cinco minutos, faz cento e cinqüenta polichinelos, cinqüenta flexões e duzentas abdominais; tudo isso não costuma durar mais do que trinta minutos. Sua respiração passa de 12 a 50 por minuto. Depois, vem o treino. Você chuta trinta vezes com cada perna na altura da coxa (low kick), da costela (medium kick) e da cabeça (high kick). Em aparadores, em sacos de areia de cem quilos. Ou em pneus - desde pneus "normais" (carros pequenos) a de trator. Não é para qualquer um. Há também os movimentos circulares - ou giratórios. No ar, ou em aparadores no formato de raquete de tênis. Ou no abdômen do seu companheiro de treino. Às vezes você sente dores na virilha, nas costas; às vezes você pensa em desistir; às vezes você se sente um imbecil suando feito um porco, rodeado de machos fedorentos, com bafo, pagando caro para basicamente descontar a raiva reprimida que você tem por ter uma vida de merda. Às vezes você tem predisposição a arrumar encrencas e quer aprender a se controlar - ou a virar PhD em surrar os outros - e/ou se defender. Depois de uma hora e meia, quando o treino acaba, e seu cabelo está encharcado - bem como sua cueca está empapada - de suor, e todos se cumprimentam, e você coloca sua roupa quente e vai pra casa, você pensa que nunca se sentiu melhor na porra da vida. Você pensa no quanto evoluiu. Você pensa: caralho, eu não agüentava correr cinco minutos sem perder o fôlego e pensar em morte, e hoje agüento noventa minutos de exercícios pesados quase sem parar. Às vezes você puxa um ferro depois do treino. Isso durante a semana - esse parquinho, essa brincadeirinha de criança. Aos sábados, a criança chora e a mãe não vê. O lugar é fechado, e somente os dispostos, os apetitosos, os intrépidos, é que podem entrar. Na verdade, qualquer um pode entrar, porém, uma vez dentro, tem que participar do show. É como um Clube da Luta, só que com regras e equipamentos: caneleiras, capacetes e protetores bucais ficam à disposição e são permitidos. Luvas são de uso obrigatório. A grande maioria usa capacete. Poucos abrem mão da caneleira.

Hoje é sábado, e tudo o que fazemos é um longo alongamento e um aquecimento de dez minutos com corda e flexões.

Hoje é sábado, e duas garotas acabaram de lutar. O grande problema é que todo o treino que você faz parece desaparecer na hora do vamos ver: você treme, sua visão fica turva, o capacete esmaga seu cérebro e a parte da caneleira que cobre o peito do pé atrapalha. Você é uma criança na hora do recreio, diante do valentão da escola.

As pessoas gritam seu nome.

Gritam: vai, vai, vai!

Gritam: Levanta a guarda.

Gritam: Solta mais as pernas.

Você não sabe o que fazer.

Uma das garotas chora e é consolada pelo namorado, enquanto a outra anda pra lá e pra cá, visivelmente nervosa. O psicológico faz 80% da luta, creio eu; 15% é algum lance de sorte. Os 5% restantes é o que você pensa que aprendeu, sendo aplicado às cegas.

Estou sentado, borboletando, um pouco nervoso porque um par de luvas foi jogado diante de mim. O mesmo aconteceu com Shaquila. Não sou o fã número 1 dele. Ele é mau. Dissimulado. Ele é aquele cara que deposita toda a força possível num movimento que não é preciso de força para demonstrar, que te machuca, e depois pede desculpas.

Ele é meu parceiro de treino. Sempre. Porque meu professor sabe que funciono melhor quando estou irritado, e não há nada mais irritante do que os mil pedidos de desculpas por treino com o Shaquila. Então, eu bato forte. Segundo o que todos dizem, minha canelada é a mais potente da academia. E ninguém sabe qual perna minha é a mais forte. Então, eu bato forte quando Shaquila me irrita porque, além de tudo, ele gosta de apanhar. Só que bater cansa mais do que apanhar.

Ele será um bom lutador, se investir nisso. Tem garra, o filho da puta.

Meu professor diz que primeiro faremos uma "luvinha de boxe, bem de leve". Isso significa que vou apanhar, porque meu boxe é uma lástima, e a envergadura dele é maior. E ele bate forte, apesar dos braços magros.

E meu ombro direito costuma se deslocar com facilidade.

"Depois", meu professor continua,"vocês poderão usar as pernas".

"Se eu sobreviver, né?", respondo.

Shaquila ri. Cada gesto que ele faz me causa uma exponencial irritação. Seus modos dissimulados. Ele se faz de coitado, pedindo para que eu não o faça dormir. Para que eu não exagere.

"Vamos lá", meu professor berra, "são três minutos, com um de descanso".

E soa o gongo e começa uma música irritante - um aluno que é DJ montou esse CD terrível.

Nós tocamos as luvas e ficamos circulando. O olhar de Shaquila faz com que eu deseje desistir de tudo. Minha cabeça e meu cabelo não são dos menores, e o capacete incomoda, e sei que no primeiro soco ou ele sobe ou desce, obstruindo minha visão e sendo o pontapé inicial para uma saraivada de porradas que não farei idéia de onde virão.

Shaquila sabe que desta vez a vantagem é dele. Sabe que se eu perder o fôlego ou desistir nesse primeiro round, não terá problemas com as minhas pernas no segundo. Eu também sei disso, e não movo uma palha pra não me cansar.

A adrenalina faz com que minha resistência física - habituada aos noventa minutos semanais - não dure mais do que cinco minutos. O ar entra pesado e sai ardido dos pulmões.

De repente, estou encurralado na parede, tentando arrumar o capacete, com dez pessoas berrando nossos nomes, berrando dicas para que eu salve meu rabo, e eu não consigo saber o que fazer, enquanto tento recuperar minha visão, enquanto ouço trovões vindo de todos os lados, com uma música na cabeça, tentando respirar corretamente.

Um hook de direita me salva.

O gongo soa sem que tenhamos feito muito progresso um com o outro.

O minuto de descanso passa em meio a conselhos que não quero ouvir de pessoas que não quero ver. Balanço a cabeça, concordando com tudo, não entendendo nada.

Eu busco força e apoio em músicas do Agnostic Front, Discipline, Madball e, sobretudo, na "The Warriors Code", do Dropkick Murphys.

As pessoas colocam a caneleira em mim. Arrumam meu capacete. Perguntam se estou bem, se as luvas estão ok. Se quero um protetor bucal usado e babado. As pessoas daqui são boas e gentis.

Desde que não seja você na frente delas, pronto para propiciar dolorosos abandalhamentos.

O professor, juiz, mediador da luta, grita para que fiquemos à postos, que o gongo vai soar. Ele diz que é agora é uma "luvinha de Thai, bem de leve; uma sombrinha".

Nós concordamos e até queremos que seja de leve, mas o primeiro golpe que nos atinge faz com que a parte do cérebro que compreendeu isto seja formatada. E sabemos disso, e, por isto, quando o gongo soa, ficamos nos rodeando, olhando nos olhos, medindo espaço; sabendo um do potencial do outro, não queremos fazer algum movimento em falso que possa resultar em algo desagradável.

Shaquila tem a perna direita mais forte, portanto, a perna esquerda dele é a que fica na frente, servindo de base para seus chutes e socos. Estando eu na mesma base, os low kicks de direita acertariam minha esquerda em cheio, minando-a - além do direto que pode vir depois de um jab fugaz e traiçoeiro.

Como não tenho problema com nenhuma base, fico com a perna direita na frente. Ele não sabe o que fazer. Nas duas vezes que tentou dar o low kick com a perna da frente eu obtive sucesso num jab com a minha direita.

Ele sabe que quando inverto a base, que fico na mesma base que ele, é porque quero aprontar alguma gracinha. Pisão giratório na barriga e soco giratório são meus favoritos. No ano passado, sem muita pretensão, confesso, botei um iniciante que estava me desmoralizando (me batendo do jeito que bem entendia) na lona com um soco giratório. Ele é traiçoeiro, e você nunca sabe de onde vem. E, quando vem, vem com tudo.

Minha coxa dói, de tanto castigo.

O olhar de Shaquila não é mais tão assustador assim.

Quero o pescoço dele, agora.

A porra da caneleira saiu do meu pé durante um medium kick e levei um prejuízo filha da puta por isso.

Minha irritação faz com que minhas atitudes sejam impensadas, e nada sobra do grande covarde que realmente sou quando ela atinge seu ápice.

Estou no ápice dela, no auge. Peço tempo para retirar a caneleira. Mesmo eu tendo erguido os braços pedindo tempo, levei um direto.

Soa o gongo.

Shaquila me pede desculpas pelo seu último e deliberado movimento traiçoeiro.

Tenho vontade de cuspir na cara dele, mas digo: tudo bem.

"Dois minutos de descanso", diz o professor, "e um último round... De MMA. Pode ser?"

Shaquila hesita, fingido. Mas diz que sim.

Eu também.

As pessoas me tiraram o capacete e as luvas de boxe, e agora estão colocando luvas de MMA e me colocando o capacete de volta.

Digo que não quero capacete.

"Não consigo respirar com ele", eu digo.

"Não consigo enxergar com ele", eu digo, depois que uma pessoa me deu um gole d'água.

Me sinto um profissional.

Shaquila pareceu não gostar muito de ficar sem capacete; tirou de última hora. Perderia a moral se lutasse com.

"Cara", o professor diz, "sem bate-estaca e cervical; e não é pra soltar a mão se estiver na montada".

"Vocês não estão competindo por nada, não estão defendendo nada", ele diz.

"Ninguém está aqui pra se machucar, isso aqui é treino", ele diz.

"Sem joelhada na cara e sem chute na cabeça", ele diz.

E vai até o rádio.

Shaquila e eu estamos nervosos.

Se bater canela com canela, estamos fodidos.

Se um direto acertar o nariz, estamos fodidos.

Se cairmos no chão, estamos fodidos, porque estamos banhados em suor.

Não gosto do cheiro dele.

Ele não deve gostar do meu.

E o jiu-jitsu dele é definitivamente melhor do que o meu, apesar de eu ter mais força, maior flexibilidade e saber me livrar de poucas e boas em golpes de sorte.

Pensando bem, o suor será uma vantagem.

Que vida.

O gongo, que será procedido de uma música de muito mau gosto, soa, seguido por um "boa luta" e pela celeuma aos berros de sempre.

Estamos circulando aos pulos. A liberdade de estarmos sem caneleira, capacete - além dos dedos livres - deu um novo alento à nossa desgastada efígie.

Pode sair qualquer coisa desses pulos, desde um soco voador à uma baiana. E é exatamente o que tento: uma baiana, que é genialmente defendida com um sprow, seguida por um rápido low kick que defendo com a canela.

As pessoas gritam: BOA!

Elas gostam disso. Estar sentado ali, tão perto do picadeiro, é vivenciar boa parte da plenitude da adrenalina de que está fazendo o "show" acontecer. E nada como um pouco de ação.

Nosso ego é polido e lustrado.

Foi tudo muito rápido: caímos no chão, atracados, e estou dentro da guarda de Shaquila. Isso não exatamente o Paraíso; tenho que tomar cuidado com o que faço com os braços enquanto ele dá uma porrada ou outra na minha orelha, procurando um triângulo ou um arm lock.

Investindo contra seus fedores e sopapos, consigo abrir e passar sua guarda, e agora estou na posição dos cem quilos, mais respirando do que pensando em fazer alguma coisa. Me jogo na montada e ele faz a inversão no mesmo instante, e agora é ele quem está na minha guarda, fazendo uma força incrível com os cotovelos nas minhas coxas; arrisco um arm lock que não dá certo e tento partir pra omoplata, mas ele também escapa; o filho da puta é bom demais pra mim.

Então estamos novamente na trocação de caneladas, de olhares de ódio e de socos vãos e capciosos.

As pessoas vibram quando entra algum chute bem dado.

Acabei de conseguir um desses, na coxa direita do Shaquila. Ele não gostou. Fechou a cara, cara. Às vezes me dá vontade de correr. Mas sei que ele sente o mesmo. Então fico.

Foi tudo muito rápido e não estou exatamente feliz com o que aconteceu. Foi filha da putice.

Ele arriscou um chute giratório que escapei com dois passinhos para atrás, e, no que ele completava o giro pra ficar à minha frente novamente, foi surpreendido pela minha perna direita em seu pescoço - foi tudo muito rápido. Eu parei minha perna exatamente a um palmo de sua orelha, sorri, e a deixei cair em seu ombro, enquanto um coro ganhou o ar com um: BOA!

Pra quê?

A criança ficou enciumada e de imediato segurou minha perna, me levou pro chão, caiu por cima de mim, sorriu e socou meu olho. Ato contínuo, cego de ódio, estiquei as pernas, cruzando-as no calcanhar, perpetrando uma chave de rim; Shaquila gemeu alto de dor.

Na mesma hora o professor o interveio aos berros, nos separando e pedindo para que desligassem o som.

"O que aconteceu com você?", perguntou ao Shaquila. "Caralho", continuou, "ele poderia ter te colocado pra dormir com aquele chute e você dá um soco desse, na maldade? Como é que ele vai explicar isso no trabalho?"

Eu pouco me fodia para o meu trabalho, essa era a verdade. Também pouco me fodia pro meu olho meio dormente (não o olho em si, claro, mas do lado). O que me exasperava era maldade do arrombado do Shaquila.

"E você", disse meu estimado mestre, "tá cansado de saber que não se pode usar chave de rim e me dá uma dessas, caceta?”.

Dei de ombros, como quem diz "ele que começou".

"Te falar, viu? Bom, por hoje chega galera! Cumprimentem-se, vocês dois".

Cumprimentamo-nos sob uma salva de palmas; um aperto de mão e um abraço.

"Foi mal, mano", Shaquila disse.

"Acontece", falei, "mas vai ter volta".

"Demorou".

Aí depois as pessoas vêm e falam como foi que você lutou. Citam movimentos que você fez que você não se lembra. Você se recorda de pouca coisa, na verdade. A não ser quando algum hematoma ativa sua memória.

Depois você se olha no espelho, extenuado, com o olho ficando preto, pensando se ganhou ou se perdeu e chegando à conclusão de que isso pouco importa.

Chega à conclusão de que o que importa é que está preparado pra qualquer coisa na rua.

Na vida, quiçá.

Ou não.

22/10/2011 - 14h35m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 22/10/2011
Código do texto: T3292063
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